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Retórica e Estilo do Texto

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3 APROXIMAÇÃO À NARRATIVA DO EVANGELHO DE MARCOS

3.4 CRÍTICA NARRATIVA

3.4.2 Retórica e Estilo do Texto

O Evangelho de Marcos pode dar a impressão de uma compilação de episódios curtos e um tanto desconexos. Mas a presença de sumários e dois discursos relativamente longos já levam a repensar essa percepção. Diante das muitas possibilidades e imbricações de estrutura do texto, fica ainda mais claro que ele faz uso de uma retórica planejada. Marcos usa uma série de recursos estilísticos e conexões narrativas.

A falta de uma escrita em grego com períodos elegantes, figuras estendidas ou humor leve e a presença de latinismos e hebraísmos não significam que não haja desenvolvimento retórico na narrativa e que o conteúdo e arranjo de material não sejam profundos e persuasivos. Tolbert afirma que o próprio uso de sentenças curtas e conectivos, sem o uso de particípios e subordinação é uma estratégia retórica para manter a naturalidade e dramaticidade do texto. Além disso, permite que o próprio receptor preencha os espaços de informação deixados por esse tipo de narrativa. Essas estratégias são comuns no romance helenístico popular (WITHERINGTON, 2001, p. 19, TOLBERT, 1996, p. 42-43).

A própria característica de origem oral das tradições demanda a existência de uma organização retórica no texto para controlá-las e preservá-las. A retórica marcana, no entanto, não é baseada na oratória, no sentido de não se organizar no encadeamento de argumentos lógicos ou na construção de persuasão emotiva, mas sim na retórica narrativa. Esta faz com que o conjunto composto pela história e o discurso seja interessante, aceitável e persuasivo por si, levando o receptor a entender, compartilhar e estender os níveis de significado da história. A sequencialidade das perícopes e a conexão entre elas têm um objetivo retórico

sobre a audiência: que ela se abra ao Reino de Deus e se engaje com fé e coragem no seguimento de Jesus. Na narrativa, a audiência que o lê/ouve o texto acessa memórias das vivências de outras pessoas com Jesus e através delas consegue experimentar o Reino de Deus e sua renovação de vida gradativamente, cada vez com mais compreensão do que a equipe redacional deseja com a história. Com isso, pode reconhecer a si e questionar a sua situação em comparação com a história, por fim, a partir de um efeito catártico, entender e se engajar, abraçando custos e expectativas da forma de vida esperada no Reino de Deus e, também, ser encorajada a seguir nesse engajamento em meio a sua situação vivencial de perseguição, de fome ou de guerra (FOWLER, 1991, p. 52, 63; RHOADS, DEWEY e MICHIE, 1999, p. 137-138, MALBON, 2008, p.39).

As referências ao Antigo Testamento também são uma estratégia autoral para manter o contexto cultural da história e fazer com que as pessoas de origem judaica reconheçam a história de Jesus como sequência dessa grande narrativa cultural, construída desde as histórias dos patriarcas de Israel, que conheçam e percebam o seu lugar nessa continuidade. Elas podem ser diretamente citadas, ser aludidas ou, ainda, ser inferidas na correspondência semântica, estrutural ou temática entre trechos da narrativa marcana e alguma passagem do Antigo Testamento. O capítulo 13 concentra a maior quantidade de alusões do Evangelho. Segundo Kee (2005, p. 104-105), o acesso às tradições do Antigo Testamento tem função escatológica, isso é bem sintomático pelo momento dramático de sua composição. Os principais assuntos apontados em correspondência com Antigo Testamento seriam o julgamento de Israel, a reinterpretação dos mandamentos de Deus e o cumprimento das expectativas messiânicas.

Sendo assim, as referências ao Antigo Testamento e à memória das tradições de Jesus formam a base do mundo prefigurado conhecido da audiência. Esse acesso à memória faz parte dos paradigmas que permitem as inovações na teologia da comunidade e a construção de uma nova identidade narrativa. Esta identidade caminha para o efeito catarse da narrativa, a partir da identificação e do questionamento, que podem gerar o engajamento das pessoas que recebem o texto. O estilo de escrita é simples e conciso, com uso de poucas palavras, concretas e corriqueiras, em frases curtas. Todas são características das narrativas populares e orais. Há repetições constantes, principalmente de conectivos entre cenas. Estes são partículas e conjunções, principalmente coordenativas, kai é a

mais utilizada, ao invés de expressões ou frases de conexão. Isso dá um tom de urgência, de ação dinâmica constante e um efeito de ritmo compassado38. A rapidez

com que os episódios se dão na primeira metade da história, enquanto ainda na Galileia e cercanias dá uma dinâmica rápida à progressão textual, dando uma ideia que o Reino de Deus se espalha rapidamente com os atos de poder de Jesus. Quando é de interesse dos autores, esse ritmo pode mudar, dando importância às cenas em que o tempo da narrativa é o mesmo do evento, a forma mais comum de fazer isso é a alternância de turnos, em geral para conceder autoridade a determinado ensinamento a partir da fala de Jesus. Além disso, essa sensação de passagem rápida do tempo muda radicalmente do início para o fim da história. Enquanto, no início da narrativa, o compasso é rápido, com muitas mudanças e sumários, em que uma expressão resume muito tempo, no final, a descrição é dia a dia ou hora a hora, enfatizando o sofrimento e a morte de Jesus como clímax temporal da narrativa. Com isso, faz-se uma divisão clara no livro em duas partes: o ministério de Jesus e a paixão de Jesus, com ápice nas cenas da crucificação (POSTAL, 2010, p.78-79, 95-96; RHOADS, DEWEY e MICHIE, 1999, p. 46-47; TOLBERT, 1996, p. 42-43).

A simplicidade fica restrita ao uso do palavreado e estruturação de frases. A configuração da história e a relação entre episódios envolve o uso de recursos literários muito diversos. O padrão básico de retórica da história é a justaposição de cena contra cena, para provocar comparação/contraste e insights. Isso inclui repetições, não apenas de cenas, mas de frases e palavras, conectando episódios distantes na narrativa pelo campo semântico. O autor usa repetição de tipos/formatos de história, faz perguntas retóricas, predições, antecipações e

flashbacks. Entre os recursos está a interpolação de episódios, com interrupção de

um esquema narrativo pela inserção de outro, de forma a provocar curiosidade e estabelecer pontos de interseção temáticos39. Este recurso força o leitor a interpretar

os episódios intercalados em conjunto, com um iluminando o outro, e estabelecendo conexões temáticas de forma a ampliar e aprofundar a mensagem. O uso de cenas

38 Essa característica é enfatizada ainda com a repetição da palavra eutheos (imediatamente). 39 Exemplos desse arranjo: a cena da mulher hemorrágica é colocada no meio da cena da filha de

Jairo (Mc 5,21-43), a cena do julgamento de Jesus tem no meio uma cena de Pedro, a controvérsia da blasfêmia é intercalada com a família de Jesus Mc 3,20-35. São intercaladas, ainda, as cenas da figueira e da purificação do templo Mc 11,12-23 e a da morte de João Batista e das instruções para os doze Mc 6,7-31.

similares como moldura40 para algumas sessões também é um recurso retórico que

ajusta eixos temáticos. A estrutura de quiasmo, pela repetição ou oposição de temas dentro de uma cena, também é largamente utilizada, podendo ser encontrada inclusive em cenas intercaladas. Esse padrão de quiasmo pode ser ampliado para conjuntos de cenas com três ou mais episódios na estrutura (MALBON, 2008, p.39; POSTAL, 2010, p. 82 a 88; MARGUERAT e BOUQUIM, 2009, p. 53 e 54).

Nos trechos que trataremos nos capítulos seguintes, podemos observar a conexão semântica, por exemplo, da cena do exorcismo da filha da mulher siro- fenícia com as cenas de multiplicação de pães, por causa do motivo do pão. As narrativas da cura da sogra de Simão, da ressurreição da filha de Jairo e da ressurreição de Jesus, temos uma conexão semântica com o uso do mesmo verbo para erguer/levantar. A definição da família comunitária, a ressurreição da filha de Jairo e a cura da mulher com hemorragia, são arranjos intercalados. E as cenas das mulheres na crucificação e no sepultamento de Jesus mostram o uso da moldura e do arranjo em quiasmo.

Marcos também trabalha com cenas-tipo, que são formatos padrões de episódios similares com diferenças controladas. Exemplos disso são cenas de cura/exorcismo, controvérsia com autoridades e milagres naturais. Elas apresentam o mesmo tipo de estrutura entre si, apresentando, a cada vez, uma modificação que pode ser memorizada. Por exemplo, a fórmula das cenas-tipo de cura é: a vinda a Jesus, o pedido, a superação de obstáculo para demonstração de fé, a fala ou toque de Jesus, a cura e a reação da multidão. No entanto, cada cura apresenta uma especificidade que a caracteriza. Esses tipos de cena estruturadas contribuem para a caracterização dos personagens e para a memorização dos ensinamentos (RHOADS, DEWEY e MICHIE, 1999, p. 51 a 54). Analisaremos quatro dessas cenas de cura ou exorcismo: a cura da sogra de Simão, a cura da mulher com hemorragia, a cura da filha de Jairo, o exorcismo da filha da mulher siro-fenícia.

Além das formas de repetição de cena, a retórica de Marcos dá importância à repetição de palavras ou frases chaves utilizadas no mesmo episódio, conectando episódios sequenciais ou ao longo da história. Seu objetivo com isso é levar o leitor a discernir os temas principais41. Uma forma de repetir conceitos é a progressão em

40 Exemplo: as histórias de cura dos cegos de Betsaida e Jericó são moldura do início da jornada

pra Jerusalém.

dois passos, onde o segundo dá precisão ao primeiro. Ela é amplamente utilizada nas frases, sentenças e estrutura de episódios, formando no leitor/ouvinte o desejo de se aprofundar mais42. O padrão de repetição mais comum no Evangelho de

Marcos é o de episódios progressivos em série de três43. Estes podem ser

sequenciados ou não. Sua função retórica é condicionar a audiência a esperá-lo, de forma a gerar antecipações, curiosidade e interesse e dar possibilidades a efeitos surpresa.

Dois tipos de cena precisam ser abordados devido à sua importância para a estratégia retórica: os discursos de Jesus e as parábolas. Estas se incluem como parte do seu discurso. Os discursos de Jesus estão num nível narrativo de segundo grau, em que a voz é concedida a um dos personagens, no caso Jesus, assumindo um tom professoral. De acordo com a mensagem que o narrador pretende passar, é utilizado um tipo de discurso: parábola, debate, sermão ou profecia. Essa alternância de turnos dá autoridade às palavras de Jesus, como fonte de orientação que o texto transmite.

As parábolas são narrativas metafóricas de terceira ordem, proferidas por um dos personagens. Em Marcos, somente Jesus as conta. Para os destinatários do Evangelho, as parábolas eram narrativas fictícias que utilizavam símbolos para fazer referência ao mundo rural da época em que surgiram as tradições orais e escritas a respeito de Jesus. Isso sensorializa a mensagem e a torna vívida e aceitável ao destinatário narrativo e ao leitor implícito. Seus elementos básicos são figuras do mundo natural: semente, ovelha, moeda, hospedaria etc44. Como linguagem

figurada, carregam uma mensagem, mas uma das suas funções retóricas é sugerir ao receptor que outros elementos da narrativa podem ter um duplo significado45.

Além de se utilizar de parábolas, Jesus tem discursos metafóricos em diversos momentos usando símbolos como médico (2,17), noivo (2,19), odre (2,22) (SCHOTTROFF, 2007. p. 128; POSTAL, 2010, p. 220; HORSLEY, 2001, p.18,

Uma palavra que conecta episódios, como o pão nas duas multiplicações dos pães e na cena da mulher siro-fenícia. ou ainda o alerta de Jesus sobre os escribas que devoram as casas das viúvas e cena da oferta da viúva pobre em sequência.

42 Exemplos: “Grega, de origem siro-fenícia” ou “do lado de fora, em lugares desertos”, ou ainda

“Que é isso? Um novo ensino com autoridade?”

43 Exemplos: Jesus ora três vezes no Getsêmani, Pedro nega Jesus três vezes, são três cenas de

conflito crescente entre Jesus e os discípulos num barco, são três cenas envolvendo o elemento do pão: as duas multiplicações e o encontro com a mulher siro-fenícia.

44 Para mais detalhes sobre os elementos formais da parábola, veja Wegner, 2005, p. 206-211. 45 Como a passagem em que Jesus amaldiçoa a figueira, que pode ser conectada a uma previsão

FOWLER, 1991, p.160). Jesus usa a linguagem figurada nos trechos que analisaremos, um exemplo é a metáfora do pão para simbolizar a libertação que leva ao povo na cena da mulher siro-fenícia. Ele também conta duas parábolas curtas, usando metáforas da casa e do reino dividido e do valente, aos escribas no arranjo intercalado da redefinição da família.

Um dos recursos retóricos que mais chama atenção no Evangelho de Marcos é a ironia. Em Marcos, aparecem ironia verbal e dramática46, esta é contida,

por exemplo, na trama dos discípulos que estão ao lado de Jesus, mas não o compreendem. Na retórica, a ironia pretende levar aquele receptor que a compreende a aceitar o ponto de vista do narrador e, por consequência, o de Jesus. Além da simples comparação, mostra a incongruência das situações e traz à reflexão, pois se faz um desafio interpretativo ao leitor. Para funcionar bem, o narrador e o leitor/ouvinte precisam compartilhar de conhecimento suficiente sobre a história. Assim, o receptor compreende que a história não pretende dizer aquilo que parece. O grupo de pessoas que percebe as ironias do autor forma então uma espécie de comunidade que divide essa percepção e a experiência da recepção do sentido da história em Marcos. Parece uma boa estratégia retórica de quem deseja estabelecer uma diferença entre insiders e outsiders (RHOADS, DEWEY e MICHIE, 1999, p. 60 e 61; HORSLEY, 2001, p. 19 e 20, TOLBERT, 1996, p. 98-103).

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