• Nenhum resultado encontrado

Tem gente que pode usar a droga porque a droga não domina Não domina ela E tem gente que não pode

No documento Histórias de Vida, vozes da rua (páginas 141-147)

nem beber”

Tem gente que pode usar a droga porque a droga não domina. Não domina ela. E tem gente que não pode nem beber. Eu, por exemplo, eu cansei várias vezes de me... me controlar. Eu usava numa sexta-feira, passava, assim, eu já bebia, sempre ia pra casa e tudo certo, parecia que nada aconteceu. Mas é... um passo pra... pra recaída total, não adianta. Não adianta. Eu via colega meu, eu me lembro que eu via colega meu que na sexta-feira tava bebendo comigo, cheirando comigo, onze horas da noite, o cara ia pra casa. O cara saía de manhã, seis horas da manhã pra trabalhar, eu ainda tava na rua usando droga e bebendo. O cara ia embora, pra casa, normal, dormia, seis horas acordava e tava eu lá no bairro bebendo... Comigo é assim.

”Meu sonho, meu sonho é poder viver, pra ver meu

neto, minha filha. Sinto muita saudade deles”

Meu sonho, meu sonho é poder viver, pra ver meu neto, minha filha. Sinto muita saudade deles. Há uns dois meses atrás eu tava falando com eles pelo Facebook, consegui encontrar ela, tinha um ano praticamente que eu não falava com ela, não vi o garoto, depois que eu tive a recaída, lá em Santíssimo, em 2016. Aí, sempre tava conversando com ela... Eu sinto falta dele, não adianta. E ela, não fui presente na vida dela não. A mãe da minha filha, quem praticamente sustentou foi meu pai, e a mãe dela também. Pode ser a doida que for, mas a avó é de correr atrás, parou de usar droga, se aposentou. Tá lá vivendo a vida dela. Quando eu sumi, quando eu sumi, eu acho que no enterro do meu pai que ela foi com a minha filha, aí ela falou: “Você tá sumido, largou a tua filha de lado, mas o teu pai não abandonou a menina”. O meu pai foi o primeiro a dizer pra mãe da minha filha pra não se envolver comigo. Meu pai: “Você volte pra ele não. É meu filho, mas ele tá no tráfico, tá roubando, tá cheirando à pampa. Tu vai arrumar filho com ele não”. Quando a mulher engravidou, aí pronto, meu pai ficou doido, ficou doido. Dali foi só... derrota...

Quando tenho algum problema de saúde eu busco ajuda aqui na Clínica da Família. Se eles não estiverem aqui eu vou pro UPA. Vou falar a verdade, não é em todo lugar que sou bem recebido não. No UPA Aí já corre uma discriminação. Eu acho que aquele papel lá daquela Lei 2475996, que... Ééé... eu acho que é... não discriminar. Eu sofro esse... sofro, tenho sofrido esse preconcei- to no UPA mesmo. Tem duas funcionária que... detesta morador de rua. Elas não gostam. Eu discuti com elas uma vez, elas tavam trancando o banheiro pra a gente não usar. Banheiro, do UPA, que a gente dorme ali, tá entendendo? Trancando banheiro. O rapaz dava comida pra a gente, janta, o rapaz da limpeza. O que sobrava, ele dava pra a gente, elas brigavam com o cara, pro cara não dar mais. O cara até tinha sumido, aí voltou de novo. Aí só o plantão de ontem que é de um amigo meu aqui de Manguinhos, que, que ele dá. Ele dá, deixa o banheiro aberto, deixa a gente à vontade, é só não fazer bagunça. Mas

144

infelizmente tem um monte também que faz bagunça, né? Aí, às vezes até tem que entender elas, tem uns camarada que eu vi, eu tô na rua e eu vejo. O cara defecar onde tá dormindo, do lado, onde tá dormindo, já vi várias vezes. Não toma banho não! Não toma banho não.

O outro aí tá reclamando aí. “Eu pego, eu consigo”. Eu acho que hoje não consegue não, nem sempre eu consigo não. E ele não consegue por causa do jeito dele. Eu também sou um cara explosivo, tá entendendo? Mas... eu preciso medir, minhas palavra com os outro, tudo isso. Hoje de manhã ele tava dis- cutindo com o vigia lá do outro lado, porque seis horas o vigia manda todo mundo sair. Vai trocar depois de plantão, põe umas menina ali pra lavar. Foi discutir com o cara, aí eu falei: “Meu irmão, isso aqui não é dormitório não, cara, isso é um posto de saúde, meu irmão, de atendimento pra doente, não é pra a gente dormir não. O pessoal já tá deixando nós dormir, a noite toda aí. Tá reclamando por causa de quê?”. Quando reclama fica mais difícil, com certeza. Tem que aturar filho dos outro, morador de rua, na rua, cuidar de filho dos outro, pode contar no dedo aí. Se a gente morrer, pra muitos aí... É lucro pra eles.

Eu, tenho medo de ser atendido num lugar que não conheço, claro que tenho. Eu corro pra cá, toda recaída que eu tenho, pode perguntar a eles, eu venho pra tratar com o consultório mesmo. Eu confio neles, na equipe, e isso não é de hoje. Já deve ter uns seis anos já. Em 2012 eu já vinha pegar, sete anos por aí. Uns seis, sete anos. Quando eu não pegava meu remédio aqui, eu pegava lá no CAPS, entendeu? Tanto lá como aqui. Agora dá medo. Como eu falei dessas mulher ali, elas não gosta de morador de rua. Não gosta, por causa daqueles cracudo, que isso e aquilo, entendeu? Eu discuti com elas.

Mas se eu passar mal no plantão delas, ué, elas vão ter que me atender! Elas tão na mesa, o médico tá lá dentro, vai ter que me atender. Graças a Deus não aconteceu ainda não. Esses dia que eu passei mal, não era plantão delas não, era do outro funcionário. O cara trata a gente bem às pampa, o cara vive em comunidade aí, entendeu? O cara trata a gente bem às pampa, só pede pra não fazer bagunça, dá comida pra gente todo o plantão dele. Todo plantão dele dá janta pra gente. Quando

eu não pego o almoço aqui, eu vou lá na freira, lá na Arlindo Teixeira. No convento que tem lá, e eles dão almoço. Eles dão almoço lá, o café da manhã, também eu tomo lá. Eles tão pra ver um negócio aí, vou dormir lá amanhã. Eles tão com dezessete morador de rua lá, fazendo retiro com eles, pra depois mandar eles pra o Maranathá, uma casa de recuperação que tem. Eu já passei lá um ano, desse aí, lá em Realengo, mas foi só uma semana. Eu tava em Bonsucesso na época.

Viver em casa de recuperação é confronto direto. O bom é não tá na rua. O bom é não está na rua, eu suportei dez meses ali, não é brincadeira não, cada cara mandado do inferno. Se eu pudesse, eu matava o desgraçado. Pessoas que vive lá, não é pastor, nada disso não. Os caras que chega da rua, mandado mesmo, pra perturbar. Só pra perturbar, fica uma semana e vai embora. Eu me aborreci com dois lá, os caras me infernizando. Com dois lá, desobediente, não sabe como morar no nível do quarto, do projeto, o que é que aconteceu? Eu fui embora, dois dias depois veio o pastor, e o pastor falou que os dois foram embora. Falei, “Miserável, como é que pode?”. O pastor: “Você foi embora por causa dos caras, não suportou os caras, os caras foram embora”.

Lá pode ficar o tempo que você quiser! Tu morre lá. O pastor, por causa de alma, homem de Deus, servo de Deus, o pastor ajuda, muitas pessoas vai lá. Eu fico com vergonha de voltar, só ligo daqui às vezes pra ele, ele ajuda os pessoal de rua, mesmo quem não quer ficar no centro de recuperação, é na igreja mesmo, tudo limpinho, cama, tudo, chega doação de roupa, tudo. Boa alimentação, eu cozinhava, eu ficava na cozinha quando cheguei lá. E ele ajuda muito as pessoas, só que eu não tenho coragem de voltar pra lá mais, sabe? Eu não tenho coragem não. Eu não tenho coragem, não, foi muita humilhação. Porque... Vira uma coisa que... Porque o que é que acontece, a vida com Deus é uma coisa que tem... tu tem que viver na verdade. Não adianta ficar de engano que um dia a casa cai, e infelizmente ela caiu. Saí com mulher, o caramba. Ainda tava andando com um cara lá. Não adianta, e Deus permite isso, Deus permite. E aí, o pes- soal: “Ah, ele foi embora...” Não, Deus que deixou ele mesmo, tá de engano, de mentira. E onde impera a verdade, é verdade

146

e acabou, não pode ser lá e cá. A pessoa vive a verdade, pela mentira... E tá eu aqui... Ó o que a mentira me causou! A mentira é várias relação. Sabe que dependente químico é manipulador, é mentiroso, entendeu? De dez verdade, onze é mentira. Quantas vezes eu pedi dinheiro pra comer, pra comer, e fui usar droga. Um dia mesmo aí, eu fui indo lá pro Nova América Shopping, catar um negócio, aí veio uma moça, a moça pegou, pedi a ela dois reais pra mim comer um salgado, um negócio, um pão, a mulher deu vinte. “Obrigado, tá, tia!”. Atravessei a rua, peguei um ônibus, Jacaré. Pedra, cachaça. É pra tu vê. A vida dum camarada desse vai andar como? Não anda não. Se me mostrar um que vive na mentira e a vida dele tá andando...

Pra minha vida andar é ir pro trabalho, voltar, entendeu? Voltar, a minha vida a andar é isso, como tava andando em 2015 pra 2016, como tava andando a última vez agora, tava andando. Dormia tranquilo, acordava tranquilo, arrumei uma cachorrinha, a cachorrinha tá lá, entendeu? Ah, eu vou te dizer. Isso é... isso é um... não sei se vai acreditar ou não, mas o meu problema é espiritual, meu problema é espiritual, não adianta. Todo mundo sabe disso, que uma doença química é isso. É físico, espiritual, entendeu? Não adianta. Só a bíblia, a palavra de Deus, é o que tava salvando a minha vida. Eu sempre falo isso. A palavra de Deus salva a vida da gente a cada dia, até que passe atribu- lações, dificuldades, mas Deus tá no negócio. Se Deus tá no negócio, você vai em frente, a sua vida anda. Minha bíblia tá lá no pastor, sinto falta dela, claro que sinto. Tá lá no pastor, tá lá em São Cristóvão. Eu até liguei pra ele e falei que eu ia lá buscar, mas tenho vergonha de chegar lá. Saí de lá assim, chegar lá isso aqui? Trapo de homem que eu tô! Tenho vergonha, vergonha!

148

“Como eu pude

No documento Histórias de Vida, vozes da rua (páginas 141-147)