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Cenário e Gestão de Tempo e Espaço

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3 APROXIMAÇÃO À NARRATIVA DO EVANGELHO DE MARCOS

3.4 CRÍTICA NARRATIVA

3.4.3 Cenário e Gestão de Tempo e Espaço

O cenário é a ambientação interna da narrativa, aquilo que lhe dá seu mundo. Ele é o enquadramento que o conjunto da cosmovisão, do quadro histórico, sociocultural e político, do tempo interno e do ambiente geográfico onde se passa a história, dá à ação dos personagens. No caso do Evangelho do Marcos, o cenário é responsável por uma parte do acesso à memória componente da mimese I e também da verossimilhança da narrativa. Veremos aqui que, além disso, a gestão

46 Na ironia verbal uma coisa é dita querendo significar outra, por exemplo o dito “dai a César o que

é de Cesar e a Deus o que é de Deus” (Mc 12,17) parece que incentivo ao tributo, mas pode significar que tudo em Israel deveria ser de Deus. Outro exemplo de ironia verbal são os insultos como os que os soldados que prendem Jesus proferem. Na ironia dramática há uma discrepância entre o que o personagem pensa ou espera e a situação real. Ela aparece no Evangelho como um todo, tendo em vista que o Reino de Deus é diferente do que os personagens esperam. Outro exemplo: Pedro (pedra) é assim chamado a despeito do seu caráter.

do espaço narrativo e do tempo chamam à catarse, invocando a continuação da ação narrada pelos receptores.

As esferas da vida não eram separadas para as pessoas do primeiro século. Os sofrimentos e opressões econômicas e sociais não eram desconectados da sua visão religiosa de mundo, por isso, eram associados ao mal, isso se reflete no texto de Marcos, que conta, afinal, uma história religiosa, sobre acontecimentos passados. Segundo Rhoads, Dewey e Michie (1999), na cosmovisão religiosa apresentada em Marcos, as pessoas criam que as histórias natural e humana não se separavam. O universo era a criação de Deus e os homens foram criados para dominar a criação. O mundo seria um plano de quatro cantos cujo centro seria a nação de Israel. O céu se estenderia do mundo até onde Deus habita e seria um dossel onde estão pendurados os astros. Neste universo, habitariam Deus, anjos, Satã, demônios, animais e seres humanos. Mas, naquele momento, o povo acreditava que estava acontecendo uma inversão escatológica: os demônios possuíam os homens, causando doença e violência. Essa inversão teria fim com a chegada do messias. Tal crença permitia a continuidade da fé monoteísta judaica, pois retirava de Deus a culpa da situação terrível pela qual a população passava. Ferreira (2003, p. 146 e 147) argumenta que Marcos conhece o imaginário coletivo da batalha escatológica, surgido no período da revolução macabaica, onde se pensava que os anjos decaídos tinham poder de pôr à prova os seres humanos e possuí-los. Na cosmovisão colocada pela história de Marcos, o mal precisa dar lugar ao Reino de Deus. Portanto, os milagres, curas e exorcismos são sinais de que o Reino chegou. A ideia a ser transmitida é que, no Reino de Deus, a pessoa é salva na totalidade, é liberta e recebe vida.

O contexto político da história compreende a dominação romana, com sua organização política e com os líderes político-religiosos judeus ao lado do inimigo. Essa situação causa uma opressão integrada à ideia de inversão cósmica. Sob a dominação romana, o mundo da história tem o seguinte quadro político: Herodes Antipas é o rei da Galileia indicado por Roma e Pilatos é o procurador da Judeia. As autoridades de Jerusalém que controlavam a Judeia e o Templo eram Caifás e demais sumos sacerdotes, os anciãos e o restante do Sinédrio. Eles parecem bem definidos para o receptor, apesar de não estarem tão infiltrados ao longo da narrativa, aparecendo apenas pontualmente. Os fariseus e escribas estão mais

infiltrados, são originários de Jerusalém e representam os sacerdotes dessa cidade (FREYNE, 1996, p.41-46; HORSLEY, 2001, p.151).

Esses grupos de inimigos judeus do movimento de Jesus são parte do contexto religioso, político e social da história. Os fariseus são tradicionalistas, representam aqueles cuja a preocupação é a manutenção dos costumes judeus e da identidade étnica, sua atuação é quase exclusiva na primeira metade do Evangelho. Sumos sacerdotes e saduceus são integrados com o projeto do Templo e são mencionados mais fortemente na segunda metade da história. Os escribas são o grupo político-social que se apresenta ao longo de toda a narrativa, frequentemente associando-se a outros. São entendidos como autoridades legais, doutas na interpretação das escrituras. Eles recebem a maior e mais direta crítica do Evangelho (VAAGE, 1998, p.16-19; MARCUS, 1999, p.1101). Com a crítica a esses grupos, o Evangelho de Marcos se coloca contra o projeto sociorreligioso do Templo, colocando impedimentos a sua recuperação pela comunidade, põe em dúvida o apego à etnicidade e o aprofundamento das regras de pureza para os leigos, possibilitando a participação de outras etnias na sua comunidade cristã, e pontua a disputa pela interpretação das escrituras.

O quadro social da história é o típico das sociedades rurais da antiguidade e foi descrito mais detalhadamente no segundo capítulo: uma pequena elite – composta pelas autoridades, aristocratas, donos de terra; a maioria da população estava em nível de subsistência – estrato composto de trabalhadores diários, arrendatários, artesãos, comerciantes locais, pescadores etc.; mas havia, ainda, uma parcela abaixo desse nível, ali estão muitas viúvas, doentes, mendigos, prostitutas etc. Jesus, por ser artesão, dispunha de uma mobilidade maior que a dos camponeses e meeiros que se fixavam aos locais de cultivo e pode ser encaixado no estrato social em que o nível é de subsistência. Embora Marcos não descreva pobreza extrema na Galileia, o faz em Jerusalém47.

Esse conjunto de ambiente de dominação e cosmovisão ainda era verdade na época da composição de Marcos, embora com um quadro político diverso, pois as lideranças romanas já eram outras pessoas e as judaicas foram dispersas pela Guerra. A história se relaciona tanto ao acesso à memória das histórias vividas por

47 A passagem da viúva pobre em Mc 12.41-44, analisada no capítulo cinco deste trabalho, mostra a

pobreza em Jerusalém. Porém quando das multiplicações de pão, os discípulos julgam que seria fácil para a multidão encontrar alimento nas cidades da região, o que sugere que a pobreza não era extrema.

Jesus, como ao reconhecimento das situações cotidianas que eram realidade para a audiência. As pessoas reconheciam os grupos políticos, religiosos, a presença militar, a fome, a presença de doentes, de trabalhadores diários e o medo que compunham o cenário da história. Retratar esse ambiente na narrativa é verossímil e produz identificação, reforçando o efeito catarse. Isso também é uma estratégia ideológica, pois o retrato das lideranças políticas é negativo.

Com respeito ao ambiente físico, a crítica literária interpreta o cenário espacial e temporal do Evangelho de Marcos internamente. É típico dos judeus evocar lembranças do passado, como o tempo dos patriarcas e do Êxodo e ressignificá-las para o momento vivido. Esse costume é bem aparente nas referências do cenário geográfico de Marcos. Em geral, os cenários são importantes para o drama e têm valores conotativos e associativos que contribuem para o significado da narrativa. A continuidade da memória histórica e religiosa do povo de Israel se coloca também na evocação desses locais. Portanto a construção do cenário é ideológica e resistente ao invasor romano, pois reafirma sua origem, ancorando-a no divino. As referências geográficas são confusas e nem sempre possuem ligação com a realidade. Por exemplo, Jesus sobe na montanha durante o Evangelho, mas elas não existem na Galileia, no entanto, fazem parte de ambientações importantes da história religiosa judaica, como lugar do encontro de Deus com os líderes de seu povo. Assim, Jesus fica caracterizado como uma liderança do povo que é autorizada por Deus. Como nesse exemplo, outros cenários físicos remetem ao passado de Israel e evocam memórias de libertação e encontro com o divino: o rio Jordão, logo no início da narrativa remete à entrada na terra prometida, o deserto como lugar de teste tanto para Jesus como para o povo de Israel em Êxodo, o mar como cosmogonia, onde Deus e Jesus demonstram poder e também o caminho divino de saída do Egito, as montanhas onde aconteceram epifanias e revelações. Todos esses cenários marcam pontos importantes da história de Marcos, como o batismo, a tentação de Jesus, travessia do mar para chegar aos gentios, a transfiguração etc. Essas passagens ficam associadas aos eventos marcantes da história como passagens que representam a aprovação de Deus e a libertação que chegava com Jesus (MALBON, 2008, p. 36-38; RHOADS, DEWEY e MICHIE, 1999, p. 70).

Dessa forma, diante do rabinismo incipiente ou de grupos judeus sobreviventes da guerra, que buscavam na interpretação tradicional das escrituras a

base para a continuação cultural e religiosa do judaísmo, o texto desautoriza as lideranças judaicas, mostrando o afastamento do projeto social de Deus, com isso nega os projetos religiosos de separação étnica, resgate da estrutura corrompida do Tempo e a interpretação das escrituras com base nesse projeto. Ao mesmo tempo, reforça, com o apelo aos símbolos espaciais e à memória traditiva, a autoridade de Jesus, concedida por Deus, como fonte de orientação para a vida comunitária, inclusive na interpretação das escrituras. O cenário ajuda no processo de resgatar a história conhecida pelas escrituras e a ressignificá-la.

Como visto ao estudar a estrutura do Evangelho, a mudança de cenário com o deslocamento da Galileia para Jerusalém divide a narrativa. Esse deslocamento macrogeográfico se faz geopolítico48 – representa oposições políticas entre o povo e

a elite localizada em Jerusalém; e teológico – a Galileia é o lugar onde se desenvolve a implantação do Reino entre os marginalizados e em Jerusalém se encontram os inimigos de Jesus.

A primeira parte tem início no rio Jordão, mas muda logo para a Galileia após o batismo e a tentação no deserto. Ali, a ação se dá proeminentemente nas andanças de Jesus pela Galileia, onde a mensagem do reino é recebida entusiasticamente, exceto em Nazaré e vizinhanças não-judaicas, onde inicialmente não é tão bem recebido, mas depois essa situação muda e multidões são alimentadas no deserto. As viagens por essas regiões trazem a ideia de que, para Marcos, o governo de Deus também é para os não judeus, que respondem à mensagem da mesma forma que os judeus, portanto podem fazer parte da comunidade.

O texto não traz uma descrição da região da Galileia, ou de qualquer outra, são as ações de Jesus e os seus discursos que caracterizam a localização rural, pois se voltam para as vilas49 dessa localidade e as regiões circunvizinhas. O caráter

rural é descrito na ênfase em preocupações econômicas dos agricultores e pescadores e no uso dos símbolos pertencentes ao seu mundo nas mensagens do reino, tais como semeador, semente, solo, candeia, colheitas.

48 Sobre isso, ver Malbon, 1986, p.15-49, que mostra que a tensão entre esses dois pólos

geográficos corresponde a uma característica mítica ou parabólica do Evangelho de Marcos e que a mediação entre esses pólos não era desejável ou possível para o autor do evangelho.

49 O sul da região era cosmopolita, mas essa construção de cidades deve ter oprimido ainda mais a

população rural com a cobrança de impostos, o que acirra a hostilidade entre cidades e vilas. Cf. Horsley, 2001, p. 35.

A entrada em sinagogas também é mencionada, dando a impressão de que existem muitas na região, e confirmando um ethos judaico na região da Galileia, que, pela distância do Templo, tinha outras características religiosas mais acolhedoras. Há, no texto, uma clara distinção entre cidade e aldeia campesina. Jesus visita as regiões de cidades helenísticas, em território não-judeu, mas não entra nestas cidades. Essas características sugerem um mundo social diverso e realista que, embora judaico, permitia contato com os que não o eram. Para Marcos, questões étnicas de diferenças religiosas eram superadas por semelhança social, pela fé em Jesus e pela ideia de que o alcance aos gentios era coerente com a religião israelita (FREYNE, 1996, p. 38-43).

Outra alternância que se faz notável na narrativa é entre cenários privados e públicos. Os lugares privados marcam a interação de Jesus com dois grupos e, ao mesmo tempo, duas linhas dramáticas: o discipulado e os conflitos com as autoridades. Nos lugares públicos, Jesus atende a multidão que o procura: exorciza, cura e ensina (RHOADS, DEWEY e MICHIE, 1999, p. 70ss). Nos lugares privados, ensina e convive com seus discípulos. As mudanças de cenário no decorrer do ministério também são consequência do crescimento da popularidade de Jesus. Inicialmente, a atividade é pública, mas é realizada em casas; depois, o cenário das atividades públicas muda para espaços abertos, pois os ambientes fechados não comportam mais as multidões.

O caminho da Galileia para Jerusalém delimita a virada na história: Pedro reconhece Jesus como messias, que, antes, só fora reconhecido por espíritos imundos e Deus. Muitos locais são visitados por Jesus no caminho (Jericó, Betânia, Monte das Oliveiras), eles mostram que a oposição se concentrava em Jerusalém e não na Judeia. Diminuem as ocorrências de milagres, há mais ensinamentos. Agora, o caminho de Jesus vai levá-lo a Jerusalém e ao martírio.

Em Jerusalém, há um aprofundamento dos conflitos. A festa da Páscoa traz consigo expectativa e tensão, pois os receptores já devem entender o significado da festa. Esse aspecto de o ápice dramático ser em Jerusalém, devido à conexão da cidade com os tempos finais, feitas no capítulo 13, é crucial para a narrativa. A tensão dramática é incrementada em relação à Jerusalém desde o início da história, pois escribas e fariseus, os que se colocam contra Jesus, são associados à cidade.

O cronotopo é circular com relação ao espaço: inicia no Jordão, passa à Galileia, tem seu ápice dramático em Jerusalém e tem um retorno aberto para a

Galileia. O final da história, com a cena das mulheres no túmulo como testemunhas da ressurreição, remete a atenção novamente para a Galileia como local do movimento de Jesus e abre o tempo para um futuro de continuidade do movimento.

O início da narrativa dá a impressão de que uma pré-história de espera acaba de se completar, com a frase de Jesus: “o tempo está cumprido” (1,15). Mais adiante, logo após a previsão de sua paixão, Jesus informa que os presentes não provarão a morte até verem o Reino de Deus chegando com poder (9,1). Esses dois passos somados ao final aberto ao futuro mostram que o tempo histórico considerado na narrativa se estende além do tempo do enredo, para trás e para adiante (FREYNE, 1996, p. 51).

A gestão do tempo narrativo, como foi colocado quando abordamos o papel do narrador e a retórica, também faz uma divisão clara do texto. Na primeira metade, há um efeito de aceleração, os episódios são curtos e há uma progressão rápida da narrativa, crescem as oposições assim como a fama de Jesus. Na etapa do caminho, esse compasso já é diminuído para se tornar lento na narrativa da paixão, isso gera um efeito de aumento da dramaticidade, sendo a crucificação seu clímax.

Com um final em que o cronotopo fica aberto ao futuro, pois Jesus havia ressuscitado e esperaria na Galileia, como havia dito, para continuar, há possibilidade de os receptores identificarem-se como aqueles do futuro da narrativa, que receberão os ensinamentos de Jesus, agora de uma outra forma. Eles podem, também, completar a história, que termina com essa expectativa futura de encontro.

O cenário do Evangelho de Marcos é tão diverso quanto sua estrutura. Suas localizações geopolíticas (Galileia, território gentio, Jerusalém), topográficas (mar, deserto, montanha) e arquitetônicas (casa, Templo, sinagoga) acompanham a evolução da narrativa como meio de evocação cultural e como símbolo ideológico dos conflitos da trama. Ao mesmo tempo, mostra que a história é verossímil e que é capaz de dar local aos anseios de resistência, acolhimento dos não-judeus e resgate da memória discursiva traditiva das comunidades cristãs. A gestão de tempo e espaço conduz o significado da narrativa marcana, marcando os pontos importantes da narrativa, os ápices dramáticos, e denota ideologia ao associar e enfatizar o sofrimento e a paixão de Jesus com Jerusalém, e a expansão do Reino com a Galileia e o tempo de ensinamento com o caminho como momentos narrativos diferentes, em locais e temporalidades diversificadas.

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