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CARLOS, 48 ANOS

No documento Histórias de Vida, vozes da rua (páginas 126-130)

Eu vim buscar atendimento, por causa da tosse que eu tava ontem. E por causa da limpeza. É muito difícil mesmo ter um negócio pra tomar banho. Eu tomo banho no bicão também. Tomo no Jacaré, na linha, na estação, e tem um bicão lá no Manguinhos também. Lá em baixo do Manguinhos tem um bi- cão também.

Cheguei a me curar da tuberculose. Seis meses, fiz o tratamento direitinho. Agora é normal, resfriado mesmo. Essa tosse, inco- moda... Quando eu não venho aqui eu vou direto pro Salgado Filho, no Méier. Lá eu fui bem atendido, quando eu tenho um machucado qualquer, alguma coisa.

Vim parar na rua depois que minha mulher faleceu. Faz cinco anos já.

Eu tinha minha família e eu combinei com ela que eu ia cuidar dos meus filhos junto com ela. Aí ela faleceu, peguei meus filhos e dei pra minha mãe. Ela morreu arrumando briga com uma cracuda aí. Aí diz que a menina não morreu. Bateu de cabeça e fingiu de morta, parece. Aí foram lá em casa, pegaram ela e mataram.

Foi lá no Jacaré mesmo. Bateram, bateram e depois mataram ela. Nós morava na linha, a que vai pra Del Castilho. O primeiro barraquinho ali era nosso. Aí eu peguei as crianças e dei pra minha mãe. Com ela tenho são quatro filhos, duas meninas e dois meninos. Alguns onze, doze anos. Mas tenho mais velhos com outra mulher. Tem o André, Fernando, Fernanda. Três com outra, os mais velho. E com essa são quatro. Total são sete. Quando pegaram ela eu tava trabalhando. Quando vim, ali, ali, a

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minha menininha, eu tinha levado o menino pra casa da minha mãe e a menina ficava com ela, no nosso quarto. Uma vez ou outra eu vinha com ele, que nós tinha brigado, eu ficava em casa com o menino e ela tomando conta do barraco com a menina. Eu ia trazer as coisas pra elas. Na época, a gente estava separado. Mas eu não deixava de trazer as coisa pra ela e pro meu filho. Alimentação, essas coisas, coisas de casa. Eu e meu filho fomos morar com minha mãe.

Eu fiquei sabendo, de repente. A notícia foi parar lá no Mandela. Que às vezes eu ia partir pro Mandela. Isso nem no Mandela eu tava, tava lá no, lá na linha, tava um sol quente danado. Tava fazendo umas besteira lá, aí me avisaram que tinha uma menina morta aqui, que o corpo dela foi parar dentro do valão, aí fiquei sabendo, uma agonia. Aí quando fui ver era ela. Tinha certeza que era ela, eu vi ela. Quando me falaram eu num, num imaginava, mas eu queria saber quem era, quem era... Quando cheguei lá tomei o impacto.

A mãe dos meu filhos, poxa. Tando separado ou não, eu gosta- va dela. Aí levei meu filho pra casa da minha mãe. E a menina também. Tá os dois com ela agora. Ela cuida dos gêmeos, uma menina e um menino. E tem duas meninas que a outra que, que cuida é a tia delas. Ela pegou elas, porque ficou muito peso com a minha mãe. Os dois agora só vão nela, desde pequeno. Ela fala “Vai, leva eles, leva eles pra morar contigo”. Aí eles “Não vou não”. “Vai morar na rua com teu pai, vai”. Ela sabe que eu tô na rua. Ela fica “Vou mandar vocês pra rua com teu pai”, quando eu vou pra lá. Final de semana eu passo em casa, final de semana passo em casa.

Eu vou sexta, chego na sexta ou no sábado, fico domingo e venho segunda-feira pra rua. Ganho dinheiro no garimpo, garim- pando na rua. Às vezes vendo doce também. Garimpo, garimpo muito, tudo na rua mesmo. Quando coloca um docinho já dá pra trabalhar com doce. Eu compro saco de bala e saio à deriva, como ambulante, ambulante.

Agora por exemplo devo pegar um ônibus aqui e vou lá pra Central. Às vezes dou a volta no quarteirão garimpando, que pra mim é bom. Aí ganho um pouco lá. Quando venho, já venho com outra remessa, que eu cato garrafa pet, plástico e lata. E

eu trago mais pra cá, porque o preço é melhor. Aí, venho, chego ali, invento uma comida ali, aí às vezes acho umas coisas boa que dá pra todo mundo comer. Trago pão, as coisa de comida, compartilho com o pessoal.

Não tenho inimigo na rua. Todo mundo gosta de mim. Eu vejo dessa forma, tem gente que não gosta que... Eu tento ir no lugar certo onde eu vou. O local certo, pra não ficar entrando em área de outros. Alemão, é. Tô sempre no mesmo lugar que eu sei que eu serei bem chegado.

Sempre tem alguém te chamando pra alguma coisa, pra você fazer. Bem ou mal, quando tem material “Chega aí, chega aí, chega aí, vamo trabalhar de...”

“Joga um negócio fora ali que eu vou te dar um trocado”, “Já é”! “Tô querendo fazer uma limpeza lá na laje”, “Vambora”. E nessa aí vou arrumando minhas coisas, além do material, que pega o material pra fora, leva pro ferro velho, tira um trocado. Eu gasto dinheiro aí com essas meninas aí, entro na farra tam- bém. Uso todas as drogas. Todas. Só não uso pico na veia. O pior é a droga do crack. É horrível... É meio esquisito, mas de certa forma eu prefiro beber minha cachacinha mêrmo. O que eu mais gosto é beber minha cachaça. O crack eu sinto uma onda esquisita. Sei lá, assim um pânico. Depois da onda... fica que alguma coisa vai acontecer...

Tem gente que é dependente químico mêrmo. Eu conheço um que ele é alcoólatra, que ele acorda assim, enquanto ele não be- ber ele treme, ele treme mêrmo. Aí levanto com ele, nós vai, sai nas banca, aquelas coisas só pra comprar logo a barrigudinha. Aí nós divide, nós bebe junto, trabalhando, catando as coisa pra comer, se divertindo... Ele é meu amigo, ele. O nome dele é Edison, o apelido dele é Gato Mole. Porque ele é meio devagar. Mas ele é maneiro, de vez enquanto ele vem aqui. Cássia adora ele, todo mundo, a Clara... Ele é da minha altura, mas é bran- quinho. Parceirinho, mesmo. Tão botando até o apelido nele de Quico. Ele tá inchado, de tanta... “Ó o Quico aí, ó o Quico aí”. Na rua tem de bom no caso a liberdade. Poder fazer o que quiser, a hora que quiser. “Bora fazer aquilo”. “Vamo”, eu que sei. Só tem uma pessoa que mandava eu fazer as coisa, que me dava

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bronca, era a minha mãe. Então eu não tô lá, então ninguém me dá bronca em nada. Tô livre e aberto, vivo tranquilo, suave. Meu sonho é ser motorista de ônibus. Tenho vontade, sou louco pra dirigir. Começando pelo pouco, né, carro. Depois... Tirar a carteira.

Eu nunca, nunca assinei carteira, meus documentos eu perdi tudo. Minha mãe é que tem documento meu. Minha certidão de nascimento tá com minha filha. Mas minha mãe tem negócio lá de CPF, identidade, essas coisa. Eu ando sem documento nenhum. Eu levei uma porrada na Brasil uma vez. Essa cicatriz daqui é que entrou borracha no pulmão, quebrou a perna, cabe- ça. Fui atropelado atravessando lá aquela cracolândia no outro lado da Avenida Brasil. Lá na Avenida Brasil. Eu tenho pavor de lá. Fui pro Souza Aguiar.

Parou um carro, me jogou na carcaça na pick up e me levou, me deixou lá, foi embora. Eu fiquei seis mês sem visita. Quem me atropelou foi embora. Aí daqui a pouco eu tava ali, escutei aquele carro ‘raaaaaan’, parou na Avenida Brasil assim, que eu tava no meio da pista, parou na Brasil, me jogou dentro do coisa e foi embora. Me deixou lá no Souza Aguiar e foi embora. Me deixou lá, eu nem lembro quem, o cara, porque eu tava apagado. Eu só me lembro que eu abri o olho assim, aí me jogou assim na carcaça, abriu a carcaça, botou lá e foi embora. Aí eu “ai ai ai”, só sentia dor, mais nada. Tava inchado, estufado igual uma bola, por causa da hemorragia. Não saiu uma gota de sangue. Mas quando abriram, aí tinha um monte de sangue, quando abriram a barriga aqui assim. Tem mais de cinco anos já. Eu já conhecia a rua já. Desde pequeno fiquei na rua. Desde quando comecei a engraxar sapato lá na Feira dos Paraíba. Ali eu já fugia de casa, ficava na rua pra não estudar. Eu já dormia mesmo. Só que não era de ficar na rua direto, não. Eu curtia muito mêrmo ficar na rua. Coisa de moleque, eu fugia da escola, pra ir pra rua, pra ir pra Quinta, tomava banho naquele lago lá na quinta. Também, quando chegava em casa minha mãe ó “Ahhhhhhhhhhh”! O quê? Me dava uma surra bonita!

Meu pai faleceu. Faz... faz mais de dez anos já. Ele teve o primeiro derrame, deu o segundo, no terceiro derrame ele não aguentou. Derrame cerebral. O último afundou aqui, aqui ficou fundo. Ele

ficou com a boca torta, falando com dificuldade. Eu não tava em casa, não sabia que ele tinha morrido. Já tinha sido enterrado. Eu adorava ficar com ele. Tenho dois irmão, tenho até que ir lá ver eles. Tenho dois irmão também, que é a cara dele. Meus irmão são pequeno, são pequeno. Eu sou o mais velho. Eles têm de catorze pra quinze anos os dois, cada um. É da idade quase dos meus filho. Quase isso.

Agora meus problema é a Virgínia, que nasceu da minha filha, três anos. Minha neta, filha da Fernanda, mais velha. Eu vou dormir lá, lá em cima lá. Ela mora ali na Padre Nelson. Graças a Deus, todo mundo em casa. Eu acho maravilhoso ter neto, maneiro. Só que ela me vê ela corre de mim. Engraçado, ela corre de mim. Quando crescer vai se apegar. E ela então, tran- cada mesmo comigo. Nem quando o outro avô dela também não. Bisavô, aliás, que é o pai da Fernanda, ela não vai ficar de jeito nenhum também, não quer ninguém. Mas também ela tá novinha também. Mas ao poucos vou conquistando ela.

”Tem gente que tem casa e quer ficar na rua. Abandona

No documento Histórias de Vida, vozes da rua (páginas 126-130)