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4 VIVÊNCIAS NO BRASIL E NA INGLATERRA

4.1. Os meninos (azuis) e os burrinhos

4.1.1.2 Síntese e discussão dos resultados de 'O menino azul': Vera

Esta foi a primeira vivência do Pensar Alto em Grupo que fiz com o "O menino azul", e mesmo ciente de que o poema poderia gerar diferentes leituras, eu me surpreendi com a multiplicidade de ideias que foram surgindo na tentativa de explicar tanto o azul do menino quanto o motivo de ele não saber ler. Para o caso do azul, algumas crianças se fixaram em dados concretos, como Rebeca, que reflete que o menino pode ter "sentado num balde de tinta azul" (167); Isadora, que falou em maquiagem (278); Joana, que achou que ele teria a pele tão branca que as veias azuis apareceriam sob ela (279); Olavo, que disse que azul poderia ser o sobrenome dele (330), ou talvez ele use roupas azuis (365); e Fred, que cogitou de o menino ser um

smurf ou um "cara do comercial da Tim" (54). Essas ideias concretas convivem com

hipóteses metafóricas, como a de Dominick, que antes de argumentar que "o menino ser azul significa que ele é um menino puro" (285 e 293), havia dito "mas não está falando definitivamente que ele é azul" (76); e também com a sugestão de Ernesto, que disse que "o texto se chama menino azul porque ele é um menino diferente dos outros" (292); além de hipóteses mais circunscritas ao gênero fantasia, como as de Thayná, para quem o menino pode ter ficado azul "de tanto ficar no mar" (290), ou por "ser feito de água azul" (349).

Houve também diferentes explicações para o fato de ele não saber ler: para Isadora, ele não sabe ler porque "nunca estudou" (301); para Dominick é porque ele mora no campo, onde "não tem nenhuma escola perto" (304); para Ernesto, porque talvez ele seja "abandonado" (303). Joana elaborou uma explicação mais complexa ao associar a incapacidade de o menino ler ao bullying, aludindo à cor azul: por ele "não ser igual à gente" (331), ele sentiria vergonha e teria receio de ser ridicularizado, se frequentasse uma escola.

Outra explicação para o menino não saber ler – a de que ele seria estrangeiro – foi construída em conjunto pelo grupo, como a seguir: após Joel se dar conta que o menino queria um burrinho para este ler para ele (354), Ernesto concluiu que o menino queria que o burro "interpretasse para ele" (359); dessa constatação, e da sugestão de Adrielly de que o menino teria apenas quatro anos (410), Olavo sugeriu que alguém então havia escrito tudo aquilo em nome do menino (412); disso, e da ideia de que o menino tinha quatro anos, Dominick inferiu que o menino teria escrito uma "porcaria de letra" (garranchos infantis?), e alguém teria traduzido essa "língua estranha" para o português (414); Fred então sugeriu que a "língua estranha" teria sido traduzida para várias outras línguas antes de chegar ao português (415), o que me fez pensar que a "língua estranha" sugerida por Fred seria não um linguajar infantil (como Dominick havia proposto), mas uma língua estrangeira de fato. Ernesto deve ter pensado o mesmo, pois ele assume que o menino é estrangeiro ao propor que ele talvez não saiba ler na nossa língua, mas saberia na língua dele: "Talvez seja isso, o menino que não sabe ler por causa da língua dele. Vai saber se ele veio pra cá e não sabia essa língua?" (422), o que leva as crianças a concluírem que "O menino azul" teria sido traduzido: ou de uma língua estrangeira (429 e 430), ou de uma linguagem infantil "gugu dadá" (432).

Entremeada a essas discussões, deu-se a discussão sobre o motivo de o menino querer um burrinho, gerando a hipótese mais constante e de maior consenso nesta vivência – o menino é sozinho e quer um burrinho para ser seu amigo – à qual aderiram sete crianças. A primeira criança a sugerir a solidão do menino foi Joana: o menino quer o burrinho "para passear", para "não ficar sozinho" (84); logo secundada por Dominick: para ele não ficar sozinho" (87). Pouco depois Rebeca se pronuncia de maneira semelhante: "ele quer o burrinho como companhia, como amigo" (94); e então Ernesto adere à mesma hipótese: "falta de companhia, amigos ele talvez não tenha" (100).

A conversa se encaminha então para a novela "Carrossel" e "amizades por interesse", como visto no Excerto 3, até o turno 241. Quando o poema volta à baila, Rebeca reitera sua percepção de que o menino é sozinho: "ele é uma pessoa muito sozinha, não tem apoio do pai nem da mãe, porque, se ele tivesse, não estaria tão sozinho, querendo um burro..." (243). Um pouco depois, é Dominick que reitera o que já havia dito sobre o menino ser sozinho, "um menino inocente, solitário" (293), e atribui o azul do menino à sua pureza. Ernesto reitera a própria opinião anterior ao sugerir que o menino nunca estudou porque é "abandonado" (303). Joel demonstra concordância com a hipótese da solidão: "ele queria um burrinho, porque ele se sentia muito sozinho e queria alguém pra conversar, porque ele se sentia muito carente" (316). Fred também concorda, e replica parte do que os amigos disseram: "o menino só quer um burro pra fazer companhia pra ele; se ele for pra uma escola, o burro ensinar ele a fazer lição de casa, a ler, a escrever" (398), e Isadora acrescenta: "ele queria um burro, porque não tinha ninguém nessa cidade, ele queria apenas uma companhia, pra conversar" (399).

Como vimos, sete das dez crianças desse grupo atribuíram a vontade do menino de ter um burrinho à falta de amigos. Quanto às outras três crianças, as reações diferiram: Adrielly logo de início estranhou o menino querer um burrinho, como ocorre com vários leitores, mas enquanto a maioria acaba penetrando na história com o correr da discussão, ela aparentemente não se deixou convencer pelas ideias debatidas pelos colegas. Já Olavo gosta muito de desenhar. Assim, mal terminou a leitura silenciosa, ele já começou a dizer que o burrinho queria que desenhássemos (48); quando instado a falar, concordou com o que os colegas haviam dito sobre o menino: "ele não sabia ler e queria um burrinho pra interpretar pra ele", mas não tocou no tema "solidão". Thayná demonstrou ter outro tipo de preocupação com o menino: ela o viu como habitante de um mundo marinho, e imaginou que ele fosse feito de água azul (349), indício de que a incongruência que mais lhe tocou talvez tenha sido o azul do menino, que ela interpretou como sua cor e continuou buscando explicações nesse sentido. Se o menino era aquoso, decerto precisaria de um animal terrestre para se deslocar fora da água, e como na imaginação de Thayná ele "não tinha órgãos", pois era feito de água azul, podemos especular que, por não ter órgãos, talvez não se sentisse sozinho, pois não teria emoções? (349)

Quando comecei as vivências com as crianças brasileiras lendo os originais de Cecília Meireles, as versões para o inglês já estavam prontas, mas minhas reflexões sobre elas continuaram, e passaram a se dar em função dos dados gerados pelas leituras feitas pelas crianças brasileiras também. Algumas dessas reflexões motivadas pelas vivências são descritas nos dois próximos parágrafos. Vale lembrar que até então as traduções para o inglês haviam sido feitas apenas com as perspectivas minha e de Sarah, avaliadas e comentadas pelas perspectivas de amigos e consultores native speakers, todos adultos. Com as vivências no Brasil, o Pensar Alto em Grupo estava me dando um pouco da perspectiva infantil na recepção dos poemas-fonte.

O fato de as crianças do Grupo 1 não terem pensado que o menino poderia ser muito jovem para ir para a escola (fizeram isso por alto, apenas depois que perguntei) me fez ver que a tradução do último verso "ao Menino Azul que não sabe ler" como "to the Blue Boy who cannot yet read", talvez direcionasse as crianças estrangeiras a concluir, em função do uso de "yet", que o menino era muito jovem para ir para a escola. Vejamos: em retrotradução, o verso citado torna-se "ao Menino Azul que ainda não sabe ler", como discutido no Tópico 2.2.1. Com a inclusão de "ainda" (um tipo de "chave futura"), havia o risco de nossa leitura de tradutoras adultas se impor, isto é: se o menino ainda não lê, quer dizer que no futuro ele lerá? Se esse raciocínio se estabelecer, ele pode rapidamente conduzir as crianças a concluírem que o menino ainda é novo e ainda não entrou na escola para aprender a ler, mas vai entrar. A maioria dos adultos faz essa leitura e é uma leitura evidentemente válida, mas se os leitores estrangeiros pensassem imediatamente nessa solução induzidos pelo "ainda", estaríamos tirando deles a possibilidade de encontrar outras explicações para o fato de o menino não saber ler, como fizeram as crianças brasileiras. Por isso, Sarah e eu decidimos em comum acordo tirar o "yet" e mudar a tradução do último verso para "to the Blue Boy who doesn't know how to read", evitando entregar nossa interpretação adulta de bandeja.

Antes de trabalhar com este poema, eu achava que as crianças fariam uma leitura mais festiva dele, destacando a curiosidade do menino e seu desejo por aventuras. Fiquei surpresa com o foco na solidão, abandono, e falta de amigos, ainda que o tom geral da leitura neste grupo não tenha sido preponderantemente triste. Tendo em conta que o que levou as crianças a pensarem em solidão está inscrito no poema – expresso no desejo do menino por um burrinho que o acompanhe sempre – comecei a supor que

minha preocupação com a tradução de "Azul" por "Blue", talvez fosse exagerada. Afinal, se levadas pelo desejo do menino por um burrinho, as crianças estrangeiras pensassem, como as brasileiras, que o menino era solitário, manter ou omitir Blue talvez não fizesse muita diferença na impressão causada pelo poema.

Por fim, vale destacar que a leitura de "O menino azul" feita pelas crianças do Grupo 1 se concentrou mais nas lacunas e incongruências e não chegou a mencionar as rimas ou outro atributo poético relacionado à forma. Embora em dado momento Dominick tenha contado o número de estrofes (351), estávamos todos envolvidos discutindo o fato de o Menino Azul não saber ler, e acabamos não aproveitando o momento para discutir algo sobre a forma. Rebeca chegou a sugerir que a história que eles tinham lido não parecia um "poema narrativo", e sim um "desabafo" do menino: "deu a impressão que foi ele mesmo que escreveu" (420). Essa observação comprova o acerto da autora quanto ao registro, que soou natural como uma fala infantil ao ouvido das crianças. Acabei não colocando o áudio do poema gravado na voz do Paulo Autran para eles ouvirem, e a audição em voz alta se resumiu a uma única leitura feita por Isadora que, embora fluente e bem feita, parece ter sido insuficiente para despertar os sentidos infantis para a métrica e a rima, tão suaves nesse poema.

Rebeca abordou de forma precisa a ironia final (367), sobre o menino que não sabe ler e ainda assim solicita que escrevam para ele com informações sobre um burro que poderia ser seu leitor. No entanto talvez só ela tenha se beneficiado da leitura, pois as outras crianças estavam cansadas e não quiseram dar prosseguimento às discussões.

Vimos que a vivência sofreu com algumas turbulências, mas o resultado geral foi bem satisfatório também no sentido pessoal e social, pois as crianças voltaram a se entender, talvez com maior lucidez do que antes, ao saírem das turbulências (que Ernesto chamou de "interferências") mais conhecedoras de si mesmas e de quem estava à sua volta.

4.1.2 'O menino azul': vivência com grupo Vera 2

Conheceremos agora outro grupo de crianças, também alunas da Escola Municipal Vera Lúcia Fusco Borba, por meio da leitura que fizeram de "O menino azul". Este grupo foi o segundo com que trabalhei "O menino azul", e por praticidade será chamado de Grupo 2, ou "Vera 2" no âmbito deste trabalho. Esse mesmo grupo de crianças também fez uma leitura do poema "As meninas", cuja vivência encontra-se analisada neste trabalho no Tópico 4.2.1.

Da vivência ora apresentada, participaram seis meninas e três meninos, que se sentaram em volta da mesa na seguinte sequência: Leonora (10 anos), Ana Elis (9), Nayara (10), Kaíque (9), César (9), Sophie (9), Janaína (9), Valéria (9) e Aurélio (10). Léo, décimo integrante do Grupo 2, não participou desta vivência, pois faltara à escola nesse dia, mas esteve presente na vivência de "As meninas", lido na semana seguinte.

Comecei a sessão me apresentando novamente, e perguntando se eles se lembravam do nome do projeto e o que entendiam pelo nome (que lembraram!) Pensar Alto em Grupo, coisas que eu já havia feito quando apresentei o projeto na sala de aula, mas que eu sempre retomava por ocasião da primeira vivência de um grupo novo. A seguir, eles também se apresentaram, dizendo o próprio nome e a idade. Esse trecho introdutório, que durou até eu lhes entregar as cópias do poema impresso (turno 177), foi entremeado de brincadeiras feitas por Aurélio, um dos mais extrovertidos dessa turma, que chegou a dizer que estava "agitado", mas não podia demonstrar, porque ficava "meio louquinho" (20), provocando riso nos colegas. Nesse trecho inicial, as crianças também falaram sobre as leituras feitas em sala quase diariamente pela professora, focadas, naquela época, nas lendas do folclore brasileiro.

Enquanto conversávamos, peguei o segundo gravador com o áudio de "O menino azul" e mostrei para eles explicando que ali havia gravações de "alguns poemas e textos que um ator leu" (154). Assim que ouve falar em "poema", Aurélio declama de cabeça um trecho de "Leilão de jardim" (157), também publicado na coletânea Ou isto

ou aquilo, cuja autoria ele atribuiu a "Maria Meireles", sendo prontamente corrigido por

Leonora: "Cecília Meireles" (162). Ao ouvir esses comentários, imaginei que, por já conhecerem "Leilão de jardim", eles talvez já tivessem lido "O menino azul", e comento então que, mesmo que eles já tivessem lido, não haveria problema, nós o discutiríamos

mesmo assim. César então diz que Levi, participante de outro grupo, já tinha mostrado para ele (172). Eu sabia que César estava enganado, pois o grupo de que Levi fazia parte havia lido "Passarinho no sapé" (e, na sequência, "O cavalinho branco"). Nayara (174) então esclarece que Levi havia mostrado para eles "o do pé", referindo-se a "Passarinho no sapé", cujos primeiros versos são "O P tem papo, o P tem pé. É o P que pia? Piu!", e Janaína logo confirma: "É, é o do pê! É o do pê!" (175). As outras crianças então começam a ler "O menino azul" e confirmam que não o conhecem. Considerei ótimo sinal as crianças conversarem entre si sobre os poemas lidos nas vivências, no caso, "Passarinho no sapé", uma vez que despertar o interesse por leitura em geral, e por poesia, em particular, é um dos objetivos do Pensar Alto em Grupo, e também o meu. Assumi que os comentários de Levi sobre o poema "do pê" certamente não tinham sido negativos, do contrário as crianças não estariam empolgadas, ou "agitadas", ou "meio louquinhas", como tinha dito Aurélio.

As crianças fizeram interessantes aportes à leitura de "O menino azul", especialmente sobre as incongruências, buscando explicações para o azul, e motivos para o menino não saber ler, com algumas ideias semelhantes às aportadas pelo Grupo 1. No meio da vivência uma forte chuva caiu, provocando intenso barulho, pois atingia uma junção metálica afixada no telhado do primeiro andar, logo abaixo da nossa janela – lembrando que ocupávamos a Sala de Reforço, que ficava no segundo andar da escola. A chuva e o intenso barulho causaram dispersão por alguns instantes, mas logo tudo voltou ao normal e continuamos a discussão, com a chuva de fundo. Quase no final da vivência, Kaíque explicará o azul do menino como decorrente da chuva que um dia ele teria tomado ao ir para a escola – "aí ele tomava frio e ficava azul".

O tema bullying veio à tona reiteradas vezes ao longo da vivência. As crianças demonstraram consciência e preocupação, e confidenciaram entre si sobre práticas de bullying que haviam sofrido ou que tinham visto ser infligidas a amigos. Vejamos então, a seguir, os excertos mais significativos em termos da interpretação feita pelas crianças do Grupo 2, lembrando que a transcrição integral está disponível no Apêndice.