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O Caminho Percorrido pela Investigação Qualitativa e Controvérsias

2. Momentos históricos da investigação qualitativa

Costuma considerar-se que a história da IQ atravessa cinco períodos1,13 com caraterística distintas que, não obstante as disputas por vezes ocorridas com as tendências e correntes anteriores, não as suplantam ou extinguem – passado o período de rotura ou de “crise”, as correntes de IQ de distintos períodos coexistem e adquirem “normalidade” epistemiológica, pelo que importa conhecê-las para um melhor enquadramento desta investigação, metodologicamente não “pura”, dado não se inserir numa corrente específica, mas situar-se em interfaces. Acresce que os períodos históricos da IQ caraterizam-se pelo debate objetivo versus subjetivo e sobre os critérios de cientificidade da IQ, que interessam no desenho, desenvolvimento e discussão da presente investigação.

Período tradicional (1900-1950)

Este marco, onde predomina a etnografia, associa-se ao romantismo e ao idealismo, bem como às querelas metodológicas, com a IQ a reivindicar um estatuto metodológico próprio para as ciências do “mundo da vida”.

Os estudos desta fase, coincidente com a dos impérios coloniais, incidem sobretudo sobre pessoas consideradas “estranhas”, porque diferentes. Emerge o mito do “cientista só”, que deixa o seu lugar e vai para outras latitudes estudar “os outros”. Em lugares distantes e exóticos, o investigador estuda grupos primitivos, diferentes da sua cultura, partilhando com eles o lugar, as experiências, as práticas e os rituais. A descrição destes povos é

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explanada em relatos “objetivos” das experiências do terreno, refletindo as influências do paradigma positivista da ciência.

No Quadro I sumarizam-se as caraterísticas deste período.

Quadro I – Caraterísticas da investigação qualitativa do período tradicional Caraterísticas do período tradicional da investigação qualitativa

- Compromisso com a objetividade, por influência do positivismo;

- Cumplicidade com o poder dos impérios, numa era histórica de colonialismo;

- Crença na estabilidade dos fenómenos ao longo do tempo, como se fossem intemporais e a realidade estudada não fosse suscetível de mudança;

- Crença na ideia de que a etnografia conseguia oferecer ao mundo uma visão completa dos outros, em género de museu.

Neste período, é de referir o caso específico da Escola de Chicago, alicerçada no pragmatismo [corrente da filosofia americana que valoriza as ideias na medida que sejam úteis para a ação e estejam de acordo com a realidade] e no trabalho desenvolvido por Mead. A cidade, em 1900-1920, era alvo de fluxos migratórios intensos, oriundos de outras regiões dos Estados Unidos da América, não conseguindo integrar socialmente os novos habitantes. Daí resultavam criminalidade, com grupos organizados, pobreza e comunidades segregadas. A cidade tornou-se um laboratório para os sociólogos da Escola de Chicago que, nos seus trabalhos, assumiam uma posição empática com o ambiente, as pessoas e os problemas que abordavam, confiantes de que a sua descrição era um meio, não só para a sua revelação e visibilidade, mas também para solucionar as disfunções sociais. As descrições adotavam o estilo do realismo literário, com utilização da linguagem, das perceções, dos sentimentos e dos pontos de vista dos investigados. Em 1937, Blummer,14 estudioso do trabalho de Mead, destacando a importância do indivíduo como intérprete do mundo que o cerca, criou o termo “interacionismo simbólico”. Esta corrente levou ao desenvolvimento de novos métodos de investigação qualitativa que, em consonância, priorizavam as perpetivas dos indivíduos.

Época moderna ou idade de ouro (1950-1970)

Ainda muito ligados ao discurso positivista, neste marco, os investigadores qualitativos reelaboram os conceitos de objetividade, validade e fidedignidade e procuram formalizar os métodos qualitativos, com recurso frequente a algum expediente quantitativo. Surgem alguns argumentos pós-positivistas, de que são exemplos a assunção de que a investigação é influenciada pelos valores dos próprios investigadores e pelo enquadramento teórico que cada um deles costuma utilizar; a defesa da utilização de critérios qualitativos de validade, interna e externa, em estudos qualitativos; e a admissão do princípio de falsificabilidade, da autoria de Popper. Segundo este princípio, a ciência só parcialmente pode captar a realidade, produzindo as descrições mais verosímeis dessa mesma realidade, não obstante estas poderem ser provisórias ou, dito doutro modo, de factos verificáveis extrai-se consequências verificadas que podem, por sua vez, ser refutadas ou falseadas por novos factos.1,15

O debate qualitativo versus quantitativo reaviva-se, com alguns investigadores qualitativos a contestarem a neutralidade do discurso positivista, a hegemonia dos pressupostos experimentais, o absolutismo da mensuração e a cristalização da investigação social num modelo determinista, causal e hipotético-dedutivo. Em contraponto, defendem o compromisso com a emancipação humana e a transformação social, reconhecem a relevância do sujeito, a importância da invenção criadora, do contexto dos dados, da inclusão da voz dos silenciados e da interpretação dos significados. Assim, a observação participante [vide glossário de conceitos] rivaliza com as

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amostragens quantitativas, a entrevista com o questionário e a interpretação sobrepõe-se à estatística.

Estas controvérsias ocorrem num período de guerra fria entre países dos blocos ocidental e do leste, em que a investigação transforma-se em programa político dos países desenvolvidos, sobretudo nos Estados Unidos da América e na União Soviética, que lutam pela supramacia científica mundial. A aplicação de recursos públicos na investigação permite a sua grande expansão.

Sumariza-se as caraterísticas deste período no Quadro II.

Quadro II – Caraterísticas da investigação qualitativa da época moderna Caraterísticas da investigação qualitativa da época moderna

- Discurso dos investigadores qualitativos enraizado na retórica positivista e pós-positivista; - Aperfeiçoamento das técnicas de recolha de dados;

- Preocupações com a validade e a fidedignidade dos dados recolhidos;

- Tentativas de alguns investigadores em traduzir os dados qualitativos em termos estatísticos;

- Influências políticas no trabalho de alguns investigadores qualitativos (dar voz aos menos favorecidos, por exemplo); - Incorporação da investigação qualitativa noutras áreas de estudo, para além da antropologia e da sociologia.

Período de indiferenciação de géneros (1970-1986)

Esta fase, também denominada “dos géneros confusos”,16 é marcada pela transgressão metodológica e fusão transdisciplinar das ciências sociais. Os trabalhos científicos são expostos através de textos de vários géneros literários (contos, símbolos, relatos de experiência pessoal ou de casos) e de analogias do mundo social, utilizando, por exemplo, teatro, jogos ou danças. Crítico desta miscelânea, Geertz17 afirma que falta apenas “A teoria quântica apresentada em versos ou uma biografia em álgebra”.

Com apoio de agências estatais, a IQ desenvolve-se, captando maior adesão de estudiosos. Emergem uma quantidade significativa de correntes, de que se salienta o construcionismo social.17,18 De acordo com esta corrente, o conhecimento do mundo resulta de uma interação ativa e cooperante entre indivíduos em relação, utilizando artefactos socialmente aceites em determinado contexto histórico,17 não existindo um conhecimento assético e incontaminável pelo investigador.18 Assim, o conhecimento contado/escrito resulta de um “dueto”,19 ou seja, da relação dialógica entre investigador e sujeito estudado.

É no construcionismo social que se insereuma variante do interacionismo simbólico, a

grounded theory.20 Segundo Strauss e Corbin, trata-se de “(...) Uma metodologia geral para desenvolver teoria, que está enraizada nos dados sistematicamente recolhidos e analisados. A teoria evolui durante a própria investigação e isso ocorre através da relação dinâmica entre análise e recolha de dados”.21

O Quadro III sumariza as caraterísticas deste período.

Quadro III - Caraterísticas da investigação qualitativa do período dos géneros “confusos” Caraterísticas da investigação qualitativa do período dos géneros “confusos”

- Classificação de todos os procedimentos de investigação não quantitativa como investigação qualitativa;

- Aproximação entre ciências sociais e literatura, com modelos, teorias, métodos e técnicas de análise de dados comuns; - Desafio crescente à noção de verdade absoluta;

- Aparecimento de grande número de novas correntes de análise da realidade.

Crise da representação ou pós-modernismo (1986-1990)

Neste período, de forte rotura com o passado, novos temas e problemas com origem em grupos populacionais específicos trazem novas questões teóricas e metodológicas aos

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estudos qualitativos. A investigação desvincula-se dos referenciais dominantes e tende para o estudo de questões delimitadas, locais, apreendendo o sujeito no ambiente natural em que vive, nas suas interações interpessoais e sociais, nas quais urde os significados e constroi a realidade.13

Uma caraterística central deste período é a recusa de limitação às fórmulas pré-definidas e modelos acabados, por parte da IQ. Ocorre uma forte rotura com o positivismo e pós- positivismo, tornando o debate quantitativo-qualitativo mais abrangente. Questiona-se a capacidade das estratégias quantitativas chegarem à verdade, com crítica veemente aos modelos tradicionais de validade e fidedignidade. Definem-se questões relevantes para o fazer científico, nomeadamente:a consideração do “outro” no processo de investigação; o compromisso do investigador qualitativo com o objeto de estudo;a legitimação, ou não, da vida pública ou privada das pessoas como objeto de estudo.13

O Quadro IV resume as caraterísticas deste período.

Quadro IV – Caraterísticas da investigação qualitativa do pós-modernismo

Caraterísticas da investigação qualitativa do pós-modernismo

- Desprendimento relativo a fórmulas estereotipadas de investigação qualitativa;

- Ênfase na idiossincracia das pessoas e na importância do seu estudo ter em conta variáveis como género, idade, etnia, classe social, cultura, entre outros;

- Controvérsia veemente entre investigadores quantitativos e qualitativos, com questionamento da eficácia das respetivas metodologias chegarem à verdade;

- Questionamento de conceitos como validade, fiabilidade, generalização e objetividade.

Momento Atual (1990 até ao presente)

Atualmente existe, pelo menos, um “cessar-fogo” entre investigadores qualitativos e quantitativos, pese embora o debate entre paradigmas estar ainda em aberto. Tentando responder a uma crítica constante à IQ, a do rigor, discutem-se critérios relativos à cientificidade nas ciências sociais.

Assiste-se à tendência de estudar contextos cada vez mais específicos, uma vez que a subjetividade individual é tida como determinada socialmente - como afirmam Denzin e Lincoln,13 o indivíduo é um elemento constituinte da subjetividade social e, simultaneamente, constitui-se nela. Do mesmo modo, também o investigador estaria marcado pela sua posição social, a observação imbuída de uma teoria, o texto não escaparia a uma posição no contexto político e a objetividade estaria delimitada pelo seu comprometimento com a realidade circundante.

Os mesmos autores13 salientam que o compromisso com as populações estudadas, a preocupação política com a democracia e as exigências de uma ciência social são premissas presentes nos estudos contemporâneos. Nesta corrente, surgem trabalhos sobre grupos oprimidos e desfavorecidos da sociedade, de que são exemplo os estudos sobre minorias, desempregados, condição da mulher, entre outros.

Estes pressupostos alteram a interação investigador-investigado, que se torna mais aberta, confiável, considerada como uma troca e não tanto uma inquirição. Consequentemente, os participantes do estudo são considerados colaboradores, as necessidades e interesses das pessoas são priorizadas no contexto do estudo e os resultados obtidos são partilhados coletivamente pelo investigador e investigados, tornando-se elementos de uma epistemiologia fundamentada em valores. A investigação passa a centrar-se na ação e crítica social, abandonando-se o conceito do investigador distante.

O Quadro V sumariza as caraterísticas do quinto marco.

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Caraterísticas da investigação qualitativa no momento atual - Tentativa de consensualizar critérios de validação do conhecimento obtido pela via qualitativa;

- Tendência às teorias serem lidas em termos contextuais e locais, terem uma amplitude de pequena escala e dirigirem-se para problemas e situações específicas (exemplos: famílias, em vez de comunidades, ou turmas, em vez de escolas);

- Focagem em problemas sociais, quase tocando o ativismo político;

- Manutenção da preocupação com a representação do “outro” e recusa da ideia que há indivíduos/culturas/ contextos padrão.

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