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Necessidade de lidar com o abandono, o adiamento ou a reformulação de projetos pessoais

NA PESSOA E NA FAMÍLIA

3. Repercussões da doença crónica

3.6. Necessidade de lidar com o abandono, o adiamento ou a reformulação de projetos pessoais

Para Brannon e Feist,42 um dos maiores impactes das DC verifica-se na autoperceção do indivíduo - o diagnóstico de uma doença dessa natureza muda o modo como a pessoa se vê a si própria e à sua vida, levando, frequentemente, a mudanças de planos para um futuro imediato e a longo prazo. O abandono, o adiamento ou a reformulação de projetos pessoais ocorrem, não só devido a uma nova hierarquização do que importa na vida, mas também porque a doença pode ter comprometido a possibilidade orgânica de desempenhar o requerido por determinado projeto (vinheta 26) ou obrigado a uma reorganização do quotidiano que roubou o “espaço” para nele investir (vinheta 27). No caso de necessidade de abandono de projetos antes acalentados, é salutar que a pessoa faça novas escolhas e encontre novas oportunidades de desenvolvimento (vinheta 26).

Vinheta 26 – Caso do Martim

Martim, desde criança, desejava ser piloto de aviões. Aos 17 anos, terminava então o ensino secundário, foi-lhe diagnosticada doença de Chron, impeditiva de aprovação nas provas de aptidão física para o curso que lhe daria acesso a uma carreira na aviação. Renunciando, com mágoa, a um desejo acalentado durante anos, optou por um curso de engenharia.

Aos 40 anos de idade, Martim tinha um percurso de sucesso incomum, que considerava fonte de múltiplas gratificações, não lamentando a alteração a que foi obrigado.

Perante a alusão de Martim à viragem que a doença provocou na sua vida, reforçou-se positivamente a sua capacidade de resolução da perda, de redefinir objetivos e descobrir prazer nos novos caminhos.

Vinheta 27 – Caso do Valter

Valter, desenvolvia um projeto académico, quando foi diagnosticado a Emília, sua mulher, cancro da mama.

Embora assombrado pela angústia, durante algum tempo tentou conciliar o apoio a Emília com o acompanhamento mais próximo dos filhos pequenos, as obrigações profissionais que mantinha e o trabalho científico. A pressa com que era obrigado a viver na

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tentativa de tudo conciliar, comprometia a qualidade do tempo que dedicava a cada uma destas áreas da sua vida, permanentemente preocupado com as restantes e atormentado com sentimentos de culpa. Acabou por abandonar, esperava que temporariamente, o projeto académico, apesar de referir constrangimento perante as pessoas nele envolvidas, por não cumprimento de compromissos assumidos.

Validou-se a sua decisão e procurou-se persuadi-lo de que todos certamente perceberiam que as dificuldades da sua situação familiar teriam, necessariamente, de competir em tempo e atenção com o projeto que adiou. Por outro lado, era naquele momento, e não noutro, que os seus familiares diretos mais precisavam do seu suporte, sendo que a qualidade deste tinha implicações presentes e futuras na sua família, o nível mais significativo dos seus relacionamentos, pelo que tinha deixado sempre transparecer. Por vezes, a DC determina o abandono de projetos sem que estes sejam substituídos por outros. Ora, a expressão do nosso eu realiza-se na atividade. As nossas ações descrevem a nossa personalidade, levam a outras ações e contribuem para mudanças psicológicas, num processo de desenvolvimento contínuo enquanto indivíduos. Assim, a perda de objetivos e, consequentemente, a restrição do “mundo real” em que se atua e a inatividade, podem levar ao definhamento da pessoa, bem como a emoções e sentimentos negativos – vinheta 28.

Vinheta 28 – Caso da Bárbara – a retração do eu

Bárbara, 58 anos, 11 anos de escolaridade, divorciada, com um filho adulto residente noutro país, tinha um restaurante “onde fazia da tudo um pouco” (sic), que encerrou na sequência do seu adoecer com cancro da mama, há 6 anos, tanto mais que o mesmo tinha “também pouca saúde, só que de natureza económica” (sic).

Aquando da fase de diagnóstico e tratamento, a sua vida era dominada pela doença, dada a multiplicidade de consultas e de procedimentos diagnósticos e terapêuticos, bem como a ansiedade e a angústia permanentes de “não saber se me safava” (sic). Com o passar do tempo, já com condições objetivas de viver o tempo de modo “solto”, não sabia como usá-lo, relatando que “definho à frente da televisão” (sic) e “sinto-me inútil e sem valor” (sic).

Dada a crise económica do país, não se aventurava noutro projeto profissional próprio e considerava impossível arranjar trabalho por conta de outrem, “para mais com a minha idade” (sic), vivendo de subsídio estatal e da ajuda económica do filho. Incentivada a frequentar o cinema, como antes fazia, e a conviver, ripostava “não tenho dinheiro, nem paciência para ir ao cinema” e “tornei- me desinteressante, quem não faz nada, também não tem nada para conversar” (sic). Relatava que “a letargia onde estou” (sic) já tinha sido percebida pelo filho, mesmo à distância, sendo frequente os telefonemas mensais que este lhe fazia acabarem em conflito, pela pressão por ele exercida para “que eu me mexa e saia desta vida parva” (sic).

Foi-lhe então dito que o filho tinha razão, independentemente da forma como a exprimia, sendo esta certamente reflexo das próprias dificuldades emocionais em saber que a mãe não se encontrava bem. Reforçou-se que deveria contrariar a tendência para fechar- se em casa, pois, quanto mais tempo passasse assim, mais difícil seria regressar ao “mundo real”. Poderia progredir passo a passo, começando por ir diariamente até ao jardim e fazer caminhadas, pois só o facto de apanhar sol e ver gente já seria benéfico. Prescreveu-se um antidepressivo e referenciou-se para Psicologia Clínica.

Nos Quadros XIII e XIV apresentam-se outras vinhetas clínicas deste estudo em que foram interrompidos, reformulados ou abandonados projetos pessoais e as tipologias de intervenção médica aplicadas nos casos das vinhetas apresentadas neste item, respetivamente.

Quadro XIII – Outras vinhetas clínicas referentes a pessoas doentes ou seus familiares que tiveram de lidar com mudanças nos seus projetos por causa da doença

Descrição Vinhetas

A doença crónica levou ao abandono de projetos, mas a pessoa doente encontrou novas

oportunidades de desenvolvimento 26

A incerteza derivada da doença levava o doente a viver apenas o momento presente,

desistindo de realizar projetos futuros 23

As exigências da doença levaram ao abandono, definitivo ou provisório, de projetos em

desenvolvimento, por priorização de outras atividades, como cuidar de si ou dos outros 27, 28, 41, 60, 113

As exigências da doença levaram ao abandono de projetos, sem que outros objetivos os

substituissem, com consequente retração na expressão do eu 23, 28, 37, 60

Quadro XIV– Intervenções médicas – lidar com a mudança de projetos pessoais

TIPOLOGIAS DE INTERVENÇÃO Vinhetas

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Referenciação/integração de informação e decisões com outros

prestadores/provedoria do doente (referenciação a outros profissionais de saúde) 28

Suporte psicossocial (suporte ao processo de tomada de decisões, reformulação positiva das

situações decorrentes da doença, acolhimento e caraterização de sentimentos e emoções) 27, 28

Incentivo aos contactos sociais 28

3.7. Necessidade de atribuir um significado à doença e de ressignificar a

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