• Nenhum resultado encontrado

Capítulo Dois – Escola e Urbanidade 1 Nota introdutória

2. Formação para a Urbanidade – questões de ética e território

2.1 Cidade – património e cultura

A cidade é um território de história(s), encerrando em si própria a disponibilidade das suas origens rebuscadas no locus que lhe permitiu a génese pela mão do homem. Encerra em si própria a multiplicidade do incontável que traz, até hoje, o património e a memória – a complexa acção de crianças, mulheres e homens que reelaboraram ao longo do tempo, a possibilidade da vida em comunidade.

Do espaço coreográfico que a urbe citadina nos reserva, retemos trechos da natureza primitiva, objectos que emergem do chão e clamam às alturas e outros que se alongam no território do limite. As ruas ocupam e são os espaços da deslocação da vida limitada pelos ponteiros do tempo, os gestos da invenção desenham o vazio, realidades e relações que fundem espaço físico e acção social. Por tudo isto, afirma Nunes (2003) que “(…) a cidade representa o esforço mais notável de actividade humana, para uma transformação completa do ambiente natural, a passagem mais radical do estado de natureza ao estado de cultura”(p.4).

A cidade veio redefinir as relações entre o território e o homem, entre ela e si mesmo, e entre si e os outros, agilizando uma dinâmica social e de transformação territorial que acentuou a complexidade de relações em sentidos de óbvia positividade, mas também a sentimentos onde, conforme Nunes (2003), “(…) o desejo de inserção e de progresso social se revelam, muitas vezes, ilusórios” (p.5). Compete aos seus habitantes, arquitectos inconscientes da cidade, participar na sua (re)elaboração e transformação, exercendo a cidadania num grande atelier, que deve estar disponível à intervenção cívica dos seus cidadãos.

A evolução da cidade, de acordo com os pressupostos atrás enunciados, retira-lhe a possibilidade argumentativa de reivindicar para si uma traça original. A cidade constitui, no seu todo, a essência daquilo que lhe confere e que decorre subreptícia, mas profunda e originalmente, do seu código genético geo-morfológico, código que, na sua relação com a acção do homem, lhe determinam uma anatomia e fisiologia próprias.

A complexidade que caracteriza essa acção do homem e do tempo geradores de cultura, concorre também para a ideia de que jamais poderá existir a cidade ideal. Conforme Ribeiro (2004), poderá apenas dizer-se que a cidade ideal, corresponderá talvez, a uma cidade feita de uma colagem de cidades que, com a proliferação da informação e a emergência das intervenções, poderá tornar-se possível no século XXI.

Emergência a que não serão alheias as tecnologias de ponta na construção dos objectos que compõem as cidades, sublinhando as relações entre o utilizador urbano, e a existência de equipamentos cada vez mais complexos sob o ponto de vista da concepção, mas também mais intuitivos. Gerou-se uma cultura hi-tec8 que reformula as vivências dos cidadãos e redefine a relação

do homem com a natureza da qual continua dependente.

É uma relação cultural e antropológica impossível de desmaterializar face às necessidades e às características que o ligam a um universo cósmico que persiste em explicar, mas que não consegue imitar e muito menos repetir.

Como tal, a natureza é presença recorrente e desejável nas cidades contemporâneas, numa tentativa nostálgica de recuperar o equilíbrio ecológico, o conforto e a cronologia sazonal. Ribeiro (2004) refere, a título de exemplo, a árvore como elemento que regista o tempo, testemunhando a passagem das estações ou sossegando a pressa das cidades que as adoptam como símbolos – os ciprestes em Roma, os castanheiros em Bruxelas, os álamos em Viena ou, ainda as acácias no Mindelo para chamar a chuva. Rejeita-se a ideia de magia, antes é invocada a racionalidade e a ciência como contributos para a reelaboração da cidade humanizada.

A incerteza paradigmática e a volatilização de conceitos que interceptam a sociedade contemporânea, influenciam a forma e a função dos espaços que usamos e fruímos. A cidade constitui um desses espaços e, tal como refere ainda Ribeiro (2004), corremos o risco do insucesso, porque, “O futuro está incerto, sem projecto cultural (…) dada a velocidade com que as imagens do mundo ultrapassam todo e qualquer esboço de projecto social” (p.45). No entanto, é imperiosa a persistência de um esboço essencial de cidade diversa culturalmente, e como tal, mais rica face a um mundo globalizado, que parece querer abolir fronteiras sócio-culturais e instaurar uma estranha forma de multiculturalidade.

Nessa incerteza e nesse fluir, a nostalgia do passado não deve constituir óbice à renovação da cidade e muito menos à possibilidade da sua reinvenção. Castelo (2001) citando Bernard Lassus, referido por Weilacher (1996), sublinha que “É forçoso ser inventivo, porque a paisagem do futuro é um mistério e a paisagem do passado não pode ser reconstruída” (p.52). A esta esperançosa visão, Serra (2003) acrescenta que a “(…) cidade imaginária baseia-se no conhecimento. Desoculta o passado que parecia escondido, sepultado, e considera-o digno de compreensão e vida, torna menos nebuloso o futuro, ao qual procura transmitir claridade e, afinal, sopro, inspiração, por um lado, continuidade e segurança, por outro” (p. 87), trata-se de um processo dinâmico no qual “as ruínas podem ser testemunho de um genérico fluir do tempo, nunca a sua paragem, nem travão na construção da cidade, sempre reconstruída sobre sedimentos do passado” (Costa, 2003, p.7).

Ribeiro (2004) considera que a cidade como grande acontecimento físico, social e cenográfico, pode conciliar o urbano com a natureza, numa parafernália de imagens, em que a participação interdisciplinar na gestão e renovação do espaço urbano, entre cientistas, técnicos, artistas e professores, pode e deve regular processos saudáveis de concepção da cidade, tornando-a espaço global de reflexão e de acção cívica.

É esta visão que nos faz retomar as perspectivas educacionais, hedológicas e curriculares às quais fazemos referência na fundamentação deste estudo.

Trata-se da cidade com história, feita de episódios físicos, testemunhos do tempo, que congrega as pertenças do passado de uma sociedade que foi demarcando no território as linhas que definiram a sua matriz ideológica, política e social. Uma definição conjunta assumida como

memorial reportado a um património pedagógico e educativo, potenciador da compreensão do espaço urbano, indutor de manifestações, que marcarão no tempo a evolução do homem e a regeneração da cidade, não só pelo colapso dos espólios que, cansados no tempo, se esboroam, mas também e sobretudo pela necessidade reincidente que o ser humano tem, de fruir o novo, reinventar, registar o seu tempo sobre a epiderme da sua urbe.

A reflexão à volta desta problemática conduz-nos a uma abordagem obrigatória sobre a relação entre o património físico (corpóreo), património imaterial (simbólico) e património cultural (natural e histórico), para verificarmos que o isolamento dessas três categorias de análise do património da cidade é inviável, pela mútua implicação necessária à sua cabal compreensão. O suporte, o espaço físico, a materialização do objecto é condição e testemunho da sua existência. A sua geografia simbólica, as marcas e as razões que lhe conformaram o corpo, determinam-lhe o sentido, dão-lhe razão de existir, legitimam-lhe a dimensão, o espaço que ocupam e o seu lugar na confluência social que o produziu e o acolheu. A sua presença física, a sua justificação simbólica, a sua legitimação, conferem-lhe um estatuto que lhe garantirá a presença e a sua relação com o território e a sociedade enquanto instâncias geradoras de cultura.

A torre que sinaliza a religião, o rio que divide as águas do território, a árvore que arrefece a sombra do Verão, a esquina que promove o encontro impossível, …, a escultura que nos move a cabeça dos olhos e nos comunica erudição…, tantos objectos que marcam a arqueologia visível de uma cidade, e que ao longo do tempo, se digitalizam na nossa memória…, a multidão que desagua na rua, o homem estátua que, gélido de branco, empresta a sua forma à cidade de passagem, também estes, marcam a fluidez patrimonial da, cada vez mais efémera, cultura contemporânea.

Quando reflectimos sobre o património da cidade, é quase instintiva a tentação de o situarmos no passado. A sua evolução conceptual decorrente da vertigem do tempo e das acções que a sociedade vem promovendo, catapulta-nos para uma perspectiva diferenciada do património, facto que afinal se vem verificando nas últimas décadas, já que hoje o património está para além das manifestações seculares do passado, evadiu-se das intocáveis erudição e arte, para estar presente noutros domínios da vivência secular, nas manifestações do contemporâneo em uso, ou ainda na própria paisagem natural.

Pela transversalidade das acções, pelas influências que determina e pela efemeridade que encerra, o património assume hoje uma dimensão que se aproxima da não dimensão, ou seja, promove a imagem e pré-figura o acontecimento, como algo que sinaliza e justifica o seu próprio conceito na sociedade contemporânea – uma relação complexa entre tempo real e tempo virtual no entendimento da vida e da historiografia do homem, que como Mourão (2000) refere, é difícil de definir por se tratar de um conceito evolutivo e dinâmico, como o é a própria cultura. Mas como defende ainda o autor, “(…) cada geração receptora desta herança, deste ‘arquivo’ de testemunhos humanos, cada sociedade de cada época, consciente ou inconscientemente, viu-se na responsabilidade de proceder a um julgamento e fazer uma selecção dos bens recebidos, (…) Ou seja, ao longo dos tempos cada sociedade ‘classificou’ de ‘Património Cultural’ diferentes objectos e diferentes realizações humanas” (p.15). Um património, que promove outras formas de olhar e de

reflectir, respeitar, transformar e dignificar para a construção de uma herança cultural assente na cidadania e na coesão social, na linha que o autor defende quando refere que:

“Os comportamentos perante os “monumentos históricos” evoluíram, dependendo da evolução da noção de ‘Património’ associada aos sentimentos que em cada mentalidade e em cada época aqueles despertam. É esta a história de salvaguarda e preservação do nosso património. Estas atitudes, ou a sua ausência, reflectiram no tempo os actos de interpretação perante cada objecto, a capacidade de cada sociedade de lhe conferir sentido ou significado, de lhe conferir uma dimensão cultural, e a necessidade sentida de o preservar como memória no futuro, como valor sólido e estável e como garantia da sua identidade cultural” (p.16). A evolução da cidade tornou-se assim uma emergência que, pela mão dos arquitectos e urbanistas modernistas passou a ser vista como uma totalidade, fase em que curiosamente viu também legitimado o conceito de Património Urbano Histórico. Assistiu-se à conversão da cidade física em objecto do saber, perspectivou-se o urbanismo como uma ciência que conciliou espaço físico, história e sociedade, revertendo isso na qualificação das urbes e na identidade da cidade antiga e da cidade moderna (Choay, 1999).

Neste sentido, e na conciliação com o futuro, é conforme Ribeiro (2004), imprescindível que “(…) a cidade produza fantasias, mais precisamente, constitua ela própria um imaginário, por via do qual, tal como o poeta, nos inspiramos” (p.15). Conforme o autor, para que tal aconteça, é absolutamente necessária a disponibilização de meios e instrumentos que viabilizem o processo criativo em lugares múltiplos, gerando a cultura do acontecimento como coisa natural, retomando o conceito de polis e a acção educativa transpostos para a contemporaneidade em locais que, contribuindo para a vivência qualificante dos cidadãos, podem marcar a cultura urbana.

É na instituição desta nova cultura, que nos parece fundamental relevar o papel da escola e da educação, bem como da investigação que aprofunda e desvenda estas relações.

Documentos relacionados