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3 O PENSAR ALTO EM GRUPO

3.3 Ciranda do Pensar Alto e algumas diretrizes práticas

Ciranda do Pensar Alto é o 'nome fantasia' das sessões do Pensar Alto para crianças no âmbito deste trabalho. O PAG é uma prática de letramento dialógica e colaborativa: a partir da leitura de um texto literário ou poema, busca passar a palavra aos leitores e ouvir suas reflexões, comentários, críticas e questionamentos. Pesquisado no âmbito do Grupo de Estudos da Indeterminação e da Metáfora (GEIM) da PUC de São Paulo, seu formato é assim explicado pela coordenadora do GEIM, Mara Sophia Zanotto (1998, p. 21):

O texto é distribuído aos participantes do grupo que fazem, num primeiro momento, uma leitura individual silenciosa e anotam espontaneamente as ideias que vierem à mente. Logo em seguida se inicia a discussão, na qual cada um pode dizer livremente o que quiser a respeito do texto e do processo de leitura. Não é dada à discussão nenhuma direção prévia, pelo contrário, as ideias devem fluir livremente e não constituem objeto de avaliação. O professor- pesquisador abre mão de seu papel de autoridade interpretativa e apenas coordena a discussão, podendo participar da construção de sentido o mais simetricamente possível.

Em todos os casos, numa sessão do PAG, os participantes sentam-se em círculo, seja em volta de uma mesa, seja acomodados no chão, mas de maneira a que todos possam ver uns aos outros. Como a ideia é haver uma relação de igualdade entre todos os participantes (relação horizontal), o mediador ou mediadora deve se posicionar na mesma altura dos participantes, especialmente em se tratando de crianças, uma vez que a ideia a ser difundida é que todos são colaboradores, e todas as opiniões têm o mesmo valor.

Aliás, a ideia de que o PAG é uma atividade democrática, onde todas as opiniões devem ser respeitadas deve ser "pensada alto" logo na primeira sessão, e todas as dúvidas que as crianças tiverem devem ser respondidas. Com exceção desse momento de tirar dúvidas sobre o funcionamento da atividade, o mediador deve evitar responder perguntas, uma vez que a ideia é construir o sentido em grupo. Se o pesquisador é também o professor da turma, as apresentações são desnecessárias, e muito do que está escrito neste tópico é dispensável, mas não era o meu caso. Assim, antes de ler o poema, eu ligava o gravador, colocava-o no centro da mesa, e cada participante dizia o próprio nome, que eu procurava memorizar. É interessante também que cada um, se quiser, diga alguma coisa sobre si mesmo, para quebrar o gelo: a cor favorita, o livro favorito, o animal favorito.

Após as apresentações, os poemas eram distribuídos. Fazíamos, então, uma leitura silenciosa, sempre com tempo suficiente para ler o poema duas a três vezes, com atenção. Crianças em geral gostam de ler em voz alta, e houve vezes em que elas prosseguiram à leitura em voz alta logo após a leitura silenciosa, sem interrupção. No entanto, alguns poemas têm palavras incomuns, cuja pronúncia lhes é desconhecida, e para lhes dar a chance de aprender a pronúncia sem eu precisar corrigi-las, passei a levar gravações dos poemas feitas pelo ator Paulo Autran, que gravou todos os poemas de Ou

isto ou aquilo. Assim, depois da leitura em silêncio, ouvíamos o poema na voz de Paulo

Autran, antes mesmo de as próprias crianças o lerem em voz alta. A experiência de ouvir os poemas na voz do ator, que no âmbito deste trabalho chamarei de "leitura auditiva" foi muito prazerosa para as crianças. Elas pediam bis, e acabávamos ouvindo o poema recitado por ele mais duas ou três vezes. Percebi que a audição ajudava na compreensão e na sedimentação da pronúncia das palavras incomuns. Assim, quando não houver disponível nenhuma gravação do poema a ser lido, o mediador ou mediadora deve se empenhar em fazer uma leitura sensível (que não precisa ser dramática).

Após ouvirem a gravação, as próprias crianças em geral pediam para ler em voz alta. Com alguns grupos ficou combinado que em cada sessão um ou dois leriam o poema todo. Em outros grupos, todas as crianças liam uma ou duas estrofes toda sessão. No caso de poemas mais curtos, cada criança lia o poema inteiro, em voz alta, se quisesse. Em algumas vivências, logo após as leituras em voz alta, as crianças começavam a conversar sobre o poema fazendo uma "descrição da situação", como se o "decodificassem", ou se apropriassem dele ao narrá-lo com as próprias palavras. Ao descreverem a situação do poema, as crianças buscavam confirmar consigo mesmas, e com o grupo, o entendimento que tinham tido da situação em nível narrativo, antes de problematizarem os elementos que não haviam entendido muito bem ou que as haviam intrigado.

Outras vezes, a conversa começava exatamente por aquilo que havia ficado no ar, a chamada "incongruência" que intriga o leitor, e elas tratavam essa incongruência como um 'mistério', que exigisse delas, como detetives, a decifração de um enigma. Ao tentar explicar as incongruências, um dos participantes diz algo que pode (ou não) ser validado por um segundo participante, que talvez concorde com ele (ou discorde);

um terceiro participante concorda ou não com o que foi dito, e talvez acrescente algo novo, ainda não mencionado.

No Pensar Alto em Grupo, os mediadores procuram revozear ou devolver alguma pergunta ao grupo, ou a quem a fez, para provocar reflexão; e cuidam para não dar respostas ou pistas de sua interpretação, justamente para não toldar a conversa com uma opinião que poderia ser encarada como a da "autoridade interpretativa". Adultos em geral já têm uma interpretação do poema antes de lê-lo com as crianças, mas não é raro que se surpreendam com as interpretações infantis e passem a ler o poema com outros olhos.

Por se tratar de uma relação dialógica, Paulo Freire admitia em seus círculos de discussões e leitura uma participação mais incisiva do mediador, chamado por ele de ‘educador-educando’, do que a que estou propondo aqui. Para Freire, "se a programação educativa é dialógica, isto significa o direito que também têm os educadores-educandos

de participar dela, incluindo temas não sugeridos" (FREIRE, 2007, p. 134, grifo nosso).

No entanto, no caso do Pensar Alto em Grupo, e especialmente em se tratando de um grupo de crianças dentro de uma instituição escolar, as falas dos mediadores, adultos que são, podem assumir um peso maior do que as falas dos outros participantes. Um peso quase institucional. Se o intuito é favorecer o protagonismo infantil numa situação em que as opiniões de todos tenham a mesma validade, acredito que os mediadores devem se abster de opinar sobre o texto lido, e assumir o papel de mediadores de fato: lançar uma ou outra pergunta, se necessário, para motivar a discussão, coordenar a conversa para que todos possam se manifestar, e revozear o que foi dito pelos participantes mais tímidos.

À medida que cada um vai se posicionando e dando as razões para seus argumentos, o sentido vai sendo construído. Os participantes buscam dentro de si, e também no texto, pistas para dar sentido ao que à primeira vista parecia não tê-lo. Esse vaivém de ideias e opiniões é como uma Ciranda, uma prática "dialógica e colaborativa". Há um diálogo dentro do grupo, e também entre o grupo e o texto.

Isso não significa que o sentido final será um só. Como os textos literários permitem várias leituras, e uma vez que cada leitor se insere no que foi lido e cria sua própria interpretação, não há uma "resposta correta", ou "unívoca". Assim, é possível que os participantes não cheguem a uma mesma leitura final, e várias leituras continuem sendo aceitas pelo grupo.

Em suma, cada um pode manter seu próprio entendimento do que foi lido, mas todos saem da leitura colaborativa com mais autoconfiança, pois sua participação ativa faz com que se percebam como agentes de seu próprio aprendizado. A autoconfiança, aliada à curiosidade mais aguçada, também provoca nos participantes um amor mais intenso pelas histórias escritas, pela leitura.

No processo, trabalha-se também com a ampliação do vocabulário, uma vez que poemas podem conter (e muitas vezes contêm!) palavras que não fazem parte do cotidiano infantil. Quanto a isso é interessante que o mediador evite "dar" o significado das palavras desconhecidas, e tente adotar diferentes estratégias. Aliás, é possível que haja alguém no grupo que já conheça a palavra "nova", e a mediação por pares é sempre a melhor escolha (ou uma das). Havendo alguém que saiba, esse alguém se sentirá feliz de explicar aos colegas, lembrando que é uma prática dialógica e colaborativa.

Em todo caso, a aquisição de vocabulário é um tema bastante debatido entre professores e estudiosos da educação. Pesquisas sobre leitura têm continuamente demonstrado que o conhecimento vocabular tem papel fundamental na compreensão do texto escrito (GARDNER, 2007, p. 331). É praticamente consensual a noção de que leitores com bom vocabulário costumam ter melhor desempenho em tarefas que exijam interpretação de texto – seja este o enunciado de uma prova, as instruções de uso de um equipamento, bulas medicinais, ou literatura.

Mas há uma forma de tornar a aquisição mais eficiente? Como podemos ajudar o leitor iniciante a adquirir e fixar novas palavras? Não há consenso entre os pesquisadores quanto ao papel da pedagogia na aquisição de vocabulário, nem quanto aos tipos de intervenção que poderiam levar mais rapidamente ao êxito. No meio do fogo cruzado estão as 'definições de dicionário' e a 'exposição ao contexto', enquanto algumas evidências indicam que uma combinação dos dois pode ter impacto positivo. (GARDNER, 2007, p. 332).

No poema "A égua e a água", da Cecília Meireles, pelo menos duas palavras requisitaram minha atenção: 'orvalho' e 'exígua', que aparecem na estrofe final "Pois o orvalho é uma gota exígua e as lagoas são muito largas". Para tirar a dúvida de 'orvalho', algumas vezes coloquei para ouvirem "O orvalho vem caindo", música de Noel Rosa que diz "O orvalho vem caindo/, vai molhar o meu chapéu/, e também vão sumindo/ as estrelas lá no céu..." e eles logo gritavam "Eu sei! Orvalho é uma chuva fininha!" A 'exposição ao contexto' ficou facilitada na música e as crianças aprenderam de forma lúdica.

Considero interessante usar uma variedade de meios, uma vez que a saída da rotina facilita a fixação de vocabulário. No caso de 'exíguo' bastou dizer que eles teriam apenas 30 segundos para fazer a ilustração sobre o desenho, e logo eles já estavam especialistas em "prazos exíguos", e em outras formas de uso: "Aaaaah! Significa “pouco”. Exígua é pouco! É uma gota pouca, pequena, pequenininha!"

Quanto à definição de dicionário, acredito que ensinar a usá-los é um meio de promover a independência do leitor. Infelizmente, dispomos de poucos dicionários que deem explicações numa linguagem acessível para a idade das crianças, as chamadas "definições revisadas" (McKEOWN, 1993). A falta de um dicionário apropriado, com definições simples, pode acabar complicando algo que seria inicialmente fácil, uma vez que a definição de uma palavra incomum pode conter outra também desconhecida e esta levar a outra e a outra...

Em pesquisa realizada com "definições revisadas", McKeown (1993) descobriu que o nível de aproveitamento de aquisição de vocabulário pode quadruplicar se a definição for redigida em termos simples, e de maneira que a atenção do leitor recaia sobre toda a definição, não apenas sobre um fragmento dela. Por exemplo, a definição de "sereno", que no dicionário Houaiss (2001, p. 2553) está como "tênue vapor atmosférico que cai ao crepúsculo ou à noite; orvalho, relento" chama a atenção para os fragmentos "tênue", "atmosférico" e "crepúsculo", e não para o todo, o que prejudicaria sua fixação. Já a definição de "sereno" no dicionário escolar Caldas Aulete (2005, p. 430), como "a umidade do ar que vemos em forma de gotas sobre as superfícies à noite e ao amanhecer [= orvalho]", está mais próxima do que seria o ideal por não apresentar fragmentos salientes, segundo a pesquisa (McKEOWN, 1993).

Os participantes adultos das vivências com o PAG também são convidados a registrar num diário suas impressões sobre o poema, e outras reflexões que possam ter tido no pós-vivência. No caso do PAG com crianças, pode ser interessante substituir essa segunda etapa pelo desenho de uma ilustração feita pelo próprio participante, ao final da sessão. Em geral, os dez minutos finais da sessão eram reservados à ilustração do poema, e as crianças se divertiam e se empenhavam. Como o PAG procura empoderar o leitor, a etapa da ilustração é especialmente frutífera, pois dá oportunidade aos mais tímidos, que pouco se manifestaram durante a vivência, de se expressarem nessa segunda etapa.