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Cristianismos

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2 CONTEXTUALIZANDO O EVANGELHO

2.2 CONTEXTO DA PALESTINA NO PRIMEIRO SÉCULO

2.2.2 O Contexto Religioso

2.2.2.2 Cristianismos

A mensagem de Jesus e aquela que foi propagada por seus seguidores diretos, quando foi recebida, pode ter sido aceita, ou não, e de formas diferentes, gerando diversas expressões de simbologia e atitudes. A hermenêutica desenvolvida depois da presença de Jesus e seus seguidores foi condicionada ao mundo e aos setores sociais de quem recebia a boa-nova do Reino de Deus.

Por mais fragmentário que possa parecer o quadro geral, é, todavia, óbvio que a missão e expansão da nova mensagem durante os primeiros anos e décadas depois da morte de Jesus foi um fenômeno absolutamente desprovido de unidade. Pelo contrário, o resultado desses grupos de seguidores de Jesus em rápida expansão foi muito variado. A missão paulina é a única sobre a qual dispomos de algumas informações diretas; mas a formação de outros grupos, com frequência também muito diferentes, não pode ser posta em dúvida, mesmo que possa ser reconstruída apenas por meio da análise crítica de materiais posteriores e informações em geral fragmentárias (KOESTER, 2005, p.110)

Portanto, também existia uma pluralidade de cristianismos. O espectro vai de itinerantes galileus, passando por grupos que pensaram acomodar as instituições judaicas, a congregações independentes na Ásia Menor e Grécia (MÍGUEZ, 1995, p. 23). Assim, os cristãos formaram grupos sociais ao redor de tipos distintos de liderança que tiveram uma evolução própria.

Stegemann e Stegemann (2004, p. 217-221, 481) trabalham com uma divisão geográfica dos grupos cristãos: na terra de Israel e nas cidades do Império Romano. Para eles, o movimento de Jesus propriamente dito era aquele grupo de homens e mulheres ligados a Jesus em seu tempo de vida. Depois dessa fase, surgem os movimentos que denominam como seguimento de Jesus. A protocomunidade de Jerusalém (ou comunidades de Deus na Judeia) formada por judeus e judias em Israel e por aqueles que vieram da diáspora, nos anos anteriores ao ano 70 d.C.. Concomitante a esse grupo, continua existindo um seguimento de Jesus de característica itinerante, a quem os autores creditam a origem da fonte dos ditos. A estas, acrescentam as comunidades messiânicas, surgidas após o ano 70, que são representadas nos Evangelhos de Mateus e João. As “comunidades dos povos” são aquelas oriundas dos impulsos missionários das comunidades da Judeia, têm uma composição mista de judeus e não-judeus, relacionam-se ao judaísmo da diáspora em periferias de cidades majoritariamente não judaicas.

Para Mack (2006), o termo ‘movimento de Jesus’ é utilizado para os grupos em que a memória de Jesus foi mantida em termos de uma reforma judaica. Segundo o autor, seriam cinco os grupos principais dentro desta perspectiva: os itinerantes na Galileia, que são responsáveis pela fonte dos ditos (Q), os Pilares em Jerusalém, a Família de Jesus, a Congregação de Israel, que seria responsável pelas histórias de milagres das tradições pré-marcanas, e os da Reforma da Sinagoga, que seriam os prováveis responsáveis pelas histórias de controvérsias com fariseus dentro do Evangelho de Marcos. Já o culto de Cristo é um movimento

helenizado que se desenvolveu no norte da Síria a partir do movimento de Jesus, o tipo de grupo a que Paulo pertenceria, seriam os responsáveis pelas narrativas da paixão e refeições (MACK, 2006, p. 83-96).

Mesters e Orofino (1995, p. 34-44) mostram a evolução do cristianismo em etapas. Na primeira etapa, até o ano 44 d. C., os primeiros cristãos eram vistos como um movimento de renovação interno ao judaísmo. Eles se organizavam nas comunidades ao redor das sinagogas e à margem do judaísmo oficial. Já nessa etapa aparecem divergências entre dois extremos que refletiam conflitos do judaísmo: os que buscavam inculturar a mensagem no mundo helenístico, ligados aos judeus da diáspora, e os que defendiam a fidelidade à Lei de Moisés e à “Tradição dos Antigos”, ligados aos escribas e fariseus de Jerusalém. Entre esses dois grupos, havia outras tendências: as comunidades da Galileia, os ligados a Tiago e aos irmãos de Jesus, os ligados aos samaritanos. A segunda etapa inicia com a mudança na forma política de governar a Palestina, tornando-a uma província romana, e vai até o ano 70 d.C.. Essas mudanças aumentaram o sentimento anti- romano e a rejeição aos estrangeiros, isso dificultou a convivência das comunidades cristãs entre os judeus, impulsionando-os para fora da Palestina. Em mais ou menos 30 anos, o cristianismo havia penetrado em todas as grandes cidades do Império Romano. Havia a tensão entre os grupos de cristãos oriundos do judaísmo e os novos de outras etnias e culturas, que levam as comunidades cristãs a atentar para sua identidade. Isso impulsiona a coleção das cartas de Paulo e a vontade de recolher e transmitir os ensinamentos e atos de Jesus. Por volta do ano 66, uma nova mudança na política imperial, com a centralização proposta por Nero, gera guerras e revoltas, como a revolução judaica de 66 d.C., e a morte dos apóstolos e das testemunhas da primeira geração, levando a uma nova fase da evolução cristã. Com a obrigatoriedade do culto ao imperador, as instituições do Império são mobilizadas contra os cristãos e as comunidades passam a se preocupar com sua manutenção em busca da sobrevivência.

Os conflitos dos grupos cristãos com o judaísmo eram, em geral, competições naturais iniciadas pelas novidades dos movimentos de Jesus, suas posições contrárias a alguns símbolos judaicos e padrões sociais. Os conflitos mais importantes para a separação dos movimentos de Jesus das instituições judaicas se deram em torno da sinagoga helenística. Segundo Mack (2006, p. 127-128), esses conflitos são de dois tipos: 1) a experiência do povo de Jesus, que tentou

permanecer nas instituições, mas falhou em convencer os judeus e entrou em conflito com os fariseus; e 2) a do Culto de Cristo, que abandonou as sinagogas, tomando para si conceitos helenizados de Israel. Os conflitos, internos ao cristianismo, entre essas duas correntes se deram na segunda geração com a visita de Paulo a Jerusalém.

Diante da guerra, a forte comunidade cristã que se formara em Jerusalém é dispersa para a Galileia e sul da Síria pelo confronto armado. Entre eles havia escribas, inclusive de origem farisaica e não faltavam helenistas. Quando saíram de Jerusalém, colocou-se em contato um cristianismo urbanizado e um cristianismo rural galileu, esse encontro certamente produziu tensões que permitiram a construção literária (MÍGUEZ, 1995, p. 33). Essa situação explica a forte tensão mostrada no Evangelho de Marcos com fariseus e escribas a respeito da interpretação das escrituras e dos costumes judeus.

Os líderes dos grupos de cristãos podiam apelar para uma larga gama de fatores de legitimação: comissionamento, representação, habilidades hermenêuticas, sabedoria, demonstrações de carisma e experiência direta com o Espírito de Deus. Havia então problemas de conflito quando líderes de outros grupos se apresentavam ou mesmo rusgas internas aos grupos na disputa pela liderança26.

Como não havia uma cartilha que guiasse os movimentos de Jesus em sua mista constituição e nem regras sociais definidas, as dinâmicas internas eram vivas, pois não havia homogeneidade na composição social das primeiras comunidades. Os conflitos aumentam conforme elas cresciam, pois passavam a conter pessoas de diversos estamentos e etnias, mas acontecia principalmente em torno da definição dos papéis de liderança em jogos de poder. Dentro dessa dinâmica, é preciso destacar que conflitos nas relações de gênero já se fazem presentes a também se aprofundam de acordo com as definições da organização das comunidades. Nesse sentido de dinâmica de poder, o resgate das palavras, da crítica e do serviço de Jesus se tornam importantes para a comunidade e para os que resistem à dominação (RICHTER REIMER, 2012, p. 24).

Em especial, em meio às tradições cristãs que circulavam durante as décadas de 60 a 90 d.C., fortes tendências patriarcais começam a se impor no ocidente do Império, isso colabora para despertar as comunidades cristãs

26 Veja as tentativas de Paulo em elencar os tipos de líderes (1Cor 12,28) e os tipos de argumento

mediterrâneas para a necessidade de reunir e organizar as diversas tradições sobre Jesus. Isto pode ter acontecido porque perceberam difundirem-se tradições divergentes e contraditórias. Um exemplo disso eram as recomendações das tradições paulinas de segunda geração sobre a participação de mulheres, escravos e crianças, indicando o silêncio e a subordinação destes à autoridade patriarcal ou ainda uma cristologia abstrata que se distanciava das tradições sobre a práxis de Jesus que eles conservavam (RICHTER REIMER, 2012, p. 24-28).

Segundo Koester (2005, p. 181-182), o debate entre as tradições mais aretológicas das histórias de milagres e da proclamação do Jesus crucificado não se resolve no cristianismo incipiente pós-paulino, mas foi assumido pelo Evangelho de Marcos. Este, certamente, incluiu a problemática de gênero na sua escrita.

Apesar dos conflitos internos e externos, os diferentes grupos cristãos tinham um grau de identidade e reconhecimento, mas formas institucionais e construções simbólicas distintas. É possível dizer que “todos podem ter se formado em ajuntamentos para refeições [...] tinham estímulo em uma noção de forma social que alguns grupos chamaram de Reino de Deus e todos reconheciam Jesus como seu fundador” (MACK, 2006, p. 124). Para Theissen (2009), os dois valores fundamentais do ethos cristão primitivo eram o amor ao próximo e a renúncia por

status, como heranças do judaísmo, mas que eram conceitos novos dentro do

mundo não-judaico onde o cristianismo se expandiu. As refeições e o batismo consistiam de novas formas rituais conectadas à vida e morte de Jesus. Esse novo formato ritual é fixado em comum pela formação dos Evangelhos, especialmente o de Marcos.

Com as disputas nas sinagogas, a destruição do Templo de Jerusalém e ainda sob pressões do Império, os cristãos não contavam com instituições ou ambientes oficiais que os abrigassem e onde pudessem se reunir e vivenciar sua fé. A casa desponta como o lugar do desenvolvimento do movimento cristão. A casa é lugar de ficar, mas também de atuar em prol do Reino, no caso, através da cura, da comunhão e do ensino. Pela tradição, é o local onde Jesus instrui os discípulos, pois nas comunidades a casa era lugar das reuniões para catequese e culto (GNILKA, 1986, p. 97).

No Evangelho de Marcos, o espaço doméstico é caracterizado como uma base para o ministério, pois Jesus aparece várias vezes instruindo os adeptos do movimento em casas, e ela também é o lugar das refeições tão caras ao evangelho.

Isso altera o valor da casa; o ambiente principal de atuação das mulheres, agora, é mais que o lugar da família, se torna um ambiente central em termos de espaço social e religioso.

A casa é paradigma importante para compreender o movimento de Jesus e o desenvolvimento dos primeiros grupos cristãos. Ela é lugar de origem e desenvolvimento da missão de Jesus e a unidade a partir da qual a comunidade é construída. Casa é o lugar importante para o ensino e atuação de Jesus. Muitas curas acontecem no âmbito da casa. Jesus é apresentado como hóspede em diversas casas. [...] a casa é transformada num novo espaço social e religioso, pois o trabalho, e não as relações de poder, é paradigma para o Reino de Deus. O movimento de Jesus relativiza a casa como elemento fundamental e estabilizador da ordem social e ao mesmo tempo utiliza a casa como instrumento da missão e expansão do próprio movimento (STRÖHER, 1998, p. 55).

Seu significado está além de um lugar de moradia, visto que é, de fato, o centro produtivo da antiguidade, onde os membros da família são a mão de obra. Quando localizada no campo, confunde-se com a roça, quando na cidade, a casa e a oficina se entrelaçam. Ali os grupos familiares controlam o processo produtivo e dominam sobre o espaço. É na casa que as pessoas se relacionam, onde são mais evidentes as determinações da divisão do trabalho e do espaço por gênero. Ainda mais do que isso, a casa é, no cristianismo originário, o símbolo do novo sistema de relações de convivência em oposição aos espaços oficiais da religião judaica. Isso fica bem evidente nos evangelhos, em especial no Evangelho de Marcos (SOARES, CORREIA JÚNIOR E OLIVA, 2012, p. 80,81). Algumas das cenas analisadas nos capítulos quatro e cinco se passam em casas: a cura da sogra de Simão, a definição da comunidade familiar, a ressurreição da filha de Jairo, o exorcismo da filha da mulher siro-fenícia, a unção de Jesus em Betânia.

Outro símbolo importante do cristianismo é associado à questão da renúncia ao status e do serviço ou diaconia. Optamos por abordar mais detalhadamente na seção 4.1.2 ao tratar da cura da sogra de Simão, mas ela também é uma temática importante na cena das mulheres na crucificação que analisaremos no item 5.3.

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