• Nenhum resultado encontrado

Necessidade de conhecer e adaptar-se às normas do(s) serviço(s) de saúde e de estabelecer relações eficazes com os profissionais de saúde

NA PESSOA E NA FAMÍLIA

3. Repercussões da doença crónica

3.4. Necessidade de conhecer e adaptar-se às normas do(s) serviço(s) de saúde e de estabelecer relações eficazes com os profissionais de saúde

Os serviços de saúde têm regras de funcionamento que devem ser respeitadas pelos seus utilizadores. A adaptação a essas regras pode não ser um processo fácil - por uma lado, essas regras podem não estar suficientemente explícitas e divulgadas ou, então, serem demasiado rígidas, por vezes burocráticas, não havendo uma preocupação dos serviços de saúde em adaptar a sua resposta às espeficidades da comunidade e de cada situação individual; por outro lado, algumas pessoas podem ter dificuldades em cumpri-las, independentemente de as conhecerem e da sua adequação. Esta última situação acontece quando a pessoa, em todas as esferas da sua vida, tem normas caóticas ou inexistentes (vinheta 20); tem condicionalismos relevantes e dificilmente transponíveis no seu quotidiano que colidem, de facto, com as regras de utilização dos serviços (vinheta 21); apresenta perturbações psiquiátricas ou experimenta grande ansiedade e medo perante uma agudização de DC ou uma doença aguda, o que condiciona a sua tolerância aos tempos de espera (vinheta 22); preocupa-se quase exclusivamente com a sua própria adversidade ou com a sua conveniência pessoal, não tendo abertura para considerações de ordem administrativa, de organização racional ou de produtividade dos serviços de saúde, como transparece em 10 das 31 reclamações escritas apresentadas na USF Santo Condestável no ano de 2013 – Quadro VIII.

Na USF Santo Condestável, existe um guia de acolhimento ao utente, entregue no ato de inscrição na unidade, que inclui as regras de utilização dos serviços.

Vinheta 20 - Caso da Salomé

Salomé, 56 anos, desempregada, deixava fluir as horas e os dias, sem programar minimamente tarefas, mesmo as relacionadas com a confeção de refeições ou a limpeza da casa. Apresentava diabetes mellitus, hipertensão arterial, osteoartroses e obesidade. Apesar da morbilidade, não tinha horário definido para refeições, não selecionava os alimentos que ingeria e esquecia-se frequentemente da toma de fármacos.

Salomé recorria à consulta de MGF, quase sempre sem marcação prévia, alegando já não ter medicação para o dia seguinte ou sentir dores osteoarticulares. Na unidade de saúde vigorava um sistema de pedido de renovação de receituário de medicação prolongada, não presencial, havendo ainda um horário para atendimento de situações agudas, com marcação no próprio dia, que Salomé, apesar de repetidamente informada, parecia ignorar. Sentava-se na sala de espera, aguardando uma oportunidade para abordar a MF e expôr-lhe o que necessitava. Explicando-lhe a disrupção que causava no fluxo de atendimentos e, consequentemente, na vida das pessoas que tinham a sua consulta previamente programada, assegurava-se a resposta à sua solicitação, no caso da renovação de receituário, sendo programado novo atendimento, em data e horário negociado com ela. No entanto, Salomé faltava quase sempre a essas consultas previamente marcadas.

Apesar de convocações sucessivas para consultas e tentativas de sensibilização para a importância do seguimento da diabetes mellitus e da hipertensão arterial, Salomé estendia à utilização dos serviços de saúde a ausência de regras que se verificava globalmente na sua vida, tendo um acompanhamento irregular dos seus PS.

Vinheta 21 – Caso da Olinda

Olinda, 49 anos, veio a uma consulta por queixas relacionadas com insuficiência venosa dos membros inferiores e seguimento de diabetes mellitus e hipertensão arterial .

Tendo-lhe sido requisitados exames complementares de diagnóstico, foi-lhe proposto a marcação de uma consulta específica de diabetes mellitus, com pré-consulta de enfermagem. Olinda recusou, dado o seu horário ao início da tarde – era proprietária de um pequeno restaurante, colaborando na confeção das refeições e servindo, ela própria, os almoços aos clientes.

Assim, os principais procedimentos previstos para esse tipo específico de consulta, incluindo exame dos pés, foram aplicados, de modo oportunístico, naquele momento, não obstante a ausência de pré-consulta de enfermagem.

100

Tomás, 52 anos, com 4 anos de escolaridade, empregado de armazém, tinha hipertensão arterial. Com consulta marcada no próprio dia, vociferava na sala de espera, aparentemente pelo atraso de 15 minutos na sua consulta.

Já no gabinete médico, sinalizou-se a inadequação do seu comportamento, pois, por vezes, situações mais complexas podem requerer mais tempo de consulta do que aquele que lhe está alocado, gerando atrasos. Para mais, se naquele dia tinha acontecido com a consulta de outra pessoa, noutra ocasião poderia ser com a dele próprio, devendo encarar esse fator como uma segurança, pois sabia que dispunha do tempo de que nececessitava e não apenas do rigorosamente estipulado.

Tomás, ainda agressivo, respondeu que estava numa situação que não podia esperar – sentia palpitações, tonturas, sudorese e mal- estar, pelo que tinha ido à farmácia medir a pressão arterial, apresentando valores de 160/100 mm Hg. A pressão arterial determinada no momento era de 168/109 mm Hg.

Foi-lhe transmitido que os sintomas referidos, bem como a própria elevação dos valores tensionais, dever-se-iam provavelmente a ansiedade. Tomás, então, referiu problemas laborais e conjugais, admitindo, desde há uns meses, irritabilidade, insónias, hiperventilação, diminuição da memória e da capacidade de concentração, bem como aumento do consumo de álcool.

Foi-lhe administrado diazepam, tendo-se monitorizado a descida dos valores tensionais durante as duas horas seguintes. Abordaram-se estratégias de gestão do stress, alertou-se para o risco de o gerir aumentando o consumo de álcool, prescreveu-se sertralina e marcou-se nova consulta.

Ao receber a receita, deixando transparecer constrangimento, Tomás desculpou-se pelo desacato na sala de espera. Foi-lhe então dito que, durante a consulta, tornou-se compreensível o contexto emocional em que o seu comportamento ocorreu. No entanto, para o seu próprio equilíbrio, não deveria desencadear conflitos por motivos menores, geradores de ainda mais ansiedade. Assim, importava que identificasse as emoções negativas decorrentes de acontecimentos e, ainda que as não pudesse anular, importava regular a sua expressão, em vez de agi-las ou expressá-las de modo inapropriado.

Quadro VIII – Reclamações escritas da USF Santo Condestável no ano de 2013 indiciadoras de atitude não colaborante com as regras do serviço

Tipologia da

reclamação Descrição Número de casos

Dificuldade em conseguir atendimento

Utente, pretendendo uma declaração sobre o seu estado de saúde, recusou-se a marcar consulta, insistindo em contactar naquele momento com a médica de família, de modo a poder levar o que necessitava de imediato. As dificuldades que lhe foram postas, dado a médica estar a atender doentes com consulta

marcada, motivou a reclamação. 2

Utente, cuja médica de família se encontrava ausente, pretendia consulta de intersubstituição para uma determinada médica, que não era quem estava escalada para o efeito, pelo que a sua preferência não foi respeitada, originando a reclamação.

Recusa na emissão de credenciais

Utente pretendia a transcrição, pela médica de família, das requisições de exames complementares de diagnóstico passadas no hospital, porque lhe era mais conveniente realizá-los em centro convencionado com o Serviço Nacional de Saúde perto da sua residência. A recusa, dado os centros de custos serem diferentes, motivou a reclamação.

1

Recusa de consulta A médica de família recusou a realização de consulta sem marcação a acompanhante da pessoa que estava a ser consultada, levando à reclamação

daquele. 1

Tempo de espera para atendimento

Utente compareceu para consulta com 3 horas de atraso, tendo a médica acedido a atendê-lo no fim das consultas marcadas de outros utentes. O tempo

de espera, que considerou excessivo, esteve na base da reclamação que fez. 1 Doentes fora da área Doentes inscritos noutras unidades de saúde não muito distantes, com situações de doença consideradas pelos profissionais de saúde como não

urgentes, reclamaram por recusa de atendimento naquela unidade de saúde. 4 “Má” prática Utente não incluído na população-alvo para vacina antigripal e não portador de prescrição médica da mesma reclamou por a enfermeira se ter recusado à

sua administração. 1

TOTAL 10

Todas as reclamações dos utentes são analisadas em reuniões da USF e, quando considerado indicado, são adotadas medidas corretivas do funcionamento do serviço. O não cumprimento das normas dos serviços de saúde por pessoas demasiado egocentradas e sem motivos considerados aceitáveis para tal, a utilização excessiva dos serviços, bem como comportamentos agressivos, pouco colaborantes, impertinentes, punitivos ou manipuladores por parte dos utentes ou dos seus acompanhantes frequentemente geram comportamentos hostis dos profissionais de saúde. No entanto, essa hostilidade faz a agressividade evoluir em escalada, com perda de eficácia terapêutica, insatisfação dos utilizadores dos serviços e dos próprios profissionais. Estes devem treinar e adotar comportamentos assertivos, por serem os eficazes.

101

estabelecerem entre si relações estreitas, de confiança e duradouras. Quando conseguidas, verifica-se o reconhecimento mútuo do contexto particular de cada um, conhecendo os prestadores de cuidados a maneira própria da pessoa doente viver os seus PS e a pessoa doente/família a organização do trabalho e o modo de reagir dos profissionais de saúde com quem contacta regularmente, tornando as situações de conflito raras. Porém, a construção desse tipo de relações exige tempo, indicando vários estudos que são necessários entre dois e cinco anos antes do seu potencial se fazer sentir em toda a sua plenitude.41

Nos Quadros IX e X mencionam-se outras vinhetas clínicas que incluem elementos relacionados com a adaptação às regras dos serviços de saúde e apresentam-se tipologias de intervenções médicas descritas nos casos apresentados neste item, respetivamente.

Quadro IX – Outras vinhetas clínicas em que são tratadas questões ligadas às regras do serviço e às relações estabelecidas entre pessoa doente/família e profissionais de saúde

Descrição Vinhetas

As solicitações e interesses da pessoa doente colidiam com as normas do serviço 4, 20

A articulação entre serviços de saúde era pouco eficaz, originando incomodidades à

pessoa doente, que servia de veículo para a partilha de informação entre profissionais 111 O atendimento administrativo em unidade de saúde foi pouco cordial, exacerbando

emoções negativas desencadeadas pelo tempo de espera por atendimento médico 111 A pessoa doente mostrava desadaptação aos horários do hospital, considerando que

estes deveriam ser diversificados, de modo a ajustar-se a diferentes preferências/conveniências dos doentes

79

A pessoa doente desconhecia regras de utilização do serviço e estas não lhe foram

explicitadas 111

No decorrer de uma reestruturação dos serviços, a unidade de saúde não acautelou a

continuidade de cuidados à pessoa doente 109

A pessoa doente sentia-se perdida por alteração do local de prestação de cuidados e

substituição dos prestadores com quem tinha já uma relação estabelecida 109, 110 A pessoa doente ou a cuidadora solicitava exceção às regras do serviço por

constrangimentos com origem nas tarefas laborais ou do cuidar do familiar doente 21, 88 A pessoa doente ou a cuidadora referiam criticamente a falta de personalização dos

cuidados prestados em unidades de saúde 39, 103

A organização dos serviços de saúde insuficientemente orientada para os utentes

exacerbava a perturbação biográfica gerada pela necessidade da sua utilização 4, 103, 111 A pessoa doente, condicionada por alterações de humor prévias ou sintomas físicos,

não tolerava as normas de funcionamento dos serviços de saúde ou os tempos de espera para atendimento

22, 73, 74

A pessoa doente evitou mostrar emoções negativas, o que conduziria a comportamentos

destrutivos da sua relação com profissionais de saúde, de quem necessitava 42

Quadro X – Intervenções médicas - normas dos serviços de saúde e relações entre pessoa doente/família e profissionais de saúde

TIPOLOGIAS DE INTERVENÇÃO Vinhetas

Controlo dos sintomas e da evolução das doenças 22

Deteção oportunista de situações a necessitar de intervenção (depressão

não tratada) 22

Promoção de hábitos de vida salutogénicos 22

Vigilância e tratamento de psicopatologia coexistente 22

Suporte psicossocial (orientação sobre gestão do stress) 22

Informação sobre a doença 22

102

humanização (Promoção de uma organização do próprio trabalho e dos serviços de saúde centrada

nos utentes; divulgação das regras de funcionamento dos serviços junto dos utentes e, se indicado, da sua fundamentação; avaliação das causas de não cumprimento das regras dos serviços e flexibilização das mesmas, se justificado)

Outline

Documentos relacionados