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2 ERA OUTRA VEZ: A TRADUÇÃO DOS POEMAS PARA O INGLÊS

2.2. Das traduções dos poemas

2.2.1. O menino azul: análise e tradução

Dentre os 56 poemas de Ou isto ou aquilo, “O menino azul” talvez seja um dos poemas mais antologizados em coletâneas de poesia para a infância, paralelamente a “Ou isto ou aquilo” e “Jogo de bola”, da mesma obra. É um poema tão querido que a editora Global (atual detentora dos diretios de publicação da obra de Cecília Meireles) já lançou ao menos duas separatas dele, ilustrado por diferentes artistas.

O poema é composto de cinco estrofes (Quadro 2) em que as três primeiras enfatizam o desejo do menino, repetindo o bordão “O menino quer um burrinho”. E ele quer o burrinho para passear, conversar, ensinar-lhe o nome das coisas, contar histórias, viajar. Não conhecemos nada do menino, a não ser o qualificativo "azul", declarado no título, mas esse menino vai sendo revelado ao longo do poema pelos seus quereres. Na última estrofe, quando o eu poético dá uma piscadela bem-humorada para o leitor e sugere que este, se souber de um burrinho assim, "pode escrever para a Rua das Casas,

Número das Portas, ao Menino Azul que não sabe ler", descobrimos também que ele não sabe ler. O leitor, então, talvez faça uma leitura retrospectiva, e passe a crer que, por ele não saber ler, aquele menino deve ser bem jovem, e tudo aquilo que ele quer no burrinho poderá ser conseguido a partir do momento que ele aprender a ler.

Era exatamente essa a leitura que eu fazia desse poema antes de apresentá-lo às crianças e ser surpreendida, já na primeira vivência no Brasil, às leituras que elas fizeram (essa vivência será comentada no Capítulo 4). Eu achava que "O menino azul" não suscitaria muitas reflexões e a sessão terminaria logo, com as crianças concluindo que o menino ainda era muito novo para aprender a ler, mas que certamente, em um ou dois anos, ele poderia ir para a escola. O menino azul então aprenderia a ler e não precisaria que nenhum burrinho contasse histórias para ele.

Como expliquei na Introdução, a poeta e tradutora com quem estabeleci parceria para traduzir os poemas de Ou isto ou aquilo para o inglês, Sarah Rebecca Kersley, e que traduziu este poema em 2012, compartilhava comigo da noção de que ele provocaria uma compreensão imediata. Entre outras coisas, Sarah (informação pessoal)2 dizia que

"O menino azul" é um poema que acho que tem uma 'mensagem' visível demais, portanto, fica neutralizado por ser óbvio em vez de inerente. Não me soa como um poema que um leitor-criança poderia se identificar hoje em dia.

Ao voltar a falar com Sarah sobre "O menino azul", quatro anos depois de ela tê- lo traduzido, soube que ela não estava muito satisfeita com o resultado por achar que não tinha conseguido uma linguagem natural. Nas suas palavras (informação pessoal)3,

[o poema] tem um tom datado e, portanto, não natural para ser lido por crianças hoje. Creio que aqui fiquei um pouco presa a uma noção da prioridade de espelhar a forma e este foi o ponto de partida. Acho que consegui a semântica, mas não o "tom".

Eu discordei do parecer da tradutora a respeito de sua própria tradução, por considerá-la criativa e acessível, para mim um excelente representante de "O menino azul". Mas antes de continuar a discussão, vejamos o poema e sua versão para o inglês:

2 Kersley, Sarah R. Mensagem recebida por francotelma@yahoo.com.br em 2 de maio de 2016. 3 Kersley, Sarah Rebecca. Mesmo email da nota acima.

O Menino Azul The Blue Boy

O menino quer um burrinho The boy would like a donkey

para passear. to take for a walk.

Um burrinho manso, A gentle little donkey,

que não corra nem pule, not one who runs along or jumps mas que saiba conversar. but one who knows how to talk. O menino quer um burrinho The boy would like a donkey

que saiba dizer who knows how to say

o nome dos rios, names of rivers,

das montanhas, das flores, of mountains, of flowers,

— de tudo o que aparecer. of all the things they see on their way. O menino quer um burrinho The boy would like a donkey

que saiba inventar with imagination

histórias bonitas for wonderful stories com pessoas e bichos of people and beasties, e com barquinhos no mar. of boats on the ocean.

E os dois sairão pelo mundo And they will wander the world, que é como um jardim which looks like a garden, apenas mais largo but just a bit wider e talvez mais comprido and perhaps a bit longer, e que não tenha fim. with no end to stop them.

(Quem souber de um burrinho desses, (If you know of a suitable donkey,

pode escrever please do have him send his CV,

para a Rua das Casas, to Street of Houses,

Número das Portas, Number of Doors,

ao Menino Azul que não sabe ler.) to the Blue Boy who cannot yet read.) Quadro 1: "O Menino Azul" vs. "The Blue Boy"

Como se vê no Quadro 2 acima, o poema fonte é composto de cinco estrofes, com rimas completas entre o segundo e o quinto versos em todas elas. Sarah conseguiu correspondência para todas as rimas do poema fonte: rimas completas nas três primeiras estrofes, e aproximadas nas duas últimas. A rigor, rimas assonantes ou consonantes são perfeitamente assentes à língua inglesa, e Sarah conseguiu recriá-las dentro do organismo do poema, sem forçar. Quanto à métrica, o poema fonte não é regular dentro de uma mesma estrofe, mas é regular no todo, isto é, tome a primeira estrofe: o primeiro verso tem oito sílabas, o segundo e o terceiro têm cinco, o quarto tem seis e o quinto tem sete. Esse padrão se repete nas outras estrofes, o que dá uma noção de ritmo, em função da repetição.

No entanto, não é um ritmo muito marcado, pois o padrão se repete apenas ao fim de cada 34 sílabas, que constitui o conteúdo silábico de cada estrofe. Assim, a linguagem do poema fica natural ao ouvido, quase como prosa. Esse padrão é quebrado na última estrofe. Quebras de padrão chamam a atenção, e mesmo que o leitor ou ouvinte não tivesse percebido o padrão anterior, é possível que ele perceba que alguma coisa aconteceu, e que houve uma ruptura. Na última estrofe, o primeiro verso ainda tem oito sílabas, mas o segundo muda para quatro, o terceiro muda para seis, o quarto para cinco e o último para dez sílabas. A interrupção do padrão anterior faz o leitor pausar a leitura para "apanhar o passo" que se perdeu; a meu ver, uma estratégia para chamar a atenção para o conteúdo, que mudou também. Já não é uma lista dos quereres do menino: ficamos diante da ironia de enviar uma carta a um endereço impossível de ser encontrado onde mora um menino que não saberia ler a carta mesmo que fosse encontrado.

Em termos de métrica, a versão não segue o padrão do poema fonte e, em termos silábicos, é mais irregular entre uma estrofe e outra, se contarmos os versos separadamente. No todo, porém, a métrica da versão fica muito próxima da fonte, se fizermos a contagem silábica como se fosse prosa: enquanto um tem 164 sílabas, o outro tem 170. Uma das crianças brasileiras, como veremos no Capítulo 4, interpretou esse poema como um "desabafo" do menino, indicando que a linguagem d'"O menino azul" lhe pareceu natural, mais próxima do gênero "prosa", sugerindo, com isso, que a métrica não é um dos atributos poéticos mais evidentes. Assim, o fato de a versão não manter uma regularidade muito precisa em relação à métrica não depõe contra tal versão. Ademais, se avaliarmos a versão em termos de beats (batidas), ela ganha em regularidade nas quatro primeiras estrofes, vindo a perdê-la apenas na quinta, quando essa regularidade também é quebrada no poema fonte.

Algumas observações podem ser feitas também sobre as modulações que Sarah fez para obter os efeitos pretendidos. Como dito na Introdução, tradutores de poesia muitas vezes modulam a linguagem ou fazem cortes ou acréscimos em nome da métrica ou da rima, quando esses atributos poéticos são considerados muito significativos. Em nome da rima foram feitas duas pequenas alterações de que trato logo a seguir, e um acréscimo em nome do ritmo, de que tratarei depois.

Na primeira estrofe, “walk” e “talk” formam rimas completas, assim como o par “passear” e “conversar” do poema fonte. Mas enquanto em português “um burrinho para passear” permite duas imagens – o menino pode passear montado no burrinho ou levar o burrinho para passear como fazemos com um animal de estimação – em inglês, a expressão “take for a walk” talvez possibilite apenas a leitura de o burrinho ser passeado como um animal de estimação. Aliás, quanto a isso, foi essa a leitura que Sarah (informação pessoal)4 fez, quando lhe perguntei sobre isso: "em 'to take for a walk', a intenção é inferir ir passear lado a lado, como um menino e um cachorrinho. Foi isso que visualizei quando li o poema de Cecília Meireles". Foi essa a leitura que muitas crianças brasileiras também fizeram: embora não a tenham expressado em palavras, isso fica claro em alguns desenhos que fazem dos poemas (v. Ilustrações infantis, Apêndice A).

Uma segunda alteração para compor rima, no caso "CV" como correspondente de "escrever", para compor rima assonante com "read", na última estrofe, poderia provocar reflexões sobre a capacidade de o burrinho enviar seu currículo [please, do have him send his CV] seja por correio ou email, lembrando que no poema fonte é o leitor quem deve escrever para o menino com informações do burrinho, não o próprio burrinho [quem souber de um burrinho desses pode escrever]. Na análise dos resultados, vermos que essa alteração provocou embaraços na leitura, embora não por este motivo.

Nesta versão houve também um acréscimo, que Sarah credita, por um lado, à decisão de obter correspondência métrica; e por outro, à leitura que ela própria fez do poema. Falo do "yet" (ainda), no último verso do poema. No poema fonte temos o verso "ao Menino Azul que não sabe ler", com 10 sílabas poéticas, enquanto na versão em inglês Sarah recriou "to the Blue Boy who cannot yet read", com nove sílabas, e que em retrotradução ficaria "ao Menino Azul que ainda não sabe ler". Se Sarah tivesse composto esse verso sem "yet", ele terminaria ainda menor do que no poema fonte. Mas, fora a questão da métrica, o "yet" pode ter achado seu caminho para dentro do poema através do subconsciente de Sarah (informação pessoal)5, como ela mesma admite: "Agora relendo muito tempo depois, não lembro como foi a decisão pelo 'yet', mas concordo que possa ter sido algo subconsciente do meu entendimento das intenções da poeta, no sentido ideológico".

4 Kersley, Sarah R. Mensagem recebida por francotelma@yahoo.com.br em 2 de maio de 2016. 5 Kersley, Sarah R. Mensagem recebida por francotelma@yahoo.com.br em 2 de maio de 2016.

É fato que, com a introdução de "yet/ainda" fica subentendido que o menino ainda pode vir aprender a ler. A conotação "ideológica", a que se refere Sarah, estaria na ciência de que o analfabetismo é um estado temporário, não uma condição fixa, e "yet" confirma esse estado provisório.

Essa questão do "yet" ganhou toda essa dimensão porque, como veremos na transcrição das vivências no Capítulo 4, as crianças brasileiras buscaram muitas explicações para o menino não saber ler, porém não associaram o fato à sua pouca idade, o que sugere que elas viram o menino como alguém da sua própria idade, entre 9 e 10 anos. A meu ver, se mantido o "yet", poderíamos estar tirando a chance de as crianças estrangeiras fazerem essa mesma leitura. Decidimos, então, pela retirada do 'yet', e foi feita mais uma alteração: saiu "cannot" e entrou "doesn't know". Assim, o verso que literalmente poderia ser "to the Blue Boy who cannot read", com 8 sílabas, se tornou "to the Blue Boy who doesn’t know how to read", com 11 sílabas. Esse aumento na contagem de sílabas do último verso não é de todo mal: como o penúltimo verso, "Number of Doors", tem apenas quatro sílabas (no poema fonte tem cinco), na 'leitura corrida' proporcionada por um poema narrativo, a sílaba extra desse último verso funciona como uma compensação.

Discutimos também, como não poderia deixar de ser, o incongruente "azul" que, traduzido como "blue", também tem o sentido de "triste", em inglês. Cogitamos outros nomes como Bright Boy, Indigo Boy, Amber Boy, mas cada um trazia problemas específicos que poderiam induzir a interpretação a veredas diferentes. Sarah (informação pessoal)6 então argumentou:

O significado de "blue" como melancolia sempre vai estar presente no inglês. Mas acho melhor que fique "blue" mesmo, na tradução. Este ponto é interessante em uma discussão, já que sempre vai ter algo em uma tradução que não há na língua fonte e vice-versa.

Uma vez que tive a chance de trabalhar com dois grupos diferentes de crianças estrangeiras, pude avaliar uma versão com "Blue Boy" e uma apenas com "Boy", como será visto no Capítulo 4.