• Nenhum resultado encontrado

O Caminho Percorrido pela Investigação Qualitativa e Controvérsias

3. Critérios de cientificidade na investigação qualitativa

Como descrito na caraterização dos marcos históricos da IQ, a questão do rigor científico da investigação está envolvida numa acesa polémica, que se arrasta há muito.

Temos, por um lado, a posição “purista”22 ou “moneteísta”23 dos que consideram que a natureza intrínseca da IQ não precisa de se preocupar com os critérios de cientificidade adotados pelo modelo da investigação quantitativa, com normativo e forte cariz positivista, que apenas faz sentido no âmbito da investigação realizada nas Ciências Naturais e Exatas.24 A radicalidade desta posição está subjacente na pergunta de Janesick: para que insistir “(...) nessa obsessão constante pela santíssima trindade da validade, fiabilidade e generalização?”25

No outro extremo, temos os que consideram que os conceitos de validade e fidedignidade, típicos da investigação quantitativa, deveriam também ser aplicados à IQ.24

Em posição intermédia, temos a linha dos que defendem que a IQ se deve pautar por critérios de qualidade científica, embora em termos totalmente distintos dos padrões positivistas clássicos, assumidos pela investigação quantitativa.24

Interessando-nos mais esta perspetiva não unilateral, discutimos a aplicabilidade dos critérios de cientificidade à investigação qualitativa.

A validade de um trabalho científico pode ser genericamente definida como a correspondência da investigação à realidade.26 A elaboração original do conceito, positivista, relaciona-o com a objetividade, a possibilidade de repetição do experimento, a abertura à verificação por outros e a capacidade de generalização.27

Em IQ, existem várias possibilidades de definição e critérios de validade,28 sendo que umas enfatizam o processo/método (validade interna ou credibilidade) e outras os resultados (validade externa ou transferibilidade).

Cho e Trent29 defendem que a seleção dos métodos de aferição da cientificidade a adotar deve estar na dependência dos distintos objetivos de cada investigação, o que tem subjacente a relativização da procura e do conhecimento da verdade como propósitos finais da investigação científica.

Para além desta ausência de normativo na avaliação da cientificidade da IQ, também a multiplicidade terminológica para conceitos afins presente na literatura dificulta a clareza dos mesmos.24

Demo30 define critérios, internos e externos, para que um trabalho seja considerado científico:

- Os critérios internos seriam a coerência, a consistência, a originalidade e a objetivação (termo usado pelo autor em substituição de objetividade, dado recusar a possibilidade de um conhecimento objetivo). A coerência significaria argumentação lógica, premissas iniciais, construção do discurso e conclusões congruentes entre si. A consistência traduzir-se-ia na qualidade argumentativa do discurso e na capacidade de resistir ao contraditório. A originalidade relacionar-se-ia com a inovação, geradora de avanços no conhecimento. A objetivação significaria a capacidade de reproduzir, o mais fielmente que for possível, a realidade.

O critério externo seria a intersubjetividade, ou seja, a opinião dominante sobre o estudo na comunidade científica em determinada época e lugar. O critério é considerado externo

40

por a opinião ser algo que é atribuído de fora, mesmo se oriunda de um especialista na área. Deste critério decorrem outros, sendo exemplos a divulgação, a comparação crítica, o reconhecimento generalizado ou o encadeamento de pesquisas sobre o memo tema ou em determinado paradigma.

Lincoln e Guba31 consideram que o valor científico da investigação

interpretativa/construtivista deve ser avaliada pelos seguintes critérios: credibilidade, termo equivalente ao de validade interna no paradigma positivista,24 que se refere ao grau com que as construções/reconstruções do investigador reproduzem os fenómenos em estudo e ou as perspetivas dos participantes na investigação; transferibilidade, termo paralelo ao da validade externa,24 que diz respeito à possibilidade de os resultados obtidos num determinado contexto serem aplicados num contexto diferente; consistência (confiabilidade, para outros autores), termo equivalente à fidedignidade,24 que corresponde à capacidade de investigadores externos seguirem o método usado pelo investigador; e aplicabilidade ou confirmabilidade, termo equivalente à objetividade no positivismo,4 que corresponde à capacidade de outros investigadores confirmarem as construções do investigador.

Relativamente à validade interna (ou credibilidade), o “problema” reside no fato da IQ ser sempre interpretativa, estando a subjetividade do investigador presente em todo o desenvolvimento da pesquisa.

Lincon e Guba31 propõem, entre outras, as seguintes formas para operacionalizar a credibilidade na IQ:

- “Prolonged engagement”, definido como um investimento no tempo necessário para

atingir os objetivos da investigação, aprender a cultura dos participantes, criar confiança e testar informação contraditória introduzida por distorções, tanto do investigador como dos participantes;

- Revisão por pares, que consiste, na explicitação de Erlands et al.,32 em permitir que colegas conhecedores da problemática e do processo de pesquisa, embora desinseridos do seu contexto, analisem os dados, testem hipóteses de trabalho e escutem as ideias e preocupações do investigador;

- Revisão por participantes (validação comunicativa33 ou validação dos respondentes,34 na terminologia de outros autores), que consiste em devolver aos participantes no estudo os resultados da análise do investigador para que possam verificar se as interpretações deste refletem as suas experiências/ideias/sentimentos. No entanto, como reparam Gaskell e Bauer,35 o ator social não pode exercer autoridade absoluta nas descrições e interpretações da sua ação, deixando o investigador refém delas, o que comprometeria até a independência da investigação.

Quanto à transferabilidade, o “problema” é frequentemente colocado em termos do pequeno número de sujeitos e ausência de aleatoriedade da amostra na IQ.

Segundo Lincoln e Guba,31 o fardo da prova da transferabilidade recai sobre a pessoa que aplica os resultados noutro contexto, pois conhece o ambiente em que o faz, o que não acontece com o investigador original. A responsabilidade deste terminará no momento em que fornece um conjunto de dados descritivos que possibilitem juízos de semelhança. No mesmo sentido, Peshkin36 fala da generalização feita pelo “utilizador”. Segundo este conceito, não seria o investigador a fazer a generalização, mas sim o leitor, cabendo-lhe avaliar e selecionar os aspetos da investigação que se aplicam à sua situação específica. Assim, visando a transferabilidade, o investigador deve fornecer uma descrição clara, rica e detalhada de modo a representar a diversidade de perspetivas dos participantes e a forma como estas conduziram a uma interpretação que atendeu tanto às variações como às redundâncias em diferentes contextos/condições.37

41

descobertas que possam ser generalizadas a todo o conjunto da população, mas o único, o singular, o particular, o que aquele grupo ou pessoa disse, que até pode ser altamente significativo e generalizável a outro, mas isso não constitui o objetivo ou finalidade. Peräkylã,38 focando-se nos estudos de análise de conversação baseados em amostras reduzidas de participantes, questiona se estes poderão reivindicar uma relevância mais ampla. Segundo a autora, a questão da generalização pode ser abordado a partir de um conceito chave, o da possibilidade. Assim, os resultados, se não são generalizáveis enquanto descrições do que as pessoas fazem, poderão sê-lo em termos do que as pessoas podem fazer. Será em termos de possibilidade de ocorrência que os estudos qualitativos têm a possibilidade de utilizar a generalização como forma de validação.

Para Punch,39 existem duas formas de generalizar os resultados de um estudo qualitativo: a conceptualização e o desenvolvimento de "hipóteses de trabalho”, significando estas que o investigador consegue avançar uma ou mais hipótese novas que relacionam conceitos ou fatores.

Mayring40 introduz o conceito de “generalização argumentativa” no que se relaciona com os achados apoiados em estudo de caso, devendo a argumentação ser explícita e apontar quais as generalizações factíveis para circunstâncias específicas.

Ainda segundo Boaventura Sousa Santos,41 o conhecimento é local e é total, dado que: a exemplaridade do fenómeno local transforma-o em pensamento total ilustrado; os conceitos e as teorias desenvolvidos localmente “emigram”, podendo ser utilizados fora do seu contexto de origem, não como generalização, mas como possibilidade; o conhecimento total não é determinístico e, sendo local, não é descritivista.

Em relação à consistência ou confiabilidade, os problemas na IQ decorrem da flexibilidade do desenho,37 do investigador ser o principal ou mesmo o único instrumento de pesquisa37,42 e da seleção dos participantes,42 que levam a que o estudo não seja replicável e os resultados sejam irrepetíveis.37,42

Ao discutir a fidedignidade/consistência/confiabilidade, Kirk e Miller43 distinguem três tipos: a quixotesca, que ocorre quando o mesmo instrumento gera repetidamente a mesma informação; a diacrónica, associada à estabilidade da observação no tempo; a sincrónica, que inclui a utilização de diferentes instrumentos e medidas para analisar o mesmo fenómeno (triangulação). Segundo a autora, é a confiabilidade sincrónica que tem maior relevância na investigação qualitativa de fenómenos sujeitos à historicidade.

No entanto, Spink44 nota que a questão da validade [e fidedignidade] pressupõe uma realidade única, quando esta é “caleidoscópica”. Assim, considera a triangulação uma estratégia de enriquecimento da investigação e não da sua validação.

Não obstante a observação de Spink,44 a triangulação, assim como o estudo de casos negativos (equivalentes a outliners da investigação quantitativa)24 são apontados por diversos autores como formas de aumentar a validade e a confiabilidade, dado permitirem aceder a contradições entre conjunto de dados, podendo então usar-se as diferenças como forma de reflexão, o que implica voltar a olhar para os dados para encontrar justificação para as diferenças.24

Segundo indicado por Coutinho,24 as estratégias de verificação que asseguram simultaneamente a validade e a confiabilidade são as seguintes: coerência metodológica, isto é, articulação correta entre a questão da investigação e os procedimentos metodológicos; adequação da amostragem teórica, ou seja, seleção dos participantes que melhor representam ou conhecem o tópico em estudo, obtenção da saturação de dados (o investigador percebe que já não está a ouvir ou a ver nada de novo) e inclusão de casos negativos; processo interativo de recolha e análise de dados, que permita a interação mútua entre o que é conhecido e o que se precisa de conhecer; pensar de forma teórica, requerendo que as ideias emergentes dos dados sejam reconfirmadas por novos dados,

42

bem como voltar atrás para constantemente pensar e repensar; e desenvolvimento de teoria, que implica progredir com sensatez entre a microperspetiva dos dados e a macroperspetiva de tipo conceptual/teórica.

Por último, os problemas da confirmalidade nos estudos qualitativos decorrem destes não procurarem a homogeneidade, mas sim as diferenciações e especificidados nos fenómenos sociais. Assim, a verificação da confirmabilidade circunscrever-se-ía à certificação, nas palavras de Eisenhart apud Coutinho,24 se o investigador “(...) está envolvido na actividade como um insider mas é capaz de reflectir sobre ela como um outsider”.

Apesar da consistência/confiabilidade e da confirmabilidade corresponderem a noções distintas na investigação qualitativa, alguns autores preconizam que ambas sejam garantidas por auditorias, definidas por Schwandt apud Coutinho24 como “o processo pelo qual uma terceira parte examina sistematicamente o processo de pesquisa conduzido pelo investigador.” No entanto, outros autores45 levantam questões éticas que o processo de reanálise implica.

Outline

Documentos relacionados