• Nenhum resultado encontrado

4 VIVÊNCIAS NO BRASIL E NA INGLATERRA

4.1. Os meninos (azuis) e os burrinhos

4.1.2.1 Excertos comentados da vivência 'O menino azul': Vera

A primeira sessão com um novo grupo sempre é um pouco mais longa, porque dedico os primeiros minutos a explicar o projeto. As crianças em geral fazem perguntas ou comentários, e a discussão propriamente dita sobre o poema tarda um pouco. Foi o que se deu nesta sessão, que durou exatamente 60 minutos, incluindo os dez primeiros minutos de explicação do projeto e de conversas para quebrar o gelo, e os dez minutos finais dedicados ao desenho. A vivência como leitura e discussão do poema durou um total de 38 minutos: começou no turno 186, quando ouvimos o áudio gravado por Paulo Autran, e se estendeu até o turno 642, quando lhes entreguei o caderno e pedi que fizessem um desenho baseado no poema. Lembrando que a transcrição integral da vivência encontra-se no Apêndice, destaco e comento a seguir alguns dos fragmentos mais significativos em termos da interpretação que as crianças do Grupo 2 fizeram de "O menino azul".

Excerto 1 – Estranhamento inicial. Primeira reação: negar

187 Aurélio É impossível ter um burro desse.

190 César Esse menino parece um alienígena, ele é azul!

191 ((risos))

192 Aurélio É, só faltou ter as antenas.

195 Sophie Eu acho que ele quer ser burro. Porque burro não canta, então quem vai ser burro é ele...! ((risos))

De maneira geral, a primeira reação de algumas crianças ao lerem ou ouvirem esse poema tem um quê de negação, seja à história em si, como demonstra a fala de Aurélio (187), seja ao menino, como demonstrado por César e Sophie (190/195), e como visto nas falas de alguns integrantes do Grupo 1, na vivência anterior.

As falas desse fragmento se deram logo após ouvirmos o áudio do poema pela primeira vez. Proponho ao grupo, então, ouvir o poema mais uma vez, antes de começarmos a discutir, e após a segunda audição opera-se uma mudança. Janaína enfatiza que foi dito "burrinho", não "burro", aparentemente em resposta a Sophie, que antes havia dito que o menino é que seria burro (195). E Aurélio, que parecia renegar o poema, confessa ter ficado muito emocionado, como veremos a seguir:

Excerto 2 – Segunda reação: Imaginação e emoção

197 Janaína Não falou burro, falou burrinho.

198 Aurélio Ô professora, o burro, eu sei que ele não é burro, eu sei que o burro é inteligente, mas como é que um burro vai falar? Me diz, só se o garoto for alienígena e vai ler a mente dele, aí o burrinho vê lá o rio e aí pensa: “Olha o rio ali, meu dono!” ((Aurélio bate na mesa com as mãos, imitando barulho de trote 'troc-troc')) Aí vê as flores: “Olha as flores ali, meu dono!” ((bate na mesa, fazendo barulho de trote de novo)), aí ele vê uma feia: “Olha a feia ali, meu dono!”

199 ((risos))

211 Telma O que que vocês acharam? Leonora, você estava pensa:::ndo...!

212 Aurélio Eu quase chorei... 214 Nayara Emocionante...

215 Aurélio Do jeito que ele falou, parecia meio triste. 216 Telma Meio triste? Vocês acharam meio triste o poema? 217 Várias crianças Mais ou menos.

222 Ana Elis Tipo, o tom da voz, eu sei que eu não posso ver, mas... 223 Aurélio Pode ouvir.

224 Ana Elis É, posso ouvir.

225 Telma Hm-hum. Pelo tom da voz. E pelo o que está escrito, alguma coisa te deixou achando triste? Ou foi mais a voz mesmo?

226 Aurélio O texto também me chamou um pouquinho a atenção. 227 Telma O texto? Por quê?

228 Aurélio Ah, não sei, coitado do menino, não sabe nem ler, deve ter deficiência.

A percepção das crianças costuma mudar um pouco assim que "O menino azul" começa a ser discutido. Este fragmento já traz elementos de aceitação pelos leitores após o poema ter sido ouvido pela segunda vez. Aurélio inicia a discussão repetindo a afirmação anterior de que um burro não sabe falar (198), mas aceita a sugestão de César de que o menino seria alienígena e, por ser alienígena, teria poderes telepáticos. Assim, na mesma fala Aurélio já começa a imaginar um diálogo mental entre o burrinho e o menino, em que o burrinho vai descrevendo mentalmente tudo o que vê pela frente, exatamente como o menino teria pedido. Quando pergunto às crianças o que elas acharam, e me dirijo a Leonora, que estava pensativa, o próprio Aurélio responde,

dizendo que quase chorou (212), e credita a emoção ao "jeito de falar" do ator (215). Nayara murmura que achou emocionante (214), Ana Elis cita o tom da voz (222), que pareceu meio triste, e Aurélio outra vez se expressa, dizendo ter pena do menino, que não sabe ler, pois "deve ter deficiência" (228). Aurélio voltará a falar no tom da voz de Paulo Autran, atribuindo a emoção que sente à 'voz triste' do ator, na vivência de "As meninas" com esse mesmo grupo, no tópico 4.2.1.1 deste trabalho.

Excerto 3 – Conjecturando sobre o menino que não sabe ler

228 Aurélio Ah, não sei, coitado do menino, não sabe nem ler, deve ter deficiência.

230 Kaíque Ele não sabe nem o nome dele, aí a professora escreve o nome dele pra ele copiar...

231 Aurélio Ele não sabe nem o nome da rua...!

233 Kaíque Aí a professora escreve o nome dele pra ele copiar, tipo, como é, ele faz aquelas coisas lá que eu esqueci o nome, que a professora faz uma letra e ele tem que copiar... 234 Aurélio Caligrafia.

235 Kaíque É. Aí a professora põe tipo uma palavra grande, aí o menino que não sabe ler, vai escrever, tipo, em japonês. 236 Aurélio Vai escrever tipo assim: "Chauá aiá aiá dabá..."

Aurélio e Kaíque encetam um tipo de diálogo em que ambos concordam que o menino está em situação desfavorável por não saber ler. Kaíque imagina que mesmo a professora escrevendo em letras garrafais na lousa, o menino vai copiar errado, e as letras sairão "tipo, em japonês" (235), o que interpretei como "garranchos", já que caracteres japoneses são indecifráveis para Kaíque e para as outras crianças desse grupo. Neste fragmento não fica claro que tipo de "deficiência" Aurélio atribui ao menino, e cheguei a pensar que ele queria dizer "dificuldade" não "deficiência". No decorrer da vivência, porém, as crianças (primeiro Ana Elis e depois Kaíque) passaram a se referir à deficiência citada por Aurélio como algum impedimento físico ou mental, e o sentido de deficiência acabou se embebendo dessa conotação, como veremos em excertos futuros.

Um ponto interessante que poderia ter sido explorado neste fragmento é a menção ao nome do menino por Kaíque, quando este diz, sobre o menino: "ele não sabe nem o nome dele" (230). Achei que Kaíque se referia ao fato de o menino não saber ler, como Aurélio acabara de salientar, mas talvez Kaíque tivesse alguma interpretação para o "Azul" que não foi devidamente explicitada: "Azul" poderia ser, por exemplo, apenas um modo de identificar o menino, não o nome, como quando se diz "a menina de óculos" para identificar a menina cujo nome se ignora. Seja como for, as menções de

Kaíque quanto ao menino não saber o próprio nome mereciam ter sido investigadas. Talvez rendessem um debate sobre se 'azul' seria nome, ou não; e, não sendo, o que representaria. As crianças discutirão o azul novamente, mais tarde, mas já será outro momentum.

Excerto 4 – Estranhamento quanto à forma do texto

244 Aurélio Sabe o que eu não entendo? É por quê que no texto tem que ter tanta... (a linha é tudo igual assim).

245 Telma Hã? Como assim?

247 Aurélio Tipo assim, eu acho que tinha que ser na mesma linha. 248 Telma Ahhh! Olha, ele tá estranhando porque vai mudando de

linha, ao invés de ficar tudo na mesma linha, por que será?

249 Leonora Porque é um poema.

250 Telma A Leonora falou que é por que é um poema. Como assim, Leonora, explica?

251 Leonora Poema não vai tudo numa linha só. Só texto.

252 Telma Geralmente o poema vai mudando de linha? ((ela faz que 'sim' com a cabeça)). E além de mudar de linha, tem alguma coisa que te chamou a atenção?

253 Leonora Rima.

254 Telma Rima? Onde você viu rima, me fala. 255 Leonora “Passear, conversar”.

257 Leonora “Dizer, aparecer”. 259 Leonora “Inventar, mar”.

260 Aurélio Ô!

262 Leonora “Jardim, fim”. 264 Leonora “Escrever, ler”.

265 Telma Isso, muito bem. Vocês tinham notado isso também?

266 Aurélio Eu, sim.

268 Valéria É, mais ou menos.

269 Telma Mais ou menos? Vocês gostam? O que vocês acham, fica mais legal?

270 Sophie É, fica.

271 Nayara Dá mais vida ao poema.

272 Telma Oi? Dá mais vida ao poema? Você gosta mais? 273 Janaína É, eu também gosto de rima.

Por um momento, a condição do menino é deixada de lado e o grupo discute a forma do texto: Aurélio diz estranhar por que não foi tudo escrito na mesma linha, e Leonora, de fala tímida e suave, explica que "poema não vai tudo numa linha só" (251). A pedidos, Leonora também destaca todas as rimas que encontrou: "passear, conversar" etc. (255-264). Outras crianças dizem gostar de rimas, e Nayara enfatiza que rima "dá mais vida ao poema" (271). Pergunto se as crianças tinham notado as rimas, e Valéria responde "mais ou menos" (268). É fato que as rimas desse poema, ocorrendo entre o segundo e o quinto versos de cada estrofe, não são muito pronunciadas, mas interpretei essa 'não percepção' inicial (por parte de Valéria e de outras crianças), como indício da maestria da autora, que soube deixar a linguagem próxima da fala, e também como indício da arte do ator, que fez o mesmo. Vale lembrar que Rebeca, do Grupo 1, até mesmo viu o poema como um "desabafo" do menino (Excerto 10 do tópico 4.1.1.1).

A conversa é interrompida por um temporal, que Aurélio classifica de "tsunami" (276). Depois de algum burburinho, retomamos a discussão sobre o poema, como será visto no próximo fragmento.

Excerto 5 – O burrinho é companheiro e ensina ao menino o que ele não sabe

285 Telma Por que vocês acham que ele quer tanto esse burrinho? Qual a ideia de vocês?

288 Ana Elis Eu acho que, tipo, ele nasceu com deficiência e, tipo, ele deve entender o burro, ele fala alguma coisa na mente dele e o menino entende. Aí ele iria querer o burrinho, tipo, o burro que vive na mata sabe mais as coisas e ele não sabe. Então o burro ensina.

289 Telma Hm-hmm. Pode ser, sim. E aí o burro é tipo um companheiro dele, é isso?

290 Ana Elis É, tipo um irmão, mais ou menos.

292 Aurélio Professora, eu também acho que esse menino queria o burrinho, porque a mãe e o pai dele devem trabalhar bastante e também ele deve se sentir meio sozinho... Ele quer um burrinho pra ter um bicho de estimação que obedeça, porque o burro é mais inteligente do que... porque quando as pessoas chamam assim... quando as pessoas me chamam de burro, eu sempre falo: “Obrigado!” e aí ela fala: “Mas eu te chamei de burro!”, aí eu: “Você sabe que o burro faz parte de um dos animais mais inteligentes do planeta, né?”

302 Ana Elis Aquilo que o Aurélio falou, tipo um companheiro, porque o pai trabalha muito com a mãe e aí o menino fica sozinho e ele precisa de uma companhia, né?

303 Kaíque Pra mim é tipo assim, ele é deficiente, aí na escola ele tipo sofre bullying porque... finge que tem doença nas pernas, aí os meninos ficam zoando dele porque ele não sabe jogar futebol... Aí ele quer ter um amigo, só um amigo, por isso ele quer ter um burrinho, porque os amigos da escola não ligam muito pra ele. Aí ele quer ter um burro, um animal pra ele cuidar.

304 Telma Você acha que ele sofre bullying e aí ele não tem amigo? 309 Kaíque É. Por isso ele não fala, porque senão... Na verdade é assim, porque o burro não fala, aí o burro também não iria falar mal dele, mesmo se ele falasse.

310 Telma Acontece muito na escola, bullying, e essas coisas? 311 Crianças Acontece!

313 Aurélio Professora, na minha outra escola, né, um menino mal me conhecia, ele já puxava minha blusa, tinha que ir sem cueca pra escola se não ele me dava cuecão e me

pendurava no varal.

314 ((risos))

315 Kaíque Meu amigo, ele ficava zoando um menino lá, não era na escola, era na rua, aí o menino se escondia e pegava ele pela cueca e levantava ele até lá, aí ele: “Me solta! Me solta!”.

A chuva continua, mas deixa de ser novidade, e o zum-zum-zum na sala arrefece um pouco. Aurélio e Kaíque voltam a fazer brincadeiras, e então pergunto ao grupo por que motivo eles acham que o menino quer tanto o burrinho (285). Ana Elis retoma o argumento de Aurélio sobre o menino ter deficiência (228) e o associa a um comentário anterior, também feito por Aurélio (198), que por sua vez havia se inspirado num comentário feito por César (190). Recapitulando: César havia sugerido que o menino azul seria alienígena, e Aurélio sugerira que, por ser alienígena, ele conseguiria ler a mente do burrinho. Ana Elis aparentemente descarta a característica extraterrena (atribuída ao menino por Aurélio e César) e faz uma associação direta entre deficiência e telepatia: por ter nascido com 'deficiência', o menino entendia as coisas que o burrinho falava "na mente dele" (288). Ana Elis também acrescenta que o burro "que vive na mata sabe mais as coisas" e pode ensinar ao menino.

Primeiro, é curiosa a associação que ela faz entre 'deficiência' e 'telepatia'. Naquele momento não perguntei a ela a que tipo de deficiência ela se referia, mas podemos conjecturar: o senso comum ensina que as pessoas que têm um sentido prejudicado aguçam mais os outros sentidos, então é possível que Ana Elis, a par desse conhecimento, tenha associado 'capacidade telepática de falar com animais' a 'maior

capacidade mental', e se o menino tinha alguma incapacidade física (ela diz que ele "nasceu com deficiência"), faria sentido ele aguçar alguma outra capacidade. E foi o que houve: segundo Ana Elis, o menino aprendeu a ler a mente do burrinho. Já uma possível explicação para o burrinho "ser da mata" me parece menos especulativa: burros são animais ligados ao agreste, e boa parte dos desejos do menino enumerados no poema tem sintonia com a natureza – flores, montanhas, rios, bichos, mar, jardim – por isso me pareceu convincente que o burrinho, em conexão com a mata, soubesse mais sobre coisas da natureza e pudesse ensiná-las ao menino.

No entanto, em lugar de perguntar a Ana Elis se o burrinho então seria um tipo de "professor" para o menino (o que teria certa lógica, já que ela falou em "ensinar"), perguntei se ele seria um "companheiro" (289) do menino. E eis que ela responde: como se fosse "um irmão" (290). A literatura é rica em histórias de amizades estreitas entre bichos e crianças, e acho que faz parte do inconsciente coletivo a noção de que crianças e bichos comunicam-se uns com os outros de um modo todo seu, num tipo de irmandade misteriosa, e Ana Elis pode ter feito uso dessa noção, ainda que de maneira intuitiva. Ela usa o argumento que lhe parece razoável – a comunicação telepática entre menino e burro – e descarta o que lhe parece supérfluo – a origem extraterrena do menino. Se o burro "que vive na mata" pode ser "um irmão" do menino, o menino não precisa ser alienígena para se comunicar com ele: um seria tão silvestre quanto o outro.

Na sequência, nesse mesmo fragmento, Aurélio considera que o menino quer o burrinho porque seus pais trabalham bastante e ele se sente sozinho (292). Ana Elis concorda: os pais do menino devem trabalhar muito, o menino fica "sozinho", e o burrinho seria sua "companhia" (302). A solidão do menino é motivo para ele buscar o burrinho, numa interpretação semelhante à feita pelas crianças do Grupo 1.

Kaíque absorve a sugestão de Aurélio sobre o menino azul ter "deficiência". Para Kaíque, essa deficiência seria alguma "doença nas pernas" que o impediria de jogar futebol. Kaíque então imagina que, por isso, o menino sofre bullying na escola, o que faz com que ele se volte para o burrinho, buscando nele o amigo que lhe falta (303). Kaíque parece também aderir à ideia de comunicação telepática entre o menino e o burro, e sugere que esta é uma das qualidades do animal: como o burrinho não fala, não falaria mal do menino também (309). Em outras palavras, ao menos o burrinho não faria bullying com o menino.

É interessante a ênfase que Kaíque dá quando comenta a falta que o menino sente de um amigo: "ele quer ter um amigo, só um amigo" (ao menos um amigo?) e depois, "ele quer ter um animal para ele cuidar". O menino quer o burrinho para não ficar sozinho, mas a amizade com o burro também daria um propósito à vida do menino: ele teria um amigo a quem cuidar.

Vale observar também o uso que Kaíque faz do verbo "fingir": ele o usa como "imaginar", "supor", "fazer de conta", sem a noção negativa de falsidade. Isto é, quando Kaíque diz "finge que tem doença nas pernas" (303), ele não está nos dizendo que o menino 'finge' ter uma doença nas pernas, mas está nos convidando a 'imaginar' ou 'supor' que o menino tem uma doença nas pernas. Esse uso de 'fingir' como 'supor' surgirá novamente em falas posteriores do garoto: nos turnos 392 e 564, Excerto 12.

Como Kaíque havia associado "bullying" e "escola" ao falar que os colegas do menino azul "ficavam zoando dele", arrisquei perguntar se acontecia muito bullying na escola (310). Todos respondem que sim (311). Aurélio espontaneamente conta sobre o bullying de que era vítima na antiga escola (313), e Kaíque conta de um amigo que sofria bullying na rua onde morava (315). Percebi que minha pergunta levara a outras instâncias e tentei trazer o tema de volta ao poema, perguntando se todos achavam que o menino azul sofria bullying, e se poderia ser outra coisa, ou não.

Excerto 6 – Estranhamento sobre o azul: I

319 Telma O que vocês tinham pensado antes da ideia do bullying? Ou vocês já tinham pensado isso logo?

320 Aurélio Eu tinha pensado isso logo. 321 Telma Pode ser outra coisa, ou não?

322 Crianças Pode.

324 Ana Elis Pode ser que ele se sinta sozinho. 325 Sophie Ele é azul...

326 Telma "Ele é azul?"... Aí se ele é azul, o que acontece? 327 Sophie Ele pode... Ah...! ((risos))

329 Telma Sophie... É Sophie, né? Você falou que ele É azul e aí...? por ele ser azul, ele é diferente, é isso?

331 Aurélio Mas todo mundo é diferente. 332 Valéria Se fosse igual...

333 Ana Elis Mas ninguém é azul.

335 Janaína Pessoa azul pode... ele não pode ter amigo, porque é diferente dos outros.

343 Ana Elis Bom, eu achei um pouquinho estranho, porque... "menino azul"... a família dele poderia ser azul, por gerações. 344 Telma Você acha que por gerações a família dele é azul? 345 Ana Elis Sim, aí por ele ser azul, na escola ninguém aceitava ele

porque achava que era má influência e tal... Aí contava para os pais e os pais não gostavam, falavam pra ficar longe, mas aí como os meninos não iam muito com a cara dele, os meninos ficavam tirando sarro dele, e tal.

A ideia de que azul seria a cor da pele do menino tinha vindo à tona no primeiro momento, quando César sugeriu que o menino parecia "alienígena, ele é azul" (190), e Aurélio concordou dizendo "só faltou ter antenas" (192). As discussões subsequentes abordaram outros aspectos do poema, e agora, ao falar em doença nas pernas e em bullying, o azul volta à baila, após a menção de Sophie de que "ele é azul" (325). Como a discussão sobre o azul brotou da menção ao bullying, parece clara a conexão que a garota faz entre o bullying e o azul. Sophie, porém, hesita em levar o raciocínio adiante (327) talvez por antever a associação que se desenhava. Eu mesma acabo precipitando o raciocínio de que "azul" é "diferente" numa pergunta a Sophie (329), e ela concorda (330).

Logo em seguida as crianças começam a argumentar e contra-argumentar: Aurélio pondera "Mas todo mundo é diferente" (331) e Ana Elis argumenta "Mas ninguém é azul" (333). Se tratarmos "todo mundo" e "ninguém" como referências à humanidade, e cada afirmação como um conjunto, os elementos do conjunto "Todo mundo é diferente" seria composto de toda a espécie humana, incluindo o menino azul. No entanto, se a este conjunto adicionássemos a restrição "mas ninguém é azul", ou seja, "Todo mundo é diferente, mas ninguém é azul", esse conjunto seria composto exatamente dos mesmos elementos do primeiro conjunto, isto é, toda a espécie humana, excluído, porém, o menino azul, uma vez que as crianças o imaginaram como "sendo" azul. Somos todos diferentes, porém "mais diferente" é o raro menino azul, como se vê na fala de Janaína: "Pessoa azul... ele não pode ter amigo, porque é diferente dos outros" (335), ou seja, por ser azul, ele estaria/seria excluído. Até aqui, as crianças parecem estar esboçando o motivo para o menino querer um burrinho como amigo, e esse motivo seria decorrente da rejeição sofrida, por "ser" azul.

"família do menino poderia ser azul, por gerações" (343). A menina intui um estigma quando mapeia os meandros do preconceito: "por ele ser azul, na escola ninguém aceitava o menino porque achava que era má influência". Tal estigma, ao invés de ser desfeito pelos pais dos colegas do menino azul, é retroalimentado por eles. Segundo Ana Elis, quando ouviam falar do menino azul, "os pais não gostavam, e falavam [para os filhos] pra ficar longe". Tal atitude dava o aval para rejeitar o menino e a decorrência