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CECÍLIA, 42 ANOS

No documento Histórias de Vida, vozes da rua (páginas 147-153)

Tenho quarenta e dois. Nasci no Rio de Janeiro. Nasci. Eu fiz... aquela, educação para poder... engrenar na Estácio. Terminei o segundo grau. Aí, quando eu fui escolher qual curso, eu já quis ser tanta coisa... quando eu fui escolher qual curso que eu ia fazer, só deu para escolher três. Aí que embananou tudo. Do que eu já quis ser, eu acho que tem até a mais do que a listagem de... coisa que tem. Eu sei que... no final de tudo saiu Comunicação Social, porque eu fui para uma sala fazer, teste, vocacional. E aí deu cinquenta por cento, tudo ligado ao público. Ué? Tudo é ligado ao público. Até coveiro é ligado ao público, ao público morto.

Eu tô ficando agora lá na... lá em Bonsucesso, na Nova Holanda. Ganhei o quarto andar ontem. Porque tem um viaduto, que está desativado. Aí tem a primeira, que é a... que é o... assim que vai para debaixo do viaduto, tem a primeira toquinha que fizeram. Aí vai nisso, vai subindo, o viaduto é embaixo, então vai subindo também, né? Aí o meu é o quarto. Né? Chiquerésimo! Ainda bem que... Ainda bem. Porque eu não gosto de ninguém pisando na minha cabeça. Não tem gente que mora no apartamento que fala isso? Não tem criança pra bater com a vassoura. O que mais tem ali é barulho. Cruz credo. Ao redor, o barulho, o povo embaixo, tem barulho. Ali tinha que ter bloqueio de barulho. Não suporto barulho, ainda mais que sou filha única. Mas... tá.

Eu ganho dinheiro como? Cai do céu. Não, calma, deixa eu ex- plicar... Vou contar a minha vida, é melhor. Eu... não sei a minha terra natal, no sentido esperma, e ovário. Porque... eu só sei que: A história que me falaram foi que eu nasci, dia doze de janeiro. No mesmo dia que eu saí, saí na mão da minha mãe, essa que me criou. É. O meu pai era radiologista formado. Aí trabalhava

na época do Pan. Não sei se ele era adotivo, porque eu não tenho papel de adoção. Entendeu? Tipo assim: a mãe da mulher... a mulher que me criou, ela... teve um filho e o marido dela, que é meu pai, trabalhava no Pan. E a diretora do Pan, tinha uma amiga, que ela... que ela tinha tipo adotado, que engravidou e ela não queria que tivesse filho. Aí... no parto ou ela morria ou eu morria, no caso. Aí no caso... eu não morri. Ela morreu, vamos dizer assim... ela morreu de enfisema pulmonar. Como é que a mulher morreu? No parto? Ou morreu de enfisema pulmonar? Então, história... sem... nexo.

Eu sei que... Porque a minha mãe, ela... ela... já é, já é... minha mãe morreu com oitenta e nove anos. Ela é a mais velha de três homens. Ela... primeira mulata do Instituto de Educação. Ela não podia mais ter filho. E... além de não ter casado com o homem que ela gostava, ela... sei lá... Foi a melhor coisa que me aconteceu. Eu sei que, meu pai ligou para a minha tia, a mulher do irmão da minha mãe, e falou: “Ó, pega o carro e vem aqui... que a criança já nasceu”. A minha mãe foi, mas não olhou a mãe que foi. Não foi lá dentro do hospital, ficou do lado de fora. E minha tia saiu comigo no colo, entendeu? Foi isso.

Eu não sei a história, não sei se sou filha de alguma namoradinha do meu pai. Não sei... se me roubaram no hospital, eu não sei nada. Isso não é angustiante pra mim pelo fato de eu não saber quem é a minha mãe. Mas... é um, é um choro que me sufoca, porque eu não fui a filha que ela necessitou que eu fosse. A que morreu. O choro é porque eu me cobro. Essa história que ela não sabia... eu jamais ia pegar uma criança que não sei de onde veio, entendeu? Ela, ela... ééé... E eu nunca procurei saber quem é minha mãe, nem quero. Pode ser a Xuxa, eu não quero. Entendeu? Pode ter mundos e pode ter fundos, eu não quero. Porque hoje vai fazer um ano e onze meses que ela morreu. Um ano e onze meses. E eu sou filha única.

Ah, ela... ela... minha mãe era professora, do Estado, do Município. Foi diretora, foi dona de colégio infantil. E eu não dei pra nada, entendeu? Eu até brinco que meu tio fala: “Poxa, a família, cada um é alguma coisa, e sobrou pra você nada”. Sóóó... badalações, né? Tocou a mim... curtir a vida. Eu falo isso com dor, de boca para fora. Eu fiz doze anos de balé, doze

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de natação, curso de informática, curso de inglês... Muita coisa na vida já. Nunca exigiram eu trabalhar, nunca precisou de um centavo meu. Ela, com trinta e cinco, com trinta e seis anos, ela comprou uma casa na Ilha do Governador. É na terceira rua atrás da Casa Show, está lá a casa até hoje. Sabe. Minha mãe foi a pri- meira mulata no Instituto de educação. Sabe? Então, eu não tive a força que ela teve. E essa força que eu tinha, que eu tive... que eu não estou tendo pra isso, pra encarar a vida, depois de ela ter ido, entendeu? Com isso, eu não sei há quantos anos eu tenho uma conta bancária, que eu não sabia. Eu tenho direito a pensão do meu pai, que meu pai morreu, eu engatinhava. Esse meu pai... Esse meu pai morreu eu engatinhava, já há seis meses, nessa casa que ela tinha comprado, lá na Ilha. Na Portuguesa. Então... É um, é um, é um... é um início com reticências. E eu tô na reticências agora de novo, entendeu?

Fui parar na rua, então, por isso, porque.. tipo assim... A minha mãe faleceu dia onze de outubro... Vai fazer dois anos no mês que vem. A minha mãe, eu tô até hoje brincando e eu vejo a telinha, com a numeração do batimento cardíaco dela, abaixan- do... Na minha frente. Só tava eu e ela. E os outros pacientes. Ela morreu com oitenta e nove anos. Não sei fazer comida, não sei... nunca me exigiu nada. Nem lavar a minha calcinha ela não me exigia. Sabe? Ah, sei lá... Não é coisa, tipo, de uma barriga de uma mulher que eu não sei quem é. Eu tive muita sorte por eu ter parado na mão dela.

Ela não teve sorte de eu ter sido uma pessoa que não foi a filha que ela merecia. Porque eu não me formei, ela era uma mulher formada... tem... tem lá os graus de estudo dela. Correu sempre atrás das coisas dela, era uma mulher guerreira, uma mulher... Ela sempre fez as coisas, de tudo, ela já pensava nas coisas antes de, de, de... um dia acontecer, que era isso, a morte dela. Seguros que ela fez... pra mim... pra mim poder me... me estabelecer, depois dela, entendeu? Sempre falou pra mim não casar, porque... um homem poderia não dar, o que ela dava pra mim... Falou: “Não casa, porque... não, não... Você não pode trabalhar pro o Estado e nem pro Município, ou você não pode... fazer normal, professora”.

num órgão público, me formar, né... aí seria legal... mas eu per- deria a pensão dela. Muita coisa, ééé... Assim... Caso no final da minha formação, eu me desviasse, é... não adiantaria, é... No caso, porque eu iria perder a pensão dela. Então, era melhor eu estar sempre com ela. Porque o dela é garantido pra mim. Até eu presa, quando eu fui presa, para ela também estava bom, porque ela estava ciente de onde eu tava. Era como se tivesse na barriga dela, mas assim, não na barriga, entendeu? Porque ela ficava pensando que eu tava ali, tranquila... Ela pagava especial pra mim ficar. Porque na cadeia tem, né?

Você paga semanalmente um valor que os... que os polícia da carceragem estipula, você vai dormir numa cama. Você não fica no, no montinho, no fedor. No povo, entendeu? Que é no caso, a mesma parte de quem tem a faculdade. Que tem direito. Mas não que eles tenham, na delegacia, a obrigação de você que tem faculdade, te botar naquela bola, naquele benefício ali não. Porque... pra tu tá ali tu tem que... a regra é deles. Tanto é que eu só fui depois que eu mudei de delegacia. Porque, na primeira delegacia o chefe da carceragem não gostava de mim não. Então, nesse caso... a minha mãe faleceu... Eu... eu já ia... eu já usava droga, antes da minha mãe falecer. A minha mãe sabe da minha vida toda, tá? Toda. Tudo! Fiz cocô verde, cor de abóbora, falava com ela... Sabe? Chegava em casa contando pra ela todas as novidades da minha, do meu dia. Ela só tinha, só tem eu e ela. O meu pai morreu, só tem ela para tudo. Ela já saía... a gente... até dez horas da noite, se ela chegasse, se ela não chegasse, já começava uma dor de barriga em mim ... Era muito ligada uma na outra. Aí como ela sabe que eu ia... pro, pra a favela pra usar a minha droga. Quando eu saía e ficava dois, três dias, era esse crack aí. Mas, fora isso, as outras drogas, eu num... eu continuei na minha casa. Tem como até usar em casa, ligar pro disk droga. Mas eu não quero ficar lá. Não, eu até quero, sabe, eu tô com falta de força para isso.

Porque... como é que eu fui parar na rua. Por eu ir... e ficar dois, três dias e voltar, a gente acaba pegando afinidade com pessoas, e outra... ééé... coisas vão ocorrendo nas nossas vidas. Logo que a minha mãe morreu, eu não... eu vou ficar fazendo o que dentro de casa? Às vez eu ia, sem nem ter vontade de usar droga.

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Entendeu? Porque, ao redor de onde eu moro, não que eu não conheça ninguém, mas... a Ilha foi um ambiente que eu... não frequentava na época que eu morava. Porque eu morava numa outra parte, na Penha. Cecília na Penha só tem eu.

Eu já fui presa. Quando eu voltei para a Penha... Ih, “Cecília”... Eu já voltei no artigo... Eu já voltei até como sequestradora, já voltei como assaltante de banco. Eu fui uma mulher um cinco sete, entendeu? Lá na Ilha, eu fui de rolé com umas colega, “Vou com vocês”. Olha que doideira! Cabeça de girino. Como minha mãe dizia: “De camarão. Só tem cocô”. Foi... Ah, foram roubar uma mulher lá, que já tava tudo já... planejado. Mas antes... como era perto de onde eu morava, elas foram lá, ficaram lá fumando um baseado, não sei quê... Quando soltou, a... esse episódio. “Tá maluca, garota, num sei que num sei que...”. “Ah, fica de onda...” Fui junto. Entendeu? Veridicamente, entendeu? Eu nunca precisei de... Meu! Nem meu OB eu precisava com- prar. Entendeu. Minha mãe sempre me deu de tudo. Fui presa, a minha mãe ainda era viva, entendeu?

Fui presa foi no ano dois mil. Aí quando eu saí de cadeia, foi no final de dois mil e três para dois mil e quatro. Meu tio, a minha mãe tem... tem a casa lá... na Penha, perto da Lobo Júnior, que já é terreno, que era da minha avó, do meu avô, num sei que, num sei que lá. Ali mora meu tio, que é irmão mais velho da minha mãe, e nos fundos meu padrinho... morava e a minha prima, no outro andar. Então a parte da frente é toda da parte que a minha mãe tem direito. Aí a minha mãe, já tinha... como já tinha construído a casa que é da minha mãe, eu fui pra lá, eu e minha mãe. Ficamo... Aí passou alguns dias, uns colega meu iam me visitar, que eu morava na Ilha. Iam me visitar, era aquela fumeira, era carrão, era moto, isso e aquilo.

No final da minha rua, mora um rapaz que ele é... guarda... florestal, é. E era... ligado com uns cara da milícia dali. Isso eu nem um pouco sabei, eu pouco sabia, que eu tinha acabado de chegar ali. Eu sei que o sobrinho dele, veio me falar... que o tio dele... tinha recebido um recado que... era pra mim sair dali, por causa que eu estava recebendo muita visita de fumê, muito carrão, muito isso, muito aquilo. Que os meus artigos, que eu fui presa várias vezes... Nada disso. Aí eu saí dali e fui

morar em Brás de Pina. Aí minha mãe alugou um apartamento no quarto andar, lá em Brás de Pina, olha só! Em frente de uma comunidade.

Eu continuei namorando esse rapaz que, eu tinha recém conheci- do. Que por causa disso e junto com o tio agradável que tava no caminho... Foi o mêrmo bonde que matou os... Os mêrmo milícia que... que o cara era baba-ovo, o tio do menino era baba-ovo... E falou pra mim, né, sair da onde... minha vó mora, morava, né? Minha avó já é falecida... Por coincidência ou não, é o mêrmo povo que matou esse meu ex-namorado que... era, era um dos causadores desse fato de eu ter que sair dali, por isso é que eu fui morar em Brás de Pina. Aí... mas, me perdi um pouco, é tanta coisa... Nisso eu trabalhava e... estudava. Já tava trabalhando e estudando, quando eu saí de cadeia. Porque, eu com quinze dias de fora da cadeia arrumei um emprego lá no Iguatemi. Eu era caixa de uma loja. Pra você ver. E a dona sabia que eu tava presa, que eu tinha sido presa.

A dona da loja... Quando eu arrumei esse emprego... o... cara, o senhor que me entrevistou, ele... e o dono inclusive, ele foi conversar... ele foi conversar comigo assim... e ele foi e falou que gostaria de arrumar uma pessoa que precisasse mesmo trabalhar, porque ele já estava cansado daqueles, tipo, daquele funcionário que entra e sai do nada, nanananana. Nem que fosse até ex-presidiários. Aí, que eu... sabe? Deus é muito, muito seve- ro na minha vida. Severo de um modo bom. Entendeu? Então, eu... eu não sou muito ligada a isso, nunca fui guardadora de religião nenhuma.

”Eu não sei não ser eu. Eu já não sei de onde eu vim,

ainda não vou ser eu, não tem lógica”

Tenho fé em Deus. Eu falei: “Aproveito o ensejo, eu... estou recém saída da cadeia, num sei que, nananana...”. Então, eu já cheguei lá assim. Menina, uma conhecida da sobrinha dele, era... uma menina que tava presa também onde eu tava... Inclusive até um artigo de matar o ex-namorado, e tal, o caso dela era bem pior que do que o meu... não foi na loja com a sobrinha na garupa? Veio aqui... Imagina se eu dou uma de boa samaritana?

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Entendeu? Então tipo assim... eu não sei não ser eu. Eu já não sei de onde eu vim, ainda não vou ser eu, não tem lógica. Então, eu sou muito crítica nesse sentido, sou muito... eu me cobro muito no sentido... ‘Se for do mundo não me chamo Raimundo’? Não. Não se for do mundo, mas eu que não posso ficar querendo também... entendeu? Mas... da boca para fora, porque é hipo- crisia minha.

”Eu não fui a filha que a minha mãe quis. Mas também

No documento Histórias de Vida, vozes da rua (páginas 147-153)