• Nenhum resultado encontrado

3 O PENSAR ALTO EM GRUPO

3.2 O Pensar Alto em Grupo e a pesquisa qualitativa

O Protocolo Verbal que deu origem ao Pensar Alto em Grupo começou a ser pesquisado em 1992 pela professora Mara Sophia Zanotto, da PUC de São Paulo, primeiramente para pesquisar como se dava a leitura de metáforas em poesia entre estudantes de pós- graduação, professores de literatura, língua materna ou estrangeira (ZANOTTO, 2014, p. 194). As sessões eram individuais e os participantes com frequência sentiam-se inseguros e constrangidos para enunciar seus pensamentos em voz alta diante da pesquisadora. Surgiu então a ideia de experimentar o protocolo verba l em grupo. Como esperado, a presença de colegas deixou os participantes mais à vontade. Estes passaram a expressar suas opiniões sobre o texto e a trocar ideias e impressões entre si, com resultados inspiradores, que deram origem a publicações como o artigo "Metáfora, cognição e ensino de leitura" (Zanotto, 1995).

Em pouco tempo, o Pensar Alto em Grupo (PAG) já se revelava uma promissora prática de letramento literário para abordar leitura de poesia ou prosa poética na escola, entre jovens adultos, seguindo matriz freireana: ênfase no diálogo e na colaboração entre os participantes; no leitor como agente do próprio aprendizado; na emersão da vivência de mundo do leitor (que, afinal, é um dos pilares a fundamentar a interpretação/leitura que cada um faz); e na verbalização livre dos pensamentos.

Se a criação do PAG pode ser fixada entre 1992 e 1995, o caminho que levou à sua criação começou a ser aberto na virada do século 20, a partir de pesquisas etnográficas conduzidas por antropólogos e etnógrafos formados em universidades de prestígio do mundo ocidental. Esses pesquisadores se deslocavam para locais longínquos, considerados exóticos, com o propósito de observar, estudar, e compreender aquele "outro", que em geral eram indivíduos ou comunidades vistos como pertencentes a sociedades primitivas.

Um dos pioneiros desse movimento foi o polonês Bronislaw Malinowski, estudante de Oxford, que em 1914 desembarcou no arquipélago Trobriand, à época colônia britânica, e ali permaneceu por dois anos, convivendo com os nativos, e inaugurando a técnica "observação participante", que implica na interação pesquisador/pesquisado, e supõe saber escutar, olhar, ver, ouvir, perguntar, e também quando perguntar e quando não perguntar.

O trabalho de Malinowski (1884-1942) foi publicado em 1922 e revolucionou o campo da antropologia social por trazer relatos pormenorizados, e insights sensíveis, especialmente perspicazes quando o autor comentava e analisava as crenças e os pontos de vista dos habitantes locais (ERICKSON, 1986, p. 123). Assim como houve quem acusasse seu estudo de ser subjetivo demais, houve quem se apaixonasse por ele e o considerasse convincente. O fato é que, a partir dos estudos de Malinowski, as pesquisas com grupos de seres humanos passaram a procurar entender/interpretar a maneira como os participantes construíam significado e como interagiam entre si, e passaram também a adotar ou privilegiar a abordagem qualitativa, em contraste com o paradigma positivista, até então predominante: pois enquanto os positivistas argumentavam que a finalidade de qualquer ciência era explicar os fenômenos e determinar relações de causa e efeito para suas ocorrências, os defensores da pesquisa qualitativa argumentavam que o propósito das ciências humanas era compreender a ação humana (DENZIN; LINCOLN, 2006, p. 195), em sintonia com as ideias do filósofo alemão Wilhelm Dilthey (1833-1911), que advogava uma distinção entre as ciências naturais e as ciências humanas.

Dilthey argumentava que pesquisas no campo das ciências humanas deveriam se valer de metodologia "hermenêutica ou interpretativa (do termo grego para 'intérprete'), com o propósito de descobrir e comunicar as perspectivas de significado dos grupos estudados, assim como faz um intérprete ao traduzir o discurso de um palestrante ou escritor" (ERICKSON, 1986, p. 123). Para Dilthey, seria preciso que o pesquisador tivesse um tipo de identificação empática com o ator, pois para entender o significado da ação humana, seria preciso "compreender a consciência ou intenção subjetiva do ator a partir de dentro" (DENZIN; LINCOLN, 2006, p. 196, grifo nosso).

Subjacente à recomendação de "compreender a intenção subjetiva" está a percepção de que as ações humanas têm um conteúdo intencional. Para compreender esse conteúdo intencional e dar significado a ele, é preciso fazer uso da linguagem – criação humana que é continuamente construída na interação entre os homens. E é por meio da linguagem que o sujeito e o grupo ao qual ele pertence atribuem significado às suas ações; os significados, então, são construídos pelo homem "que interpreta e reinterpreta o mundo a sua volta, fazendo, assim, com que não haja uma realidade única, mas várias realidades" (MOITA LOPES, 1994, p. 331). Em suma, o significado é construído socialmente, e ao reconhecer essa instância, as pesquisas passaram a levar em consideração a subjetividade dos participantes, o que torna atraente, por adequada, a investigação de natureza interpretativista, como é o caso do Pensar Alto em Grupo.

Com o avanço dos estudos a partir daquelas primeiras pesquisas etnográficas do início do Século 20, o domínio da pesquisa qualitativa foi se ampliando, abrigando perspectivas diferentes de diferentes pesquisadores, cujas reflexões, contestações e descobertas foram sendo incorporadas à fortuna crítica, iniciada naqueles primórdios. Se a alguns investigadores interessava ver o pesquisador como um intérprete capaz de escapar das próprias circunstâncias históricas e atuar como um "observador desinteressado", sem se deixar afetar pelo processo, a outros interessava compreender como se constituía o mundo intersubjetivo, cotidiano, e, para tanto, a abordagem mais adequada era a "observação participante", com a compreensão se dando de maneira dialógica e participativa.

Com o desdobramento de objetivos e ideias em diversos fronts, as pesquisas de paradigma qualitativo passaram a se debruçar também sobre grupos urbanos, e a abrir espaço para suas vozes: comunidades empobrecidas, à margem da sociedade dominante;

microculturas como a sala de aula (no esforço de entender por que alunos aprendem numa situação e não aprendem em outra, por exemplo); comunidades escolares fora da sala de aula; a vida mental de professores e alunos; o cotidiano de famílias aparentemente semelhantes no que tange ao nível cultural e socioeconômico, mas extremamente dessemelhantes no que tange ao perfil emocional (ERICKSON, 1986, p. 128); além de estudos sobre ecologia social, identidade, feminismo e questões de gênero, entre inúmeras outras questões que trazem no bojo um ímpeto questionador e a possibilidade de provocar mudanças na organização social vigente.

Como visto nesses breves parágrafos, desde que Malinowski desembarcou em Trobriand, a pesquisa qualitativa percorreu um longo e bonito caminho, e foi se consolidando e ampliando seus campos de atuação, validando-se gradualmente perante a comunidade científica à medida que produzia valiosas reflexões e trazia à tona conhecimentos que dificilmente seriam obtidos senão pelo enfoque qualitativo, embora parte da comunidade acadêmica, que reflete o paradigma positivista, ainda resista em legitimá-la. Um mergulho mais profundo sobre os diversos momentos da pesquisa qualitativa ao longo da história pode ser feito nas obras de Norman Denzin e Yvonna Lincoln, que abordam o paradigma de um modo geral, e de Frederick Erickson, que se concentra nas pesquisas em Educação (referências completas na Bibliografia).

Do exposto, percebe-se que o PAG tem estreita afinidade com a abordagem interpretativista e a observação participante. Para me inteirar do seu lado prático, em 2014 fiz o curso de extensão "Prática de Letramento para Formação de Leitores", ministrado na PUC pela professora Mara Sophia Zanotto, auxiliada por suas então orientandas que também pesquisam o PAG, Vivian Marcondes, Ariane Mieco e Arli Pires. Elas fazem parte do Grupo de Estudos da Indeterminação e da Metáfora (GEIM), do qual também participei em algumas sessões. Isso a que chamei "lado prático do PAG" envolveu realizações de vivências de leitura literária entre as participantes do curso, como também leitura, estudo e discussões sobre paradigmas de leitura e abordagens de leitura literária na escola, além de outras leituras que estruturam as pesquisas realizadas usando o PAG como instrumento metodológico.

Entre os pesquisadores que trabalham com o Pensar Alto em Grupo, há quem investigue os benefícios do PAG no ensino de língua estrangeira; quem conduza pesquisa-ação para investigar que tipo de ação do professor pode promover o desenvolvimento do leitor; quem investigue a interpretação da metáfora em poesia ou

prosa poética; há quem investigue a formação do professor como agente de letramento; a formação identitária dos leitores; a mediação de leitura como ação cultural... entre muitos outros objetivos.

Recapitulando brevemente, então, as pesquisas com o Pensar Alto em Grupo são realizadas dentro do paradigma qualitativo. Diferentemente das pesquisas quantitativas, as pesquisas qualitativas "não têm um padrão único, porque admitem que a realidade é fluente e contraditória e os processos de investigação dependem também do pesquisador", como informa Antonio Chizzotti (2014, p. 26). Na pesquisa quantitativa, os instrumentos de medida são fundamentais, uma vez que se pressupõe ser possível reproduzir um evento se as circunstâncias forem reconstruídas – o que é essencial quando se pretende determinar alguma relação de causa e efeito, por exemplo. A pesquisa qualitativa, por outro lado, ao pressupor a ação humana, leva em conta que a vontade e a liberdade humanas interferem no curso dos fatos; assim, os instrumentos necessários para se atingir o conhecimento "devem estar nos meios de se coletar informações vividas pelos atores humanos dos fatos e qualquer paradigma deve recorrer à intuição humana e à inferência interpretativa" (CHIZZOTTI, 2014, p. 28, grifo nosso). Em todo caso, ainda segundo Chizzotti (2014), a pesquisa qualitativa exige do pesquisador uma atenção sensível ao contexto, fatos, locais, e indivíduos que constituem objetos de pesquisa, pois só assim o pesquisador será capaz de identificar tanto os significados visíveis quanto os latentes. Combinando a observação sensível à geração de dados diretos que, no caso, é o Pensar Alto em Grupo, o pesquisador então interpreta e traduz em texto os significados do seu objeto de pesquisa. Os meios e métodos são diversos, e entre eles contam-se observação participativa, entrevista, diário de leitura, história de vida, estudo de caso, testemunho.

Desta feita, para uma melhor interpretação do seu objeto de estudo, o pesquisador pode lançar mão de diferentes expedientes. No caso do presente trabalho, além dos dados gerados pelas vivências, que foram gravadas em áudio e depois transcritas, lancei mão também das ilustrações que as próprias crianças fizeram inspiradas nos poemas lidos. Uma vez que, ao fazer o contraste das interpretações de diferentes grupos de crianças oriundas de localidades e culturas diferentes, terminei por dar à pesquisa um perfil algo etnográfico, achei por bem fazer um relato das dependências das escolas e dos entornos, das atividades que as crianças desenvolviam na escola, e também das atividades extraclasse, como assistir a peças de teatro ou fazer

passeios a parques, etc. Usei também dados sobre a origem étnico-cultural dos participantes, a mim fornecidos pela escola, quando não obtidos no site das instituições, e fiz um levantamento informal, junto às professoras e às próprias crianças, sobre as leituras que elas estavam fazendo por ocasião das vivências.

Assim, para tentar compreender suas interpretações dos poemas, levei em conta não só a singularidade de sua voz, como também a dimensão sócio-histórico-cultural em que elas estavam inseridas. Lancei mão também do conceito "horizonte de expectativas" cunhado em 1967 por Jauss (1994), de noções de metáfora conceptual de Lakoff e Johnson (2002), de noções de neurociência quanto ao funcionamento dos hemisférios cerebrais, quando então me vali dos estudos de Nikolajeva (2017) e Pullinger (2017), além dos conceitos de raciocínio bottom-up e top-down como encontrado n' O

Aprendizado da leitura, de Mary Kato (1985), e do conceito de inferência, como

definido por Regina Lucia Peret Dell'Isola em Leitura: inferências e contexto

sociocultural (2001, p. 44):

Inferência é, pois, uma operação mental em que o leitor constrói novas proposições a partir de outras já dadas. Não ocorre apenas quando o leitor estabelece elos lexicais, organiza redes conceituais no interior do texto, mas também quando o leitor busca, extratexto, informações e conhecimentos adquiridos pela experiência de vida, com os quais preenche os "vazios" textuais. O leitor traz para o texto um universo individual que interfere na sua leitura, uma vez que extrai inferências determinadas por contextos psicológico, social, cultural e situacional, entre outros.

Ao fazer isso, aproximei-me do modo de investigação definido como 'bricolagem', em que o pesquisador, apelidado 'bricoleur' (DENZIN; LINCOLN, 2006), faz uso de diferentes aparatos que estejam ao seu alcance, sejam teóricos, factuais, empíricos. Segundo Neira e Lippi (2012),

o bricoleur interpretativo entende que a pesquisa é um processo interativo influenciado pela história pessoal, biografia, gênero, classe social e etnia, dele e daquelas pessoas que fazem parte do cenário investigado. O produto final é um conjunto de imagens mutáveis e interligadas.

Como já foi dito, para geração de dados utilizei a prática de letramento Pensar Alto em Grupo (ZANOTTO, 1995; 2014), e como a interpretação dos dados está baseada fundamentalmente nas leituras que as crianças fizeram dos poemas, a pesquisa tem orientação interpretativista (MOITA LOPES, 1994).