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3 CIDADANIA NA ERA DA UBIQUIDADE

3.1 Cidadania no Brasil

Segundo Murilo Carvalho (2015), o ideal desenvolvido no ocidente, de uma cidadania plena, que combine liberdade, participação e igualdade para todos talvez seja inatingível, mas tem servido de parâmetro para o julgamento da qualidade da cidadania em cada país e em cada momento histórico.

Em relação ao Brasil, Gladston Mamede (1997) afirma que desenha-se no país o “mito da cidadania”, pois diversas normas e textos oficiais ressaltam a sua importância para o Estado Democrático de Direto, entretanto, por mais que, em tese, a cidadania seja valorizada e que os brasileiros queiram se acreditar partícipes, na prática conservam-se problemas crônicos, como abusos de autoridades, inoperabilidade, corrupção e impunidade.

O autor aponta ainda três grandes obstáculos para o exercício da cidadania no Brasil:

1o) o sistema jurídico brasileiro não possui uma ampla definição de

possibilidades para uma efetiva participação popular consciente; 2o) a postura

excessivamente conservadora de parcelas do Judiciário, apegando-se a interpretações que limitam absurdamente o alcance dos dispositivos legais que permitiriam uma efetiva democratização do poder; por fim, 3o) uma profunda

ignorância do Direito: a esmagadora maioria dos brasileiros não possui conhecimentos mínimos sobre quais são seus direitos e como defendê-los (MAMEDE, 1997, p. 222).

Além disso, não foram consolidadas no país, formas efetivas para o exercício da cidadania que permitam participação real dos indivíduos na determinação dos destinos da sociedade, ainda que a existência de uma sociedade civil forte, consciente e participativa seja um pressuposto para a democracia. “Assim, a proposta de um ‘Estado

Democrático de Direito’ fica estéril, carente de instrumentos que permitam limitar o poder e as ações dos administradores.” (MAMEDE, 1997, p.220).

Sobre o caso brasileiro, Gorczevski e Martin (2011) afirmam que a simples ideia de cidadania nacional parece distante, pois o país ainda precisa superar obstáculos como

a exclusão social e cultural de uma grande parcela da população, o conservadorismo vigorante no imaginário popular agregado a políticas públicas equivocadas, paternalistas e eleitoreiras, a taxação injusta de impostos e os privilégios de grupos (GORCZEVSKI; MARTIN, 2011, p. 111 – 112). Para Carvalho (2015), as razões das dificuldades encontradas para a consolidação da cidadania no Brasil podem estar ligadas à natureza da história nacional. Isso porque a cronologia e a lógica da sequência desenhada por Marshal, em que os direitos civis deram origem aos políticos, que por sua vez permitiram o surgimento dos direitos sociais, foram invertidas no caso do país.

Seria tolo achar que só há um caminho para a cidadania. A história mostra que não é assim. Dentro da própria Europa houve percursos distintos, como demonstram os casos da Inglaterra, da França e da Alemanha. Mas é razoável supor que caminhos diferentes afetem o produto final, afetem o tipo de cidadão, e, portanto, de democracia, que se gera. Isto é particularmente verdadeiro quando a inversão da sequência é completa, quando os direitos sociais passam a ser a base da pirâmide (CARVALHO, 2015, p. 220-221). Na Inglaterra, havia, segundo o autor, uma lógica que reforçava a convicção democrática. Primeiro vieram as liberdades civis. Com base nesses direitos, os ingleses passaram a reivindicar o direito de votar e participar do governo de seu país. Essa participação permitiu a eleição de operários e a criação do Partido Trabalhista, que foram os responsáveis pela introdução dos direitos sociais, postos em prática pelo Executivo.

A base de tudo eram as liberdades civis. A participação política era destinada em boa parte a garantir essas liberdades. Os direitos sociais eram os menos óbvios e até certo ponto considerados incompatíveis com os direitos civis e políticos. A proteção do estado a certas pessoas parecia uma quebra de igualdade de todos perante a lei, uma interferência na liberdade de trabalho e livre competição. Além disso, o auxílio do Estado era visto como restrição à liberdade individual do beneficiado, e como tal lhe retirava a condição de independência requerida de quem devia ter direito ao voto (CARVALHO, 2015, p.220).

Em outros países, os direitos sociais também foram os últimos a serem adquiridos.

Nos Estados Unidos, até mesmo sindicatos operários se opuseram à legislação social, considerada humilhante para o cidadão. Só mais tarde esses direitos passaram a ser considerados compatíveis com os outros direitos, e o cidadão pleno passou a ser aquele que gozava de todos os direitos, civis, políticos e sociais. (CARVALHO, 2015, p.220)

No Brasil, primeiro vieram os direitos sociais, implantados durante a Era Vargas, um período de supressão dos direitos políticos e de redução dos direitos civis. Depois vieram os direitos políticos, de maneira também bizarra, segundo Carvalho (2015), pois a maior expansão do direito do voto deu-se no período da ditadura militar, em que os órgãos de representação política foram transformados em peça decorativa do regime. Já os direitos civis, a base da pirâmide proposta por Marshall, progrediram lentamente no país e ainda continuam inacessíveis para a maioria da população.

Para Carvalho (2015), essa inversão na lógica dos direitos trouxe diversas consequências para o desenvolvimento da cidadania no Brasil. Uma delas seria uma excessiva valorização do poder Executivo, decorrente da implementação dos direitos sociais em períodos ditatoriais, quando o legislativo estava fechado ou era apenas decorativo. Essa valorização excessiva do Estado forma para o autor uma “estadania”, um contraste com a cidadania.

O Estado é sempre visto como todo poderoso, na pior hipótese como repressor e cobrador de impostos; na melhor, como um distribuidor paternalista de empregos e favores. A ação política nessa visão é sobretudo orientada para a negociação direta com o governo, sem passar pela mediação da representação (CARVALHO, 2015, p. 221).

Com isso, o papel dos legisladores reduz-se ao de intermediários de favores pessoais perante o Executivo. O eleitor vota nos candidatos que possam lhe oferecer favores e os parlamentares, por sua vez, apoiam o governo em troca de cargos e verbas. “Cria-se uma esquizofrenia política: os eleitores desprezam os políticos, mas continuam votando neles na esperança de benefícios pessoais.” (CARVALHO, 2015, p. 224).

A busca por interesses marcou também a implementação dos direitos sociais durante o Estado Novo, quando os benefícios sociais eram distribuídos por cooptação sucessiva de categorias de trabalhadores para dentro de sindicatos. “Os benefícios sociais não eram tratados como direitos de todos, mas como fruto da negociação de cada categoria com o governo. A sociedade passou a se organizar para garantir os direitos e os privilégios distribuídos pelo Estado.” (CARVALHO, 2015, p. 224).

Para que as distorções causadas pela inversão na ordem dos direitos sejam amenizadas, será necessário tempo para o desenvolvimento e consolidação da democracia e correção dos mecanismos políticos (CARVALHO, 2015).

É possível que apesar da desvantagem da inversão da ordem dos direitos, o exercício continuado da democracia política, embora imperfeita, permita aos poucos ampliar o gozo dos direitos civis, o que por sua vez, poderia reforçar os direitos políticos, criando um círculo virtuoso no qual a cultura política também se modificaria (CARVALHO, 2015, p.224).

Outro obstáculo que precisa ser superado para a consolidação da cidadania no Brasil é a educação da população. Segundo Carvalho (2015), esse foi um dos fatores que auxiliou para que a cidadania se desenvolvesse com maior rapidez em alguns países, como a Inglaterra.

Foi ela que permitiu às pessoas tomarem conhecimento de seus direitos e se organizarem para lutar por eles. A ausência de uma população educada tem sido sempre um dos principais obstáculos à construção da cidadania civil e política (CARVALHO, 2015, p. 17).

Para Mamede (1997), milhões de brasileiros ainda vivem em uma “pobreza política”, pois não tiveram acesso a uma educação que permitisse o desenvolvimento de um senso político e crítico, além do conhecimento de seus direitos.

Chamar-lhes de cidadão, nesse contexto, é pura retórica dentro de um mito de democracia participativa que não possui condições mínimas de ser implementada por não estar alicerçada em uma efetiva (possibilidade de) participação popular (MAMEDE, 1997, p. 227).

Esse quadro faz com que, para o autor, a democracia brasileira não seja uma realidade, mas sim uma promessa, pois, “se não temos cidadania (e, por consequência, cidadãos), se não temos participação consciente (um amplo contingente de pessoas conscientes e dispostas a participar (…), não temos democracia.” (MAMEDE, 1997, p. 227).

A fragilidade da cidadania brasileira, seja pela forma como se desenvolveu, ou pela lacuna educacional que faz com que o cidadão desconheça seus direitos, deve ser considerada ao se analisar a possibilidade de oferecer novos canais para o exercício da cidadania. Essa possibilidade se torna cada dia mais frequente com a emergência de novas tecnologias e formas de interação entre governo e cidadãos, seja para o acesso a direitos, o exercício de deveres ou da participação política, dimensões da cidadania que, transpostas para o universo digital, passam a integrar também a cidadania eletrônica.