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NA PESSOA E NA FAMÍLIA

4. Fatores condicionantes da adaptação à doença crónica

4.3. Caraterísticas do tratamento da doença

O tipo de tratamento da doença pode afetar e invadir a vida da pessoa doente de muitas maneiras.57

O tratamento é vivenciado de forma problemática quando a pessoa doente é confrontada com procedimentos mais ou menos invasivos ou que podem afetar a imagem corporal, sexualidade, bem-estar físico, psicológico e, consequentemente, a qualidade de vida e representações da doença.Exemplificam este tipo de situações, de grande impacte: - A quimioterapia, que significa a possibilidade de tratamento da doença, é, no entanto, considerada por muitas pessoas como assustadora, podendo significar recidiva e metastização. Também os efeitos colaterais da quimioterapia exercem a sua influência na representação do tratamento, uma vez que provocam uma grande variedade de sintomas físicos e alterações da imagem corporal;188

- Os múltiplos efeitos tóxicos da radioterapia associam-se, com frequência, a ideias de queimaduras dolorosas, emissão de radiação excessiva e receio de se tornar radioativo, representando perigo para os outros. Estas são razões que contribuem para o medo e atribuição de significado negativo a estes tratamentos;188,189

- O estoma digestivo leva a alterações da autoimagem e das relações sociais, dado que a pessoa doente teme que os que a rodeiam se apercebam da sua situação pelo risco da emissão não controlada de ruídos e de cheiro;

- A traqueostomia, dificultando o relacionamento da pessoa doente com os outros através da fala, é encarada como uma mutilação;

- O linfedema, em mulheres mastectomizadas, gera desconforto, alterações da aparência e défice motor, que dificulta o retomar pleno das atividades diárias, seja no trabalho ou em casa. A própria mastectomia altera a imagem corporal, podendo afetar a sexualidade; - A hemodiálise formata a agenda dos dias, condiciona a liberdade de ação, altera a imagem corporal, implica práticas específicas de higiene e obriga a restrições dietéticas e hídricas;

- A cirurgia, na medida em que constitui uma ameaça potencial à integridade corporal do indivíduo, causa medo e ansiedade, mesmo nos casos em que esta é considerada pouco complexa pelos profissionais de saúde. Nos casos em que envolve anestesia geral, estes sentimentos podem ser potenciados, pois, para muitas pessoas, a perda de consciência

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poderá significar meio caminho andado para a morte.190

Estes tipos de tratamento levam as pessoas doentes a percecionar a sua doença de forma mais crónica, com consequências mais nocivas e geradoras de variadíssimas alterações a nível físico (alopécia, náuseas, vómitos, anorexia, entre outros) e a nível psicológico (depressão, ansiedade, stress) quando comparado com outros tipos de tratamento, como a fisioterapia, a polimedicação ou outros.191

Para Horne,192 as crenças maiores ou menores acerca dos tratamentos a realizar influenciam diretamente os resultados. O autor concretiza esta ideia, referindo que as crenças negativas sobre os tratamentos de quimioterapia e radioterapia terão implicações nos resultados, quer físicos, quer emocionais, que se apresentarão mais desfavoráveis. Quando o tratamento implica hospitalizações frequentes, a pessoa sente a sua vida interrompida, vendo-se apartada do seu contexto sociofamiliar. As perturbações das experiências de socialização que as hospitalizações acarretam serão particularmente importantes em crianças e adolescentes. A hospitalização implica, ainda, uma mudança de estatuto da pessoa, fazendo-a sentir-se mais doente e assumir-se como tal. É um fenómeno típico hospitalar, onde o conceito de doente predomina, com todas as implicações psicológicas inerentes. Representando a entrada num meio novo e desconhecido, o internamento causa ansiedade, que pode ser menor se a pessoa já tem experiências anteriores de internamento, já conhece o médico que a vai tratar e ou o serviço onde vai ser admitida e for detentora de informação sobre os procedimentos diagnósticos e terapêuticos a que vai ser submetida. Durante a hospitalização, um novo ritmo é imposto à pessoa, o que inclui um novo horário de despertar, de refeições e uma série de normas para cumprir. Vendo a sua vida posta em stand by, as visitas são importantes, permitindo que a pessoa doente tenha acesso a uma pequena parte do seu quotidiano e possa partilhar preocupações e inquietações com quem lhe é próximo. Tal como as deslocações frequentes ao hospital para efetuar procedimentos médicos em ambulatório, o acompanhamento da pessoa internada, constitui uma grande disrupção no quotidiano dos seus familiares, sendo comum estes organizarem-se para, de modo rotativo, assegurarem sempre a presença de alguém no hospital, nas horas das visitas. No caso do doente ser uma criança, um dos pais, geralmente a mãe, interrompe mesmo todas as suas atividades para acompanhar o filho hospitalizado.

No Quadro LVI apresentam-se exemplos de estudos que ilustram o impacte psicossocial de alguns tipos de tratamento.

Quadro LVI - Impacte psicossocial de alguns tratamentos

Autor Ano População Resultados

Tunala 193 2000 portadoras do Mulheres vírus HIV

Fatores psicossociais dificultavam a adesão à terapêutica, já que as mulheres achavam que os outros percebiam a sua seropositividade devido à lipodistrofia, efeito colateral dos antirretrovirais.

Marques194 2006 Crianças com cancro (n=25)

O estudo demonstrou a relação entre cancro e stress infantil, com atribuições negativas da parte das crianças relativas à quimioterapia (dor, sofrimento) e à hospitalização (isolamento, limitação no brincar, impedimento de frequentar a escola).

Fialho,

Silva195 2004

Mulheres mastectomizadas

A mastectomia gerava, para além das consequências físicas, sequelas psicológicas que podíam levar ao sentimento de perda de feminilidade, alterar a sexualidade e induzir modificações nas relações familiares e sociais das mulheres afetadas. Almeida et

al.196 2001

A tristeza foi um relato frequente entre as mulheres estudadas, sendo associada à mutilação duma parte do corpo, à alteração da autoimagem e ao distanciamento dos padrões estéticos vingentes, bem como à preocupação com a opinião dos filhos, marido e familiares sobre a sua nova imagem.

Duarte,

Andrade197 2003 Nove das 20 mulheres apresentavam problemas de relacionamento conjugal, com diminuição na frequência de relações sexuais. Biffi,

Mamede198 2004

Para algumas mulheres mastectomizadas, a alopécia, um dos efeitos colaterais da quimioterapia, podia trazer maior sofrimento do que a própria mastectomia já que, no contexto social, a perda do cabelo mostra o diferente, o não belo, a pessoa inquestionavelmente adoecida, reforçando sentimentos de compaixão sentidos

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pelos outros e pela própria mulher. Fallon et

al.199 1997 Doentes

submetidos a transplante renal

Consultas hospitalares frequentes, especialmente nos primeiros 6 meses pós- transplante, tratamento e efeitos colaterais deste (incluindo o ganho de peso, devido à corticoterapia e dieta liberal) eram importantes fontes de stress. Ravagnani

et al.200 2007

A qualidade de vida dos doentes podia ser comprometida pelo stress em relação à saúde e pelos efeitos colaterais das medicações, não se verificando diferença significativa nos scores de qualidade de vida nos períodos pré e pós-transplante. Fugisawa et al.201 2000 Doentes submetidos a transplante renal; doentes hemodialisados

A comparação da qualidade de vida de pacientes transplantados renais e em hemodiálise demonstrou melhor qualidade de vida dos transplantados no que se referia à saúde física, mas não à mental, o que aponta para a necessidade de acompanhamento psicológico destes doentes.

Fisher et

al.202

.

1998

Não havia diferença significativa na qualidade de vida de pacientes em diálise e de pacientes transplantados, não obstante o transplante libertar o paciente das restrições da diálise e permitir-lhe maior independência. A ausência de melhoria na qualidade de vida pós-transplante estava associada à preocupação com a saúde física, especialmente à rejeição do enxerto, à mudança na imagem corporal decorrente dos efeitos da medicação imunossupressora e à ansiedade sobre perspetivas futuras, como as relacionadas com a vida profissional.

Tsuji- Hayashi et al.203 1998 Doentes submetidos a transpante renal e grupo contolo (n=395)

A qualidade de vida melhorou após transplante renal. Não obstante, quando comparados com o grupo controlo, os transplantados tinham autoestima mais baixa e maior autopiedade, considerando-se ainda doentes e suscetíveis a múltiplas intercorrências clínicas.

Sebastian,

Maia204 2005 sistemática Revisão

O procedimento cirúrgico gerava diversos tipos de reação emocional no doente, que percecionava o futuro como incerto e experimentava vários medos (de dor, incapacidade, morte, entre outros)

Assim, muitos tipos de tratamentos encontram-se submetidos a significações com impacte psicossocial. Segundo Gameiro,205 a pessoa doente tem em conta, na sua reflexão, os males, os danos, as ameaças em relação ao futuro, assim como os possíveis ganhos que se relacionam com a doença. Um tratamento efetuado anteriormente por uma pessoa conhecida que não teve bons resultados, posteriormente influenciará negativamente a pessoa doente (vinheta 90).

Vinheta 90 – Caso da Aida

Aida, 84 anos, veio à consulta para vigilância da hipertensão arterial, referindo valores tensionais elevados, e por queixas de ansiedade e exacerbação sintomática do cólon irritável.

Contou que foi à consulta de Oftalmologia à qual tinha sido referenciada meses antes. Foram-lhe diagnosticadas tensão ocular elevada e cataratas, tendo-lhe sido sugerida cirurgia.

Aida encontrava-se em estado de grande ansiedade – o pai, diabético, cegara (era ela ainda adolescente) e, desde então, receava que lhe acontecesse o mesmo; considerava-se demasiado velha para ser operada; uma amiga, do centro de convívio que frequentava, cegou de um olho na sequência de cirurgia às cataratas; não conseguia aplicar os colírios que foram prescritos, dependendo para tal da filha, com quem não vivia.

Tentou-se acalmar Aida; procurou-se que associasse a elevação dos valores tensionais e a intensificação sintomática do cólon irritável à ansiedade; explicou-se--lhe que a cirurgia às cataratas é simples, efetuada em grande parte dos casos precisamente em pessoas idosas e era o meio eficaz de impedir que o seu medo se concretizasse; apontaram-se exemplos de outras pessoas igualmente idosas que, após cirurgia às cataratas, recuperaram a acuidade visual, sendo o caso da amiga exceção à regra; tentou- se identificar ajudas, entre vizinhos e no centro de convívio de idosos, para aplicação dos colírios e treiná-la no procedimento. Estando na sala de espera, a aguardar consulta, uma idosa recentemente submetida, com sucesso, a cirurgia das cataratas, foram postas a duas em contacto, improvisando-se um “mini” grupo de entreajuda para o momento.

Tratamentos aparentemente simples, facilmente enquadráveis no quotidiano, não indutores de sofrimento físico ou de problemáticas psicológicas, podem, ainda assim, interferir com aspetos importantes da vida da pessoa doente. Por vezes as implicações negativas do tratamento são evitáveis, desde que o médico as tenha presente e as valorize (vinheta 91).

Vinheta 91 – Caso do César

César, 54 anos, divorciado, no momento sem MF atribuído, veio à “consulta de reforço” pedir exames auxiliares de diagnóstico, incluídos no programa de seguimento da sua hipertensão arterial, e renovação de receituário.

Já de pé, com a receita e requisição de exames na mão, referiu ter uma namorada desde há 1 mês e dificuldades de ereção. A receita foi anulada e o betabloqueante substituído por outro anti-hipertensor.

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No Quadro LVII indicam-se outras vinhetas clínicas deste estudo em que as repercussões psicossociais de tratamentos da DC se manifestavam com especial agudeza.

Quadro LVII – Outras vinhetas clínicas com referência a repercussões psicossociais de tratamentos

Descrição Vinhetas

A pessoa doente tinha dificuldades na aceitação da hemodiálise ou considerava que esta

lhe afetava relevantemente a qualidade de vida 3, 95, 149 Estoma digestivo causava aversão à pessoa doente, que assim se recusava a aprender

os autocuidados relacionados 7

Portadora de pacemaker restringia atividade por acreditar que este se poderia deslocar 8

A pessoa doente aludia aos tratamentos como se fossem agressões ou receava-os 8, 25, 89, 90, 102

A pessoa doente não aceitava as consequências da cirurgia do cancro da laringe e da radioterapia (alterações da qualidade da voz e dificuldade na deglutição), recusando-se a falar ou fazendo-o por monossílabos e não permitindo que lhe triturassem os alimentos

32, 40

Mastectomia causava problemas de autoimagem e afetava o sentimento de feminilidade 35, 41, 42, 51, 113 Linfedema após tratamento cirúrgico de cancro da mama incapacitava a pessoa doente

para determinadas atividades, com repercussões na vida pessoal e profissional 69 Por medo, a pessoa doente recusava a cirurgia indicada para a sua doença, dadas as

complicações anestésicas que sofreu em cirurgia anterior 89 Os tratamentos reforçavam o estatuto de doente, que a pessoa recusava, pelo que

rejeitava-os 115, 147

Os tratamentos tinham repercussões negativas na sexualidade 91, 102 No Quadro LVIII, sistematizam-se as intervenções médicas descritas nas vinhetas clínica apresentadas neste item.

Quadro LVIII – Intervenções médicas – repercussões dos tratamentos da doença crónica

TIPOLOGIAS DE INTERVENÇÃO Vinhetas

Controlo dos sintomas e da evolução das doenças 91

Suporte à gestão do autocuidado (promoção da aquisição de aptidões necessárias à

gestão da doença) 90

Suporte psicossocial (tranquilização da pessoa doente) 90

Mudança de crenças 90

Mobilização de recursos familiares/outros recursos informais 90

Informação sobre a doença 90

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