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NELSON, 29 ANOS

No documento Histórias de Vida, vozes da rua (páginas 187-191)

Eu tenho vinte e nove anos. Acabei de fazer tudo, estudei tudo. Não, faculdade não, estudei... escola, escola. Segundo grau completo. Nasci em Nova Iguaçu. O que acontece, eu vim pra cá, pro Consultório na Rua, porque eu gosto de dormir aqui, en- tendeu? Aqui, aqui fora, na porta. Eu só durmo no UPA. Porque é hospital. Se você passar mal, se você... acontecer algum mal, de você não tá maneiro de saúde, é só abrir a porta e se jogar. Sabedoria, entendeu?

Muitas das vez as pessoas acham que só porque o cara mora na rua, o cara é um ignorante. Não é um ignorante, o cara é viciado! É dependente químico. Tem uma diferença muito grande do cara ser burro, do cara ter uma casa para morar, tudo do bom e melhor. Graças a Deus tenho lá na minha casa. Por que eu tô aqui? Ninguém sabe. Ninguém sabe qual o tratamento que eu tenho VIP em casa, ninguém sabe. Como a minha mãe me trata, como a minha irmã me trata. O meu avô não porque o meu avô é aquele pique, ele só observa... Na hora que ele vem, ele pega a bolada.

Então... Pegar bolada é assim, palavras. A palavra dele, a pala- vra, é pior que uma porrada. Uma agressão física, tu tomou, vai curar. A palavra não, ela te... te corrói, te maltrata, porque toda hora tu vai lembrar dela. Palavras! Porrada não, botou, acabou. Caiu, foi vendo, valeu, no final de tudo vai curar a ferida. Palavra não, pô, te machuca até o final da tua vida, entendeu? Então o que acontece? Ninguém sabe o tratamento que a gente tem em casa não. “Volta pra casa menino, você não ganha nem pra você, tu é um cara inteligente, dá para ver, você fala bem, conversa bem, conhece as coisas”. E eu falo assim: “A senhora convive com a tua mãe? Ela te trata igual a minha me trata? Então, por

favor”.

Minha mãe não trata bem não, cara, na moral! Porque eu rou- bei minha mãe à beça já pra usar droga, pra cheirar cocaína, entendeu? Na época. Só que hoje eu não roubo mais ela. Não pego mais nada dela. Mas aí ela me trata como se eu fosse o cachorro antigo, entendeu? Todo dia ela, ela me bota no canto do mundo. Todo dia, todo santo dia, ela me bota no canto da parede e fica falando coisas no meu ouvido. É, porra, acusação o tempo todo, parece o diabo. Não é o inimigo que é acusador? Porra, ela gastou. E minha irmã, meu Deus!

A questão não é acusação. Eu, não sei se a senhora percebeu, o meu sistema nervoso é lá no alto, eu sou nervosão, por qualquer coisa. Uma por causa da porrada que eu dei, quebrei a cabeça, e outra por causa que eu sou usuário de droga. Nenhuma pessoa que é alcoólatra, ou dependente químico, se ela não usou, ela vai ficar nervosa, cara. Até usar! É igual a pinguço, já viu o cara que é alcoólatra? O cara treme igual vara verde. Pega a garrafa, quando toma a primeira cachaça, psicologicamente, acabou. O psicológico dele já começa a... A satisfação do corpo de receber a carga, não é verdade? É a mesma coisa o dependente químico. Eu fumo crack, cheiro pó, maconha, mas o que eu gosto de usar é crack. É, a preferência que eu digo assim, porque eu, antes eu usava outras. Agora não, agora, depois que o crack entrou, ele é muito forte. Aí eu, eu... opito por usar só ele. Imagine eu comprar crack, pó e maconha, não dá, não tem como. Já tá ruim comprar só pedra, comprar pó então, não pode. O crack dá

lentidão. No teu corpo, preguiça. Fico devagarzão. Pra algumas

pessoas, porque a onda da droga em cada um é de uma forma, cada corpo recebe de uma maneira. Entendeu? Tem pessoa que fica agitadão, eu não, eu fico lentinho, andando devagarzinho, olhando, observando tudo.

Se vocês for ver legal, as pesquisa diz que o negócio dura cinco segundos... Mentira! A droga, todo tipo de droga, tem que saber curtir a onda que ela dá. Ninguém fica cinco segundo não. Dura o mó tempão. E é só a pessoa permitir eu curtir ela. Toda droga é assim, maconha, pó, qualquer uma. Se a pessoa permitir você curtir tua onda, você curte ela, você viaja, você marola em várias coisas ali, no momento. No momento ali tu vai viajar. Só que aí

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o outro vai, aí fica um miserável do teu lado te pedindo: “Rola fumaça, dá um pedaço aí”. Aí tu não curte. Tu curte a onda dele: encheção de saco, assombração, o cara não faz nada pra ninguém, não procura um nada, o que fazer para arrumar um dinheiro. O lucro, aí não faz nada, é vagabundo. Aí só sabe pedir e fica lá, implorando: “Me dá um pedaço aí, me dá um pedaço”. Ah, não! O crack é um bagulho pra tu usar sozinho. O crack é uma droga pra tu usar sozinho, solitário.

Toda vez, é, tu vai curtir mais a onda. A questão não é que é bom ou ruim. Porque às vezes, eu sei que não é bom não. A sensação, a onda não é boa. Mas, depois de um... de um tempo, acabou. A questão não é que eu gosto muito, é o corpo da gente que quer. Todo ser humano é assim. É uma questão de lógica. Falo pra qualquer um aqui. A vida é lógica, é você levar pela lógica da vida. O cara ali é alcoólatra, tu acha que ele acha maneirão ficar doidão, enchendo o saco da mulher, agredindo em casa? Não acha não. Só que o corpo dele já quer cachaça.

Dependência, o negócio é dependência, dependente do produto. Senão o teu corpo não vai ficar legal, tua mente não vai andar bem. Que na verdadeiramente é a nossa mente que trabalha com... completo. Então, o que acontece? O teu corpo, um bo- cado é a nossa mente. É o cérebro! Tá acostumado a receber aquele produto, aquela fumaça desgraçada, maldita, entendeu? E no final de tudo é só uma pedra que derrete. Não é verdade? Um montão morre por causa de uma pedra que derrete. Desse tamaninho! É incrível, a realidade é essa.

Comecei a usar droga com dezesseis. Eu fiz uma ponte, pai mexe com tudo. Meu pai faleceu, infelizmente. Eu tinha doze anos. Meu pai tinha trinta e nove anos de idade. Bebida alcoólica! Dói, pô, dói. Sabe, eu tô quase chorando já, é difição! Porra, meu pai era o melhor. Minha mãe pode falar o que for, que ele era o maior filho da mãe, não tô nem aí. Maior filho da mãe pra ela, pra mim nunca foi. Pra ela, o pensamento dela, a construção que ela tem na mente dela sobre ele... Porra, meu pai era sinistrão, maneirão. Era show de bola, só andava agarradão nele. Ah, a saudade não morreu não, nunca vai morrer, porque é meu pai, entendeu? Nunca vai morrer.

da fome. Cheio de fome. Cheio de fome. E eu andando na rua, chorando e falando sozinho. Mas o quê? Porque a gente sabe que tem um alimento em casa, sabe que independente que a mãe é chata, que não me suporta. Mas tu sabe que todo dia tu vai ter o teu almoço, teu café da manhã, o teu café da tarde, a sua janta. Vai ter encheção de saco? Vai, pô. Normal. Mas, tu tem o teu alimento, a tua cama pra dormir. Aqui não, tu não tem tua cama, tu não tem tua mãe, tu não tem tua comida, tu não tem nada. Tu só tem um monte de dependente químico que não é teu amigo, nem aqui nem na China.! Amizade não é jogar pedaço de crack, nunca na vida de ninguém. “Ah, me fortale- ceu o fechamento”, não é nada. Se tu dormir, ele vai te roubar. Ah, ninguém é maneirão não. “Ah, o cara é maneirão”. Não é nada, pô. É um cara que conheci há pouco tempo. Ele não é cria contigo. Tu não sabe a conduta dele, tu não sabe... o proceder dele, tu não sabe porque é que ele tá ali. Eu sei o porquê que eu tô aqui na rua. Porque eu não consigo conviver em casa com a minha mãe. Porque a minha mãe é chata, porque a minha mãe grita muito. Então, eu sei como é que é.

Vê os meus dente, eu gosto muito de cuidar dos meus dente. Aí, cheio de coisa amarela. Meu dente nem estragado era não. Muita droga eu já usei. Meu dente nem estragado era. Agora, aí... nem escovo, fico passando o dedo para arrancar esses troço. Cuidadosão em casa, mas aqui fico sujo, fedendo, mal vestido. Não é maneiro não. Penso em voltar pra casa, claro! Agora eu quero ir pra casa, agora. A princípio se eu chegar em casa hoje a primeira coisa que eu vou fazer é comer. Igual na última vez que eu voltei para casa. Na última vez que voltei pra casa, eu tava aqui, me tratando aqui, eu tava desidratado, vomitando o que não existia dentro de mim. Eu não comia, não bebia muita água. Entendeu? O cara pra me botar soro, eu tinha que sair da sala, beber, encher a cara dágua pra ele achar o sangue, pra ele achar a entrada. Nem veia ele achava.

Eu tava ali agora mesmo no banheiro olhando o meu corpo, o meu corpo tá ficando murcho. Por causa de quê? Eu era gordi- nho, entendeu? Pesava lá quase noventa quilos. Nunca o meu corpo chegou aos noventa de novo. Por causa de que eu fui pra casa, comi, comi, mas no tempo que eu fiquei em casa, não deu pra chegar. Não comi noventa quilos. Tô com o sorriso horrível,

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todo cheio de risco amarelo nos dentes.

Eu tô na rua há quatro meses. A droga que me fez vir pra rua. A princípio é a droga. Muita gente bota a culpa nos outros, eu não, a culpa é minha, eu queria usar. Eu moro em Belford Roxo... Eu ia lá em Santa Marta buscar. “Ah o crack hoje tava bonzinho, pô, o maior pedrão”. Eu tava na barbearia, eu trabalho, eu sou barbeiro, na barbearia em frente da minha casa. Tava lá eu ar- rumadinho, muito... Em duas semanas... Eu já tava com o mó cordãozão de ouro, Naikão no pé, tava todo me reconstruindo, mas tudo que eu comprei! Minha mãe comprou não. Dali já não saiu nada, o negócio é sério. Vai fazer trinta anos de idade, tomar vergonha na cara e lutar pelo que é meu. Mas o que acontece? Aí, quando eu entrei no, na Kombi, aí eu pensei: “Mano, eu vou lá no Belford Roxo pegar o trem e vou lá no Jaca”. Porque a droga aqui no Jaca é boa.

”Usuário nada, é cracudo, tu vendeu a roupa do teu

corpo, tu tira o chinelo do pé e dá pros outros pra você

fumar uma pedra, tu é cracudão”

Isso aqui é o Jacaré. Jacaré tem trinta boca de fumo. Belford Roxo tem trinta? Tem, em todas as favela. Aqui é em uma só. Aqui, a qualidade... A oferta. É isso aí, a qualidade. A questão não é o preço, é a qualidade. Droga você não vai pelo preço, é pelo produto que você vai usufruir, entendeu? A visão é essa. Acabou que eu nem cheguei no Jacaré, na Bandeira 2 foi mais rápido. Porque Del Castilho é antes do Jaca. Desci lá mesmo e fiquei. Eu acabei de usar, eu tirei o tênis do pé. A droga, o crack é assim, tu usa ele, acabou a droga, tu já como? Já olha pro teu corpo pra ver se tem alguma coisa de valor pra tu vender. Aí vem uma porra que tem na rua e fala isso: “Não sou cracudo não, sou usuário”. Usuário nada, é cracudo, tu vendeu a roupa do teu corpo, tu tira o chinelo do pé e dá pros outros pra você fumar uma pedra, tu é cracudão.

”O único momento bom na rua que a gente tem é

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