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GÊNERO LITERÁRIO

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3 APROXIMAÇÃO À NARRATIVA DO EVANGELHO DE MARCOS

3.2 GÊNERO LITERÁRIO

A partir do contexto da região da Síria-Palestina, já descritos no segundo capítulo, nota-se que o Evangelho de Marcos é um produto da igreja cristã primitiva em um momento muito tenso. Já percebemos que seu objetivo era uma reorientação comunitária e que suas fontes eram orais e escritas e provenientes de diversos movimentos. Dada a escolha da língua do Evangelho, esta comunidade diversa provavelmente tinha no grego koiné sua língua mais utilizada, portanto era permeada por uma cultura helenística. A performance oral comunitária era característica dessa cultura helenística e, em consequência, a retórica era de grande importância.

Por isso, os estudos do gênero literário, como meio de comunicação, e dos subgêneros utilizados também se faz importante. Embora possamos entender o gênero literário como o uso de determinadas convenções formais e gramaticais que dão características comuns a um grupo de obras, aqui preferimos entendê-lo como um acordo prévio entre autores e receptores, sobre um conjunto de expectativas

compartilhadas e pré-entendimentos exteriores à uma obra literária que possibilitam segui-la, pois o que as pessoas entendem como gênero determina como elas acessam o conteúdo do texto. Esta etapa é uma importante base para compreendermos quais as possibilidades de acordo entre a equipe redacional e a comunidade na recepção da narrativa contida no Evangelho de Marcos e assim enquadrar a recepção das perícopes que analisaremos nos capítulos seguintes.

O título conhecido da obra em questão é Evangelho segundo Marcos. O termo evangelho não foi cunhado pela equipe redacional de Marcos. Evangelhos eram as boas notícias do nascimento, ascensão e vitória do imperador, eles eram proclamados na Síria e em todo lugar como novas da proclamação de Vespasiano em 69 d.C.. Era uma forma de propaganda para fazer com que o imperador tivesse seus feitos reconhecidos e fosse, dessa forma, venerado pela população. Marcos pode ter usado essa terminologia para o conteúdo de sua descrição de Jesus como forma de criar um anti-evangelho em resposta aos que corriam o Império Romano a respeito do surgimento dos Flavianos (THEISSEN, 2003, p. 101-102).

Nesse sentido, a própria origem do Evangelho já tem mais uma característica: é um discurso com uma ideologia bem aparente e dialógica com suas condições exteriores. É uma elocução responsiva que assimila a forma de outros discursos orais e escritos que já circulavam divulgando uma ideologia pró- imperadores romanos (e também contrária ao Reino de Deus), mas que reverte o conteúdo desses discursos. O Evangelho de Marcos anunciava o Reino de Deus que tinha como Senhor um herói cujo movimento se construía em cima da libertação, não da guerra ou da dominação, e cujos valores que difundia não eram mais honra e glória, mas serviço e entrega.

Provavelmente, ao tempo da composição de Marcos, o termo evangelho permanecia ainda ligado com a proclamação oral (KOESTER, 2005, p.184). Diante disso, permanece a dúvida se a proclamação oral a que o autor se refere em Mc 1,1 é ‘sobre’ Jesus ou ‘de’ Jesus (COLLINS, 2007, p. 16), ainda assim, transmitir esse conteúdo de ou sobre Jesus, ou ambos, é um posicionamento responsivo de resistência ao poder do sistema romano a partir de nova formação cultural. Pode-se então dizer que o termo evangelho correspondia a um gênero de discurso, mas que dificilmente corresponderia a um gênero literário específico para uma narrativa como a contida no Evangelho de Marcos.

Novamente, não há um consenso entre os estudiosos para tratar o gênero do Evangelho de Marcos. Alguns acham similaridades com a literatura greco- romana, outros o comparam com a literatura judaica, outros creem que Marcos criou um novo tipo de literatura considerando influências dos diversos tipos de escritos da época.

Muitas formas literárias, principalmente helenísticas, foram comparadas com os tipos de tradições presentes em Marcos. O Evangelho de Marcos acaba por não se encaixar em nenhuma delas pela falta de forma ou pelo fato de elas serem construções modernas (KEE, 1977, p. 29). Porém, existem algumas com as quais o texto de Marcos guarda algumas semelhanças.

Uma aretologia35 não pode ser usada para estabelecer paralelos, pois, no

geral, elas tratam de divindades e não de seres humanos (KEE, 1977, p. 17-18; BERGER, 1998. p. 313). Marcos também não se encaixa no gênero romance, mais pela intenção séria que pela forma em si. No caso das martiriologias36, não foi

achada interdependência literária, mas sim o fato de que, sob condições semelhantes, foram produzidas literaturas semelhantes. Uma evolução com influência judaica da unidade retórica greco-romana chriae (creia) pode ser encontrada em diversas partes do Evangelho, como as controvérsias de Jesus com as autoridades. No entanto, a cultura judaica tinha também se apropriado dela anteriormente. As coleções de milagres podem ser encaradas da mesma forma que as chriae, pois tanto a literatura judaica quanto a helenística apresentam coleções como estas. Sendo que na primeira para confirmar uma interpretação da Lei e na segunda para propaganda ideológica (KEE, 1977, p. 19-24).

Para Berger (1998. p. 312-322), o gênero literário que mais se aproxima do Evangelho de Marcos, assim como dos outros evangelhos, é então a biografia helenística, mas isso porque ela é tão multiforme que poderia facilmente englobar os evangelhos. São aspectos comuns a orientação moral, a relação positiva e afirmativa com as normas gerais, a elevação do herói acima da natureza comum, a importância política e social do herói, apresentação da história do sofrimento e morte, narrativas paradigmáticas.

35 Uma coleção de proezas ou milagres atribuídos a deuses (KEE, 1977, p. 17).

36 Histórias de pessoas reconhecidas pela sabedoria que sofrem nas mãos de autoridades civis ou

Collins (2007, p. 91-93) mostra que, embora não se possa colocar o gênero de Marcos como uma tragédia, seu modo de composição é definitivamente trágico. Basicamente, porque o texto se compõe de uma série de peripécias, que trazem mudança de situação prováveis ou inevitáveis. Começando com a trama de fariseus e herodianos contra Jesus, este experimenta tanto aclamação, na confissão de Pedro, como rejeição, dos discípulos e do povo. A narrativa evolui em um nó que começa a se desfazer na confissão de Pedro. Outro elemento comum é a calamidade que, no caso, é apresentada na morte de Jesus.

Em seu livro anterior, Is Mark´s Gospel a life of Jesus? (1990), Collins defendera que o Evangelho não é uma biografia, pois Marcos não tinha a intenção de tomar Jesus como modelo, nem autenticar sua vida como fonte de qualquer tradição. Seu interesse era escrever uma história, não no senso moderno, mas devendo ser interpretada sob um senso apocalíptico ou escatológico. Seu pano de fundo seria a literatura judaica como Daniel e 1 Enoque.

Marcos se apropria das seis características apocalípticas principais. A primeira é a forma de descrição histórica que caracteriza a situação de crise narrada como um elemento necessário ao curso e ápice da história humana. A segunda característica é o dualismo apocalíptico entre a nova ordem de Jesus e a velha ordem mantida pelos escribas. Em relação com essa vem a terceira característica que é o combate apocalíptico, entre Jesus e Satanás. A quarta característica é a revelação secreta, feita aos discípulos, embora eles não a tivessem compreendido. O mistério ou paradoxo de que o sofrimento do justo Jesus é eficaz na criação da nova ordem se compõe na quinta característica. A estratégia de repetição e recapitulação é a sexta característica. Porém, como a história se dá em torno de eventos mundanos e corriqueiros, não pela ficção celeste, não pode ser considerado uma forma literária de apocalipse (MYERS, 1992, p. 136-139).

Tolbert (1996, p. 59-79) defende que o Evangelho de Marcos tem como inspiração formal a cultura popular helenística nos termos de um romance antigo. Para isso argumenta que as biografias costumam cobrir aspectos da infância e da formação dos heróis e trazê-los como exemplo, o que não é o caso no Evangelho de Marcos. E que formas como aretologia, biografia ou memorabilia não abrangem a história como um todo, mas podem ser comparadas com partes específicas. O romance popular antigo teria as características marcanas: uma história de linguagem simples com estilo bruto, sintética, de narrativas padronizadas, que combina

historiografia com drama e épico, que apresenta uma trama episódica com pontos de inflexão centrais, sequências finais de reconhecimento, sumários, repetições, personagens ilustrativos. No entanto, o Evangelho de Marcos não compartilha com esses romances populares o mesmo tipo de enredo.

Donahue e Harrington (2002, p.16) argumentam que o estudo dos gêneros helenísticos é interessante, mas que o estilo do Evangelho de Marcos encontra um terreno melhor se comparado com as narrativas da literatura bíblica do Antigo Testamento. A mistura com a historiografia e as mudanças rápidas de cena reverberam ciclos proféticos ou de heróis como Moisés e Davi. Além disso, ele não apresenta nenhuma citação de qualquer autor greco-romano ou apresenta autoridades além de Pilatos e Herodes. O Evangelho seria uma literatura distinta que “apresenta o evento-Cristo paulino (ou evangelho) de forma narrativa e que costura diversas tradições (inclusive do Antigo Testamento) para criar uma história unificada de significação salvífica da vida pública, morte e ressurreição de Jesus de Nazaré” (DONAHUE e HARRINGTON, 2002, p.16).

Concordamos que a forma da literatura popular helenística é coerente, principalmente considerando a diversidade de pessoas judias, gregas e romanas que compunha as comunidades nos anos 70 d.C. e a influência da cultura helenística nas sociedades mediterrâneas. Contudo, a maioria dos seus traços advém da fixação escrita da linguagem oral e sua retórica popular. Mas não se pode desconsiderar que as influências judaicas marcam o texto, a linguagem apocalíptica, as referências aos textos proféticos e salmos, a personagens como Moisés e Elias, formas que lembram comentários em forma de midrash, e um certo sentido parabólico da história não fazem parte do repertório helenístico.

O que se pode concluir a partir daqui é: o Evangelho pode ter sofrido influências estilísticas diversas, mas até agora não se sabe de um gênero literário corrente no primeiro século, ou anterior a ele, que contemple exatamente a forma que ele toma. Isso leva à conclusão de que Marcos utiliza formas helenísticas oriundas das elites, como a biografia e a aretologia, mas não sua linguagem superior. Ele mescla esses estilos, a retórica helenística e as tradições judaicas sob critérios de literatura popular. Com isso, mostra já heteroglossia e o dialogismo presentes em seu discurso. O Evangelho de Marcos é, então, uma forma de discurso secundário que engloba características de outras literaturas. Estas são utilizadas de uma forma nova, conjunta e criativa, para narrar as cenas que

entrelaçam situações corriqueiras e os momentos importantes da vida de Jesus constantes num repertório oral e escrito, com tradições e referências judaicas. Analisando isso pelo prisma da tríplice mimese, as memórias, contendo inclusive as formas literárias, da mimese I são recolocadas com um novo conteúdo no ato configurativo da mimese II com vistas a atingir e provocar um posicionamento contra-ideológico em uma audiência muito diversa social e etnicamente. Os autores do Evangelho fazem questão de assumir um quadro de paradigmas e utilizá-lo na sua comunicação.

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