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4 VIVÊNCIAS NO BRASIL E NA INGLATERRA

4.1. Os meninos (azuis) e os burrinhos

4.1.3.1 Excertos comentados da vivência 'The Blue Boy': Thriplow

A vivência transcorreu tranquila. Algumas crianças estavam tímidas a princípio e falavam em voz tão baixa que várias vezes me vi obrigada a pedir que repetissem o que haviam dito. Aos poucos passaram a falar um pouco mais alto e a participar ativamente. Na maior parte das vezes elas levantavam a mão para pedir a palavra e esperavam o colega terminar de falar antes de dar sua opinião. A exemplo das vivências no Brasil, fui responsável por cerca de um terço das falas, revozeando os mais tímidos ou pedindo aos mais afoitos que falassem mais devagar, ou repetissem algo que eu não havia entendido. As crianças mais participativas foram Hazel, April e Jonathan, mas todas fizeram aportes interessantes, mesmo as mais tímidas, como Jewel e Jesslyn.

A sessão durou 49 minutos, mas descontadas as apresentações e as explicações sobre o projeto, a vivência em si durou cerca de 40 minutos. Não houve tempo para desenharem após a vivência, e pedi que o fizessem em casa. Destaco a seguir alguns excertos, lembrando que a transcrição integral da vivência encontra-se no Apêndice.

Excerto 1 – Estranhamento inicial

62 Gravação The Blue Boy. The boy would like a donkey to take for a walk. A gentle little donkey, not one who runs along or jumps, but one who knows how to talk! The boy would like a donkey who knows how to say names of rivers, of mountains, of flowers, of all the things they see on their way. The boy would like a donkey with imagination for wonderful stories of people and beasties, of boats on the ocean. And they will wander the world, which looks like a garden, but just a bit wider, and perhaps a bit longer, with no end to stop them. If you know of a suitable donkey, please, do have him send his CV to Street of Houses, Number of Doors, to the Blue Boy who doesn’t know how to read.

[retrotradução literal: "O Menino Azul. O menino quer ter um burro pra levar pra passear. Um burrinho gentil, não um que corre e pula, mas um que saiba conversar! O menino quer ter um burro que saiba dizer os nomes dos rios, das montanhas, das flores, de tudo que eles virem pelo caminho. O menino quer ter um burro com imaginação para contar lindas histórias de pessoas e bichos e de barcos no mar. E eles sairão pelo mundo, que parece um jardim, só um pouquinho mais largo, e talvez um pouquinho mais comprido, sem fim que os possa impedir. Se você souber de um burro adequado, por favor, faça com que ele envie o CV dele para... Rua das Casas, Número das Portas, ao Menino Azul que não sabe ler"]. 66 Jonathan Se você encontrar um burrinho, você simplesmente entrega

pra ele?

67 Telma Pois é, o que vocês acham? Se vocês encontrarem um burrinho, o que vocês fazem? O que a gente pode fazer? Vocês é que sabem, podem falar o que quiser.

68 Lizzie Eu achei muito engraçado, eu sei que não é pra ser engraçado, mas... eu acabei rindo ( )

69 Telma Mas por que você acha que não é pra ser engraçado? Talvez seja engraçado, ou não...

70 Lizzie ((risadinhas))

73 Telma Ok, Lizzie achou engraçado. Alguém mais achou engraçado? Jonathan? ((ele tinha levantado a mão))

74 Jonathan Se o menino acha que ele pode sair andando... Eles vão acabar ficando... Como você acha que ele pode sair andando, milhas e milhas...?

76 Jonathan Mas aí o burrinho vai... ((faz cara de exausto, como se estivesse desmaiando)) porque vai estar muito cansado. 77 Hazel Mas aí é só ele ir pra casa. Ele podia voltar pra casa. 78 Telma Desculpe, o que você disse? Eu não ouvi...

79 Hazel O burro provavelmente ia desmaiar, porque... (está vazio) sem comida, sem água... aí o menino podia falar "tudo bem, vamos pra casa", mas ele provavelmente ia desmaiar também...

83 April Eu achei meio confuso porque não dá pra saber se é baseado em alguma coisa ou se alguém simplesmente inventou ou... eles inventaram ou tem de ser baseado em alguma coisa, pra entender (o poema real).

84 Telma Hmm... Então você acha que deve ser baseado em alguma coisa...?

87 April Sim, porque isso... pode ter acontecido há muito tempo. Eu não sei se esse poema é muito velho ou não...

89 April Mas pode ter acontecido... sei lá, quando existia... talvez esse menino, mas não azul...

91 April …um burrinho que sabia falar algumas coisas ( ) 95 Ben Eu não acho que esse poema é antigo, eu acho que é bem

novo.

96 Telma Você acha que é novo? E por que você acha isso? 97 Ben Hmmm, porque... eu não sei, eu só acho que é novo... 100 Jonathan Eu acho que é dos anos 80 ou 90…

A exemplo do que houve em outras vivências, as crianças de Thriplow começam por questionar a história em si. Jonathan, assim como Maisie, não acha possível encontrar um burrinho que fale (algumas crianças falam que burros "não cantam", embora o poema não faça menção a ele cantar). Jonathan também questiona a capacidade de o menino sair andando pelo mundo sem comida: os dois provavelmente desmaiariam (74/76). Hazel contra-argumenta, supondo que o menino poderia ir montado no burrinho (75) e, se ficassem cansados, poderiam "voltar para casa" (77/79). Esse dado da "volta para casa" é interessante porque mostra que Hazel ainda não concebe o menino como alguém sem casa e sem família, algo que será aventado depois (Excerto 7).

O fato de April tentar descobrir se o poema é baseado em alguma história indica que ela se sente incomodada com as lacunas do poema. Tento descobrir qual lacuna a incomoda mais, e a revozeio (84/86); pelo seu comentário, parece que ela não está aceitando a ideia de um burrinho falante, a não ser que seja um poema velho ou baseado em história antiga: aí, sim, naquela época, "há muito tempo", existiria um burrinho que "sabia falar algumas coisas" (91), e um menino, "mas não azul" (89). Ela talvez se referisse a fábulas, cujas narrativas com frequência iniciam pela fórmula "No tempo em que os animais falavam..." ou talvez a fantasias, como As Crônicas de Nárnia, como veremos no Excerto 7. Aparentemente, April tenta acomodar seu conhecimento de mundo aos desejos do menino, numa tentativa de dar sentido ou validade a eles.

Apesar de dizer que acha que o poema é novo, Ben não sabe explicar o motivo (97), mas é possível que tenha alguma relação com o registro e com a forma, aspectos que as crianças intuem, mas nem sempre conseguem expressar em argumentos. Poemas infantis clássicos, como os publicados em A Child's Garden of Verses, de Robert Louis Stevenson (1850-1894), ou no Slant Book, de Peter Newell (1862-1924), na década de 1910, ou mesmo os publicados por Alan Alexander Milne (1882-1956) em When we

were very young, nos anos 1920, tinham sistemas métrico e rímico muito bem

marcados, e às vezes usavam uma sintaxe mais rebuscada. Já os poetas contemporâneos, como, por exemplo, Michael Rosen (1946-), e Philip Gross (1952-), além de adotarem um registro mais coloquial, e fazerem largo uso do verso livre, abraçaram a vertente

story-poem, criando poemas que soam como contos5. Talvez, para Ben, "The Blue Boy"

tangencie a categoria "conto-poema" por narrar os desejos do menino em registro coloquial, deixando o fim em aberto. Além disso, poemas de forma fixa convivem com os de verso livre nas obras infantis de autores ingleses contemporâneos6, e é possível que Ben tenha associado "The Blue Boy" a essa vertente mais livre, uma vez que o registro é informal e as rimas não são muito marcadas, especialmente entre imagination e ocean, garden e them, e CV e read.

Excerto 2 – Conjecturando sobre "Blue"

5 Vídeos do poeta Michael Rosen em performances de seus poemas para crianças podem ser encontradas

no Youtube ou em seu site oficial: https://www.michaelrosen.co.uk/

103 Telma Ok. A April também disse alguma coisa sobre o menino ser azul [blue]... Você acha estranho que ele seja azul [blue]? Ou não? O que você acha?

104 April Bem, não, eles podem ter feito assim pra ficar mais interessante, assim, 'The Blue Boy'. Ele podia ser um menino normal, mas quem escreveu esse poema deve ter pensado que se o título fosse só 'The Boy' ia ficar muito chato...

106 Maisie Vai ver eles querem dizer blue como 'triste'... porque ele está triste, ele quer o burrinho porque ele está triste.

108 Hazel Pode ser a cor das lágrimas dele, porque ele fica... "Eu quero um burrinho!" ((faz voz chorosa)) Então pode ser a cor das (lágrimas dele)

111 Telma Hm-hum, a cor das lágrimas dele... tipo, ele fica azul com as lágrimas... E vocês acham que é porque ele é triste que ele é chamado de Azul [Blue]? Vocês acham que é um poema triste? O que vocês acham?

112 Gwen Pode ser, porque ele tá pedindo um burrinho pra consolar ele. Como um amigo, talvez.

114 Maisie Sim, mas provavelmente ele não vai conseguir, então... 116 Maisie Ele pode não conseguir, então... provavelmente ele vai ficar

chorando e implorando...

117 Hazel Ele provavelmente não vai conseguir... Ele quer o burrinho, mas ele provavelmente não vai conseguir, porque não existe, porque não dá pra fazer um burro falar ou cantar...

Neste fragmento as crianças dão diferentes opiniões sobre o Blue. No turno 89, April havia dito que talvez o poema fosse antigo e "o menino pode ter existido, mas não azul" [maybe the boy, but not blue]. Interpreto essa restrição como estranhamento quanto ao azul, e a interpelo sobre isso (103). Sua resposta (104) mostra que ela conhece estratégias de escrita e deve ser uma grande leitora, pois atribui ao engenho de quem escreveu o poema o uso de Blue para "ficar mais interessante". Maisie, então, levanta a questão que havíamos antecipado na tradução e recepção deste poema, quando conjecturamos sobre as possíveis decorrências de usar Blue como tradução de Azul: para Maisie, blue teria sentido figurado, e seria sinônimo de 'triste' (106); Hazel também vê tristeza no menino: suas lágrimas o deixariam azul (108). Como Maisie e Hazel haviam associado 'blue' a tristeza', pergunto às crianças se elas acham que o menino é triste e se esta seria a razão para ele ser chamado Blue (111); Gwen concorda que sim, indicando que também o vê como um menino triste, que quer ser consolado pelo

burrinho, como se este fosse seu amigo. Maisie (114/116) e Hazel (117) complementam a argumentação, enfatizando que o menino não vai conseguir encontrar esse amigo, pois burros falantes não existem.

Excerto 3 – O burrinho poderia ser um leitor para o menino

121 Ben Eu acho que o menino quer o burro, é assim (no fim), mas no fim fala que ele não sabe ler, então onde diz...

123 Ben "O menino quer ter um burro que saiba dizer os nomes dos rios..." o burro poderia, tipo, ler pra ele...

124 Telma Ah, sim! Ler os nomes dos rios...? 127 Ben Porque ele não sabe ler.

129 Jonathan Assim, ao invés de tocar nas coisas pra ver ou sentir como elas são, ele quer que o burro fale pra ele onde as coisas estão e tudo mais...

Talvez Ben tomasse como certo o menino ser triste, pois ele não entra nessa questão e salta direto para o fato de o menino não saber ler, focando na vontade que o menino tem de saber os nomes dos rios (montanhas e florestas). Com seu conhecimento de mundo (estratégia top-down), Ben sabe que esses acidentes geográficos são nomeados nas placas ao longo da estrada por onde menino e burrinho passariam ao sair pelo mundo: tal conhecimento, associado ao fato de o menino não saber ler, dá o estalo para que Ben conclua que o menino quer o burrinho como leitor. Jonathan concorda e, por um instante, ao falar em "tocar nas coisas pra ver" (129), parece sugerir que o menino tem deficiência visual, e por isso não sabe ler. No entanto, Jonathan acaba não desenvolvendo essa hipótese, como veremos no próximo excerto. Mais tarde, ele proporá ainda outra hipótese que fará mais sentido para ele e para outras crianças, que a abraçarão (Excertos 7 e 8). Mas é interessante notar que Jonathan pode ter identificado no burrinho o papel de guia do menino, pois este espera que o burrinho o acompanhe aonde quer que ele vá, nomeando tudo o que aparecer no caminho. Assim, a leitura de Jonathan aproximaria o burrinho de um cão-guia, e se o menino solicita esse guia é porque talvez seja deficiente visual.

Excerto 4 – O burrinho substituiria os pais na função de explicar o mundo

129 Jonathan Assim, ao invés de tocar nas coisas pra ver ou sentir como elas são, ele quer que o burro fale pra ele onde as coisas estão e tudo mais...

130 Telma Ele quer que o burro fale tudo ao invés de...? 131 Jonathan Ao invés da mãe e do pai dele.

132 Telma Oh, ao invés da mãe e do pai falarem, ele quer que o burro fale...?

133 Hazel Porque eles iam ficar (cansados).

135 Hazel Eles iam ficar cansados... Eles provavelmente iam ficar cansados se tivessem de falar... "E ali tem uma árvore, e ali tem capim, e aqui tem esse cachorro..." ((fala com uma voz ondulante, quase rindo))

136 Telma ((risos)) Você acha que ele fica cansado. 137 Hazel Provavelmente os pais ficam cansados.

139 Jonathan E ele provavelmente fica cansado da MESMA voz TODO dia, TODO minuto, e TODO segundo, falando... Ele queria falar outra coisa, talvez.

Como vimos, Jonathan diz que o menino quer que o burrinho descreva tudo para ele, ao invés de ele mesmo tocar nas coisas para "vê-las" ou "senti-las". Eu quis entender melhor esse 'ver com as mãos', pois achei que Jonathan estivesse sugerindo que o menino seria deficiente visual. Revozeei, então, o que ele havia dito, em tom interrogativo (turno 130). Porém, em lugar de repetir ou explicar o que queria dizer sobre 'tocar nas coisas', Jonathan introduz uma nova informação: em lugar de os pais explicarem as coisas para o menino, o burrinho é que o faria (131). Hazel interpreta que os pais ficariam cansados de explicar tudo ao menino, e por isso o burrinho os substituiria na função (133/135). Jonathan acrescenta que o menino também ficaria cansado de ouvir sempre a mesma voz (139).

É interessante notar que, neste fragmento, as crianças falam espontaneamente no pai e na mãe do menino: o menino tem, então, uma família, e apesar de os pais estarem 'cansados de falar', e o menino estar 'cansado de ouvir a mesma voz', os três são unidos e se comunicam, e a mãe (ou o pai) mostra as coisas do mundo para o menino. Em suma, as crianças assumem espontaneamente que o menino tem pai e mãe. Em breve, porém, elas abandonarão essa ideia (Excertos 7 e 8).

Excerto 5 – O burrinho serve de inspiração para a imaginação do menino

143 April Eu acho que... "com imaginação para lindas histórias" não é que... Eu não acho que ele quer que o burro fale de verdade, eu acho que ele só quer criar histórias com esse burro, então o burro não precisa falar de verdade, é só... pro menino poder se divertir, criando histórias com o burrinho...

144 Telma Então o MENINO é criativo e quer imaginar coisas. Então não é o burrinho que vai imaginar... Foi isso que você disse, April? Eu entendi certo, ou não?

145 April Eu disse que "com imaginação para lindas histórias" é que o menino pode imaginar histórias com o burrinho, então ele pode imaginar que o burrinho está falando coisas, enquanto eles fazem coisas com o burrinho.

146 Telma Hm-hmm, ok. E aí, alguém? Jesslyn? ((Jesslyn está muito quietinha e tento trazê-la para a conversa. Lizzie ergue a mão)) Ou Lizzie?

O insight de April (143) é muito interessante, e tento atrair as crianças para a discussão, chamando Jesslyn (146), que ainda não se manifestara desde as apresentações. Quem responde a meu chamado, porém, é Lizzie que, no entanto, não dá continuidade à ideia de April, e retoma um tema que a incomodava desde o começo, como veremos no próximo excerto. Mas antes é preciso observar que ao aventar a possibilidade de o menino apenas querer um burrinho para exercer sua imaginação (sem precisar que ele fale), April recupera a possibilidade de o menino vir a encontrar um burrinho para ser seu amigo, algo que no Excerto 2 tinha sido descartado por Maisie (114/116) e Hazel (117) quando elas argumentaram que burros falantes não existem.

Excerto 6 – Retomando temas ainda no ar

146 Telma Hm-hmm, ok. E aí, alguém? Jesslyn? (...) Ou Lizzie? 147 Lizzie Eu acho muito engraçado como o homem fala.

148 Telma É engraçado, então? Você não acha triste, você acha engraçado.

151 Lizzie Um pouco.

152 Telma Você pode falar um pouco mais sobre isso? Por exemplo, por que você achou engraçado?

153 Lizzie É o jeito de ele falar... declamar o poema... É tipo... ((ela faz uma cara séria))

156 Lizzie É.

157 Telma Jonathan? ((ele levanta a mão)) 158 Jonathan ((faz

voz maçante ao reproduzir as falas da mãe))

Eu acho que ele quer o burro pro burro poder dizer onde está tudo, e também pra ele montar no burro, porque senão é assim... você vai andando e aí sua mãe fala... "Olha! Um cavalo! Olha! Um porco...! ... Outro porco!"

159 ((risos))

160 Jonathan Agora uma galinha... 161 Ben Um pato, um coelho...

162 Telma ((risos)) Então você acha que o mundo onde ele vive é chato? É tudo assim, "um porco, outro porco", e ele quer...

163 Jonathan Eu acho que é baseado na Segunda Guerra Mundial.

A gravação do poema divertiu Lizzie, mas ela quer se explicar quanto a isso, e em lugar de dar continuidade à ideia de April (sobre o menino ter imaginação, e não o burrinho), ela volta a comentar que riu não porque o poema fosse engraçado, mas porque o jeito de "o homem falar o poema" é que ficou engraçado. (147/153).

Jonathan também deixa de abordar a questão levantada por April, e volta à ideia de o menino querer o burro para que este apresente o mundo para ele, em lugar de os pais fazerem isso (158). Todos riem do diálogo que Jonathan imagina entre a mãe e o menino (159-160), e quando pergunto se ele acha o mundo do menino chato (162), Jonathan apresenta uma hipótese totalmente diversa das discutidas até então (163), como veremos a seguir.

Excerto 7 – Conjecturando sobre a época em que se passa o poema

163 Jonathan Eu acho que é baseado na Segunda Guerra Mundial. 164 Telma

((surpresa))

Na Segunda Guerra...?! Por que você acha isso...?

165 Jonathan Porque naquela época você tinha de ir morar com pessoas diferentes, e pode ser que não fosse tão bom igual era quando ele morava com os pais dele. Então ele fica querendo o burrinho.

166 Telma Ele fica querendo o burrinho porque ele...?

podem morrer na guerra, e ele nunca mais vai ver eles de novo.

168 Telma Então agora você acha que ele não tem nem pai nem mãe? 169 Bem Ele ia estar num orfanato.

171 Telma Ah, você acha que ele está num orfanato? 172 Jonathan Ele poderia estar.

174 Lizzie ((fala com voz grave ao citar os versos do poema))

Eu não (vou falar) do que ( ) diz... É como ele ( ) Ele está sempre falando "O menino quer um burrinho... O menino quer um burrinho" Fica tudo, assim, sem graça, se é que você me entende... Mas fica muito engraçado por causa disso.

175 Telma Então você acha meio sem graça, é isso que você disse. 176 Lizzie Sem graça, mas tipo, engraçado.

177 Telma Sem graça e engraçado ao mesmo tempo.

180 Lizzie Sim. "O menino queria um burrinho..." ((Lizzie repete os versos em voz lenta e grave, de um jeito engraçado))

181 Telma ((risos)) Ah, então você acha que ele é solene...? Assim... muito... ((faço cara de engravatada)) É isso que você quis dizer, ou estou interpretando errado?

182 Lizzie É, isso mesmo.

Jonathan sugere, repentinamente, que o poema é baseado na Segunda Guerra (163). Fico surpresa (164), pois não via motivo para ele pensar assim. Ben adere às conjecturas sugerindo que, se os pais do menino morressem na guerra, ele iria para um orfanato (169). Tento desfiar esse novelo para entender essa ideia, porém, antes de a conversa tomar corpo, Lizzie pede a palavra, e em lugar de comentar sobre a questão do orfanato e da guerra, volta a falar sobre o tema que a incomodava desde o começo: a maneira como foi feita a leitura do poema (174/176). Ela então imita a voz do narrador como se fosse séria e arrastada. Pergunto se ela achou o jeito dele muito "solene" (181), e ela concorda, explicando que ficou engraçado por causa disso.

Desvios da linha de pensamento não são incomuns em sessões do Pensar Alto em Grupo, especialmente entre crianças, como vimos neste fragmento e no fragmento anterior. Lizzie ficou preocupada em esclarecer o motivo de suas risadas, o que interpretei como delicadeza da parte dela, embora, ao tentar esclarecer, ela tenha interrompido a discussão que se desenhava (174). Mas por fim, depois de se explicar e

esclarecer o motivo do riso, Lizzie finalmente começou a tomar parte nos outros temas que tinham vindo à tona, como veremos nos próximos excertos. Mas antes de passarmos a eles, faz-se mister comentar a interpretação de Jonathan sobre o poema "O menino azul" se passar durante a guerra. São várias as hipóteses: