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RACHEL, 30 ANOS

No documento Histórias de Vida, vozes da rua (páginas 86-91)

Hoje eu tenho trinta anos. Eu tenho faculdade. Não terminei, eu tranquei, meu ex-marido roubou tudo que eu tinha. Meu ex-ma- rido. Tranquei na Estácio. Eu tava no segundo ano de veterinária. Eu paro mais aqui em Manguinhos. Quando eu sumo daqui, eu fico lá pro centro da cidade, no Largo da Carioca. Tem um tempão que eu paro lá. Quando eu paro aqui é mais por causa das drogas. Lá, eu fico um mês, dois mês sem usar. Eu uso mais cocaína. Crack eu uso, mas não muito. A minha droga é o pó. E o cigarro, né? Que é o único vício que eu tenho, entendeu? Mas quando eu saio aqui, daqui, é mais por causa do crack, entendeu, porque aqui eu, eu... por eu ficar no meio dessa galera, enten- deu, então eu fico usando mais, sucessivamente, entendeu? Porque se deixar por mim, eu fico dois, três dias sem usar. Tem três dias que eu não uso, nada! Eu tava dormindo, dormi três dias direto, entendeu? Então... é isso. A cocaína eu uso, eu fico tranquila, eu... não perco muito, o meu peso. Já o crack, quando eu venho aqui sucessivamente, se eu ficar aqui um mês, eu perco dois, três quilos.

Porque aqui é muito ruim pra passar alimentação. Aqui não é como o centro da cidade, que passa muita comida. Aqui só passa a comida quando o pessoal, os crente traz. Mas não é todo dia, entendeu? Eu tava comendo aqui no Consultório, mas agora nem aqui pode comer mais, só um dia da semana. Nunca vi isso! Você se tratar aqui, e só tem direito um dia da semana com a comida! Isso, esse negócio aí tá muito errado. Pelo menos o almoço tava garantido, todo dia aqui. Ah, isso aí, tinha que ter doação, né? Dá as comida pra quem precisa mesmo, pra quem tá em tratamento. Que hoje vem pessoas pegar comida, até vender quentinhas aqui, eu já vi vendendo. Eles tem que olhar primeiro as pessoas que eles estão dando, entendeu?

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Quando não se consegue comir aqui, tu não come! Aí é só droga, droga, droga, droga, droga, procuro usar mais droga, mais droga pra, pra alimentar a fome. E aí vai. E aí você vai se perdendo, teu corpo vai indo embora. É isso que acontece com nós. Morador de rua que é usuário de crack. Dinheiro, isso aí... Às vez a gente ganha, às vez... Eu tenho um tio aqui no, no Jaca, eu vou lá, pego dinheiro. Algum amigo que chega, vai lá, desculpa... Entendeu? Às vez eu boto minha banquinha, vendo minha água, meu ci- garro, minha cachaça aí.

Hoje eu vim aqui pra tomar banho. O único lugar que tem pra tomar banho aqui também, é aqui. Ou então tem que ir lá pro Jaca, no bicão, eu não gosto de tomar banho em bicão. Eu não gosto de tomar banho com todo mundo me vendo. É coisa de mim, eu não gosto. Mais comida. Ontem eu não comi nada. Se não fosse esse bagulho aí, que eu vi ali, e pedi, o porteiro que tava ali fora, deu um pouquinho de um saquinho de biscoito e essa barra aí de chocolate. Me deu hoje, agora, quando eu che- guei. Tava assim na porta. Foi o motorista que me deu. Tadinho, o motorista perguntou até os menino aí da portaria: “De quem é esse aqui?”, pra, pra eu poder pegar. Ele é muito bom!

”Eu não sei ficar com fome. Aí eu começo a usar droga,

droga, droga, droga, droga, droga”

Isso aqui está me matando. Estou sufocada. Dá pra abrir a porta? Eu não consigo. Eu começo, a passar mal. Por causa da minha bronquite. Eu vou ficar com fome de novo hoje. É muito ruim. Ainda mais que eu não sei ficar com fome. Aí eu começo a usar droga, droga, droga, droga, droga, droga. Já vou sair daqui, com o meu copinho ali, tem três dias, nem mexi nele. Eu vou sair daqui, vou raspar ele, vou ver se tem alguma coisa pra sair dali, pra já matar essa fome que eu tô. Me desculpa, eu sou assim, eu não queria, mas minha vida é ... Se eu falo, eu falo mêrmo, entendeu?

Eu era casada, pô, eu tinha tudo. Tinha tudo. Meu ex roubou tudo o que eu tinha. Ele fez eu assinar um documento que tudo o que era meu, passava pro nome dele. O que eu tinha vinha do meu trabalho. Eu já fui muito doida. Tá ligado? Hoje eu sou

uma menina tranquila. Eu trabalhei no tráfico, eu trabalhei... No “57 boladão”, que é assalto. Ele era meu parceiro nisto. Mas eu só assaltava coisa grande. Era joalheria, banco do... É isso aí. Não, pessoas não. Pegava coisa grande. Entendeu? Fazia casa, mercado, bagulho grande. Eu era assaltante, eu não era ladrona. Eu era assaltante. Hoje em dia eu sou uma mina tranquila, como você vê aí. Todo mundo se amarra na minha.

Se não é meu, eu não pego. Pode ser um centavo, eu não pego. Só se tiver cem mil, eu falo logo: “Tem cem mil?” Se tiver cem mil, então fica preocupado, vou te sequestrar e vou pegar res- gate. Pedir o resgate. Aí, você pode agora chorar. Que agora perdeu. Dez real? Tá maluco! O que eu vou fazer com dez real? dez real não dá nem pra mim fumar o crack que eu gosto, que eu fumo crack de vinte. Então, não vale a pena. Ah, se a pessoa quiser dar dez real pra mim, aí eu aceito. Mas meter a mão, não, tá maluco, pra quê!

Eu já fui presa quando eu era menor. Não, me pegou, e mesmo sendo menor, eu fiquei numa cadeia de maior dois anos. Eu, de menor, fiquei na cadeia de maior, dois anos. Porque eu mentia só a idade que eu tinha quando eu fui presa. Até descobrir, eu já tinha dois anos na cadeia de maior. Rodei com dez quilos de cocaína. Menti porque fui pega eu e esse meu ex-marido. Aí eu assumi a porra toda. E na época, eu tinha quinze, quinze anos. Eu falei que tinha vinte e um anos.

Subornei o delegado, paguei três mil pra liberar ele, meu ex- -marido. Filmei tudo. Em uma salinha, assim mesmo. É minha história, a vida é uma história. Filmei. Depois entreguei pra ele mesmo, pro delegado. Quando ele pensou que tava abafando, eu dentro da sala dele, assim mesmo. Falei: “Ô, fulano, faz favor. Sente aqui, por favor.” Aí ele: “Tu é muito abusada, garota, você tá presa”. E aí eu, “Eu tô presa, mas no cubico eu não vou ficar, pô. Vou ficar aqui até de manhã, quando for sendo transferida. Não é isso, o que foi combinado? Então, eu tô com fome”. “Você quer o quê?”, “Ah, eu quero comer isso, dinheiro não é pobrema, tá ligado que dinheiro não é pobrema? Eu tenho dinheiro”. Então, mandou comprar comida, mandou tudo do restaurante, comi. Aí, eu virei: “Menino, você acha que eu sou boba? Bota aí no radinho, bota, toma aqui o aparelho, vê essa filmagem aqui pra

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mim. Aí eu filmei, cara, essa filmagem, quero ver, antes de ser presa você pode falar pra mim se tá boa”.

Eu não tinha mandado pra ninguém. Você filma, eu tinha assim, uma pessoa que tinha, sabia que eu tava com a câmera, mas a pessoa, ela é meio, lá do tráfico, ela é, entendeu? Mas daí, depois, que eu mostrei pro delegado, a filmagem foi, destruí- da, entendeu? Mas lá, a filmagem que eu tinha a fita comigo. Mas a que a pessoa que tava lá também, não. Ficou, entendeu? Quando o delegado viu aquilo, o delegado falou, olhou para mim: “Garota, quem é você? Eu tenho dez anos de polícia. Nunca ninguém conseguiu me enganar. E você, parece que é uma crian- ça, conseguiu”. “Eu? Você acha que eu sou boba? Eu vou perder três mil com você, vou ter o quê? As regalia que eu tô tendo aqui, porque eu tô presa, eu sei que eu estou presa. Se chegar algum policial, batendo na tua porta, vai me ver aqui, sabe que eu tô presa, só não tô algemada e não tô lá dentro do cubico”. E fiquei, até de manhã. Só me botaram na viatura na hora que eu fui transferida. E liberaram ele. Eu fiz acordo porque eu era menor. E eu rodei com dez quilos de cocaína. Se ele, se ele segurasse tudo, ele ia segurar doze, corrupção de menor... Mas quando eu tava presa ele não me ajudou nada, mas também não me faltou nada. O meu patrão não deixava faltar nada pra mim. Eu tirei a minha cadeia, dois anos, na maior, de lei, tranquilona. Quando você chega lá dentro, que você vê o que é que é, você, fala mesmo: “Caralho, a casa caiu, meu mundo acabou!”. Porque lá é onde o filho chora e o pai não vê. E a mãe também. Tá ligado? Mas tudo isso pra mim foi experiência, tá ligado? Tudo o que eu já passei na minha vida, é experiência. Quando eu saí de lá... Eu só sai de lá porque a minha família veio me buscar.

A minha família é de Minas. Eu vim pro Rio quando tinha doze anos. Sozinha, eu e Deus! Eu vim conhecer o mundo. Sou de Monteiro, Sul de Minas, divisa de Minas com Espírito Santo. Eu vim com doze anos. Com doze anos, fiz a maior fuga inédita. Em Teófilo Otoni. Peguei a minha prima, tirei minha prima do orfanato. Teófilo Otoni, essa fuga até hoje é lembrada. Botei Teófilo Otoni pra baixo... Em peso, polícia me rodeando, me procurando. Ela tinha catorze. E ela tava em... Ela tava num colégio de umas irmãs, num orfanato. Consegui uma audiência

lá no Fórum, com o juiz... E eles conseguiram me botar dentro desse orfanato onde ela estava.

Entrei numa quinta-feira, no domingo eu tirei ela. E não conhecia essa prima minha. Só sabia que ela era minha prima. E essa fuga até hoje é lembrada em Teófilo Otoni. Eu já vi, conheci várias pessoas de Teófilo Otoni aqui no Rio. Quando eu falo em Teófilo Otoni, quando eu falo o meu nome, neguinho fala logo: “Caraca, você é aquela garota que botou Teófilo Otoni, ó... É pra baixo, pra cima, a polícia te procurando”.

Fugi pro Rio com a minha prima. Quando eu cheguei aqui, fui diretamente para a Central do Brasil. Meu pai me deu dez mil, pra mim conhecer o mundo.... Minha família tem condição. Meu pai faleceu, o ano passado. Meu pai me deixou bem, tem um dinheiro pra mim pegar. Mas ele pra lá, eu pra cá. Não, sempre me dei bem com meu pai, e não me dou bem com a minha madrasta. Fui criada sem mãe. Minha mãe biológica morreu o ano passado também. Conheci a minha mãe biológica, tinha doze anos, aqui no Rio. Ela era daqui.

Nem sabia que ela existia. Me contaram que eu era filha de uma amante, do meu pai. Essas partes eu não gosto muito de... Já passou, já passou. Já morreu, então tá tudo certo. O importante é que eu conheci, então tá ótimo. Eu encontrei com ela aqui, coisa do destino. A minha vida é... A vida muito... Acontece coisa com ela que... Até eu mêrmo, às vezes eu, eu duvido. Do nada, encontrei com a minha mãe. Ah, descobri só, conhecendo, no dia a dia, as aparências. Ela ficava muito na Central, mas morava na Pedra Lisa. Aí, um belo dia eu contei a minha história pra ela... Quando eu mostrei a foto do meu pai, ela falou “Eu conheci esse homem”. E aí ela me contou como me teve, não tinha, não tinha condição de me ter.

Nessa época ela era nova, tava na Itália, que eu nasci na Itália, fui criada aqui no Brasil. Vim bebê. Nasci num navio, meu pai me conta que eu nasci no navio. Mas aí meu pai já era casado. E aí... Ela deixou eu com o meu pai. Mas aí essa mulher que morava com o meu pai foi obrigada a me criar. Que já era a mulher dele. Ele tinha minha irmã mais velha, com ela. Lá em casa eu sou a caçula. É, é umas história muito complicada mesmo. Mas é assim mêrmo, é a vida.

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O meu o pai faleceu o ano passado. Desde quando meu pai faleceu, eu tento ligar pra casa, ninguém atende. E é aquilo, deixou uma bolada pra mim, mas a bolada que ele me deixou, ninguém mexe porque é meu. Não tem o que mexer, não tem como, tá no banco. E aos pouquinho eu vou me levantar de novo, se Deus quiser. Só tenho que ir em Minas pegar o meu dinheiro. Pegar meu dinheiro... Aí, eu vou comprar uma casa pra mim. Quero montar o meu póprio negócio, que eu sempre tive o meu negócio, sempre trabalhei pra mim mesmo. Eu gosto de trabalhar pra mim mesmo. Já tive loja de roupa, já tive bar. Já tive uma loja com quatro, oito empregados. De revelação de foto, em Jacarepaguá.

Ah, eu saí do tráfico, do assalto porque... É uma vida que... poxa! Não é boa assim. Nunca tive medo de morrer. Tenho medo de ser presa, isso aí sim. É porque eu tive meu filho, tá ligado? Então... Quando eu engravidei do meu filho, eu parei com tudo. Parei com assalto, parei com tudo, tráfico, parei com tudo. O meu filho mora com a minha família. Lá em Minas. Meu filho tá com doze anos já. Eu sempre falo com ele. Ligo, sempre falo com ele. Tem três anos que eu fui lá. É, três anos.

”Na rua você não confia em ninguém. Confia em você

No documento Histórias de Vida, vozes da rua (páginas 86-91)