• Nenhum resultado encontrado

Eu vou morrer e o crack vai continuar me matando Então o tempo que eu tô aqui, o crack não vai deixar

No documento Histórias de Vida, vozes da rua (páginas 179-183)

de existir, então eu tenho que vim e pensar em mim”

Eu fico na abstinência, eu quero fumar crack, eu quero lá saber de... de se cuidar, de família, eu quero é isquerar, eu quero é... sentir o gosto do crack! “Não, não, depois eu vou, não quero, não vou, não vou”... e ninguém faz eu vim. Hoje eu tinha tomado um banho... Foi diferente, por causa de que... eu vou... eu vou morrer e o crack vai continuar me matando. Então o tempo que eu tô aqui, o crack não vai deixar de existir, então eu tenho que vim e pensar em mim, porque se eu... ficar só visando o crack, eu já tô seca, eu tô na pele e no osso, eu não tenho, nem mais... O meu marido falou “Tu tá magra, tu só tem pele e osso”. E aí eu vou só ficar adiando e fumando crack? Pô, já que eles foram lá me buscar, pô, uma oportunidade. Foram me buscar! E eu não vou vim por causa do crack?

eu vou fumar o crack. Botei isso na minha mente hoje, porque senão o dia vai passando, a hora vai passando... Vai ter uma hora que eu vou deitar e não vou mais levantar. E vai ser triste, porque eu acho que a maior tristeza que tem no mundo é a pessoa morrer debaixo de um viaduto. Eu não quero isso pra mim, nem pro meu marido não, não quero isso para ninguém! Eu não quero morrer debaixo do viaduto, todo mundo indo lá ver a morta, ver lá a coisa. E os que não gostam de mim rir, entendeu? Que, conforme eu tenho amigos, eu também tenho inimigos, que é a rua... é droga, é vício, entendeu? Ainda mais eu que sou estourada, se tiver de falar na cara eu falo memo, e muitas pessoas não estão acostumadas a ouvir a verdade. Então eu vim.

”A gente se uniu, tipo uma aliança. Então quem passou

pra quem não importa, o que importa é que a gente se

ama, e a gente tem que se cuidar e se reerguer junto,

e levantar pra gente viver, e ter uma família, porque o

meu maior sonho é ter um filho”

Eu vou vim, eu vou começar, segunda-feira eu vou trazer o meu marido, ele vai tirar sangue. Ele nunca tomou o coquetel. Por causa que a imunidade dele sempre ficou boa, agora é que tá caindo. Mas aí, me falaram... eu descobri que quando a pessoa é assim, a pessoa é portadora. Tudo indica que foi ele que me passou, mas eu num... incomodo não. O importante é que... que nem ele fala, “Deus já deixou acontecer isso?”. A gente se uniu, tipo uma aliança. Então quem passou pra quem não importa, o que importa é que a gente se ama, e a gente tem que se cuidar e se reerguer junto, e levantar pra gente viver, e ter uma família, porque o meu maior sonho é ter um filho.

Eu nunca tenho... eu nunca tive um filho, mas... Já engravidei, mas eu perdi, porque eu tenho cisto no ovário, entendeu? Mas eu vou ter um filho ainda e meu filho vai vim saudável, vou ter uma família e uma casa... Eu vou viver muito, eu tenho muita fé no meu coração, eu vou reagir. Eu vou reagir, Deus vai me ajudar. O meu pensamento é o dele. Tudo o que eu... o que eu pensar... Ele já tem um filho. Ele já tem um filho de seis anos. Ele não vê o

182

filho dele não. É difícil. O filho dele sabe que ele é usuário, tem oito aninho, trata ele bem. E quando a gente está em casa, que a gente aluga uma casa, a família junta, aluga uma casa, bota num canto... a gente pegava o filho dele, mas assim, na rua ele não gosta de ter contato com nada... com a criança não. Eu lembro quando eu fui pra rua. Eu fui... eu... fui presa, eu tra- ficava, vendia droga no morro, mas eu... ia para casa, eu vivia bem, eu vivia normal. Era só um serviço, minha família sabia. Foi lá no Juramento que quando eu saí da cadeia eu usei. Aí eu comecei a fumar muito, fumar muito, aí eu fui peguei... As drogas que eu vendia, lá começou vender. Aí comecei a dever, ter que trabalhar pra pagar, meu... pra minha família não precisar pagar, aí cheguei em cima do moço e eu falei, “Eu não quero mais ficar”, porque eu tô fumando crack, e peguei e fui pro Manguinho... Fiquei. Aí depois eu voltei pra casa, minha mãe me ajudou, eu arrumei um emprego, de jardineira.

Aí nessa, eu comecei a fumar assim, só, sexta-feira. Saía, “Mãe, vou pro pagode” e fumava na sexta e no sábado. E aí teve um dia que eu recebi, o pagamento, vim direto... pra cá, não voltei mais. Abandonei emprego de carteira assinada que eu tava tra- balhando direito, do ponto, e vim fumar crack. Eu fiquei... Mas antes disso, das outras vezes, eu já voltei pra casa milhares de veze. O meu pai, já me buscou milhares e milhares e milhares e milhares de vezes. No máximo que eu fico é nove meses, é o máximo... o máximo que eu fiquei foi nove meses, é quatro, cinco, seis, depois eu fujo. Espero uma brecha deles e fujo. Eu tenho duas irmãs. Uma faz faculdade de biologia... tem um menino, é casada... E a outra também tem uma menina, e é ca- sada, o marido é motorista. Eles dois têm uma vida estabelecida, têm filho. Eu sou a única que sou assim... Nem um neto eu pude dar pra minha mãe. Nem um neto! Só tristeza. Só tristeza, só a dor... Mas a minha mãe fecha mais com as minhas irmã. Mas eu não, eu não acho elas melhores do que eu, mas elas não entendem, elas... não entendem, eu criei as duas, mas na cabe- ça delas... Sou a mais velha, eu criei as duas, saí da escola pra cuidar das duas. Mas na cabeça delas não entra porque eu fico nove meses sem usar e depois eu volto, e elas não entendem, elas falam que é sem-vergonhice. Que não é mais um vício, que

é a minha sem-vergonhice, entendeu? Elas entram na mente da minha mãe com isso. Aí fica nisso, mas não é, eu não queria!

”Meu maior pobrema na minha vida, não é o HIV. O

maior pobrema da minha vida é o crack”

Puxa, eu queria trabalhar, estudar, ir pra a praia... ir pro cinema, não ser tratada... Quando eu tô gordona, quendo eu... é muito bom, as pessoas me olham com outro olhar, ou tu acha que eu gosto de ser olhada com olhar de pena? Ou então de nojo e de crítica. Entendeu, é vários olhares, cada pessoa pensa de um jeito, entendeu? Eu não gosto de viver assim, eu não gosto, mas eu não consigo. Eu não consigo! E aí, eu não consigo, se tivesse assim... uma experiência, “Ah, vamo trocar o organismo dela todo... pra tirar o... “, eu ia querer na hora participar. Pô, se eu pudesse arrancar o... esse sangue meu, que... Meu maior pobrema na minha vida, não é o HIV. O maior pobrema da minha vida é o crack! Todo o pobrema da minha vida, tudo, tudo é o crack! Pro HIV tem remédio, porque eu... sei lidar com o HIV, um pouco, mas... sem o crack eu não sei lidar. Eu vou ficar um tempo, mas uma hora eu vou pedir o meu... o meu... eu me

empolo, parece que eu vou morrer, eu sonho...

Que nem hoje, eu fumei, né? É porque, porque... eu tinha, eu tinha tomado um banho e eu também, não deixei me... assim, é um psicológico, eu não me... deixei envolver muito, que eu tinha acabado de... eu fumei e tomei um banho, então o banho tinha cortado, eu tinha acabado de chegar e a dona Cássia chegou. Porque se eu... se eu acabo de fumar, e não tomo um banho e ela chega, eu estou parada num lugar, eu não ia vim, mas hoje eu fumei e eu tava muito suja, aí foi eu ir lá tomar um banho, tomei um banho. Quando ela chegou, eu tava trocando de roupa, então já tava... eu já tava careta. Mas no pensamento do que ele tinha ido buscar lá!

Aí no momento que ela veio e falou “Vamos lá”, eu pensei: “Não, ele foi buscar o crack, ele vai chegar, ele vai fumar tudo e eu vou ficar sem”. Aí falei, “Não, o crack depois eu dou um jeito, eu tenho é que cuidar da minha saúde”. Entendeu? Porque senão, vai passando os dia, vai passando as hora... Daqui a pouco, eu

184

sento no chão, a minha bunda dói, eu não tenho mais... Olha aqui, ó, tô muito magra, aqui, ó. Olha! Tá maluco, que é isso? Eu não sou assim não, olha! Nossa, eu fui muito bonitona, agora não, eu tô... eu tô frágil! Você vê? O meu marido me abraça as- sim, e fala “Ah, não, vou parar”. “O que foi, Nem?”. “Eu tô com medo de te quebrar. De tão magra que tu tá”. Mas é verdade. Quando tô com dor, com febre, essas coisas? Eu venho pra cá. Com a dona Cássia, não vou a nenhum outro médico, nenhum. Não vou no UPA. Se não eu aguardo. Só se for assim, se eu me cortar, se for coisa de se costurar, aí eu vou no UPA empurrada. Mas se eu tiver com febre... Eu se for febre, eu tomo dipirona, eu tomo antibiótico, eu dou o meu jeito. Porque eu não gosto do UPA. Dipirona, eu já tenho. Porque eu gosto de vim aqui, porque aqui eu sou tratada bem. Nos outros, os médicos, eles olham a gente assim, com cara de nojo. Às vezes dá sorte de pegar um... um médico legal, que te trata como um ser humano, mas eu vou falar uma coisa pra você. Eu tenho o maior medo, sabe por causa de quê? Eu tenho medo de chegar lá, e tem gente que tem ódio de cracudo.

”Eu tenho medo de eles me darem uma injeção e eu

No documento Histórias de Vida, vozes da rua (páginas 179-183)