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3 O PENSAR ALTO EM GRUPO

3.4 Os Grupos do Pensar Alto

3.4.2 Grupos na Inglaterra

3.4.2.2 King David Primary School

A ideia de realizar vivências na escola King David, também chamada de King

David Junior and Infant School, em Birmingham, surgiu quando descobri que esta tinha

sido a escola primária de Sarah Rebecca Kersley, minha parceira nas versões dos poemas para o inglês. Sarah não nasceu em Birmigham, mas residiu na cidade no fim da

década de 1970. Assim, alguns meses antes de eu viajar à Inglaterra, entrei em contato com o diretor da escola, Steve Langford, e lhe enviei meu projeto. Ele se mostrou interessado na ideia de leitura de poemas em grupo, e especialmente contente e surpreso com a notícia de uma ex-aluna viver no Brasil, ter se tornado poeta, e ser uma das tradutoras dos poemas em questão. Mais contente fiquei eu com sua calorosa acolhida, e o pleno apoio que obtive dele e da professora do Y5, Caroline Nash, que por iniciativa própria organizou para que os grupos fossem equilibrados quanto ao gênero, com cinco meninas e cinco meninos em cada um, e se desdobrou para encaixar as vivências no pouco tempo de que dispúnhamos. Ocorre que quanto terminei o estágio em Cambridge faltava apenas uma semana para eu voltar para o Brasil, e Caroline se dispôs a remanejar as atividades em sala de aula para absorver as vivências, que foram então realizadas em três dias consecutivos, na primeira semana de dezembro de 2016. Pois assim como nas outras escolas, também na King David as crianças participantes foram deslocadas da sala de aula para outro recinto, onde a interferência de ruído externo fosse mínima, e suas vozes pudessem ser gravadas mais claramente. Mas, à diferença das outras escolas, onde as vivências foram feitas uma vez por semana e ao longo de um mês, na King David elas se concentraram ao longo de três dias consecutivos.

Na King David nós ocupamos o SEND room, sala reservada para ministrar aulas especiais a crianças que apresentam dificuldade no aprendizado. Nas dimensões e no mobiliário, o SEND room mantinha semelhanças com a sala de reforço da EMEF Vera Lucia Fusco Borba: além das mesas e cadeiras, a sala era mobiliada com armários onde eram guardados fichários, livros e material escolar excedente ou para uso na própria sala, como cartazes coloridos com as letras do alfabeto. Para as vivências, eu aproximava as quatro mesas disponíveis e formava uma grande mesa, no centro da qual era colocado o gravador, e em torno da qual nós nos sentávamos como em um círculo, da mesma maneira como no Brasil. Além da porta de entrada que se comunicava com o hall e refeitório da escola, o SEND room tinha uma enorme porta envidraçada que dava para o jardim dos fundos, e deixava ver um pátio gramado com algumas mesas e bancos de madeira, usados para eventuais piqueniques. O gramado e as árvores que o circundavam, já parcialmente desfolhadas, anunciavam o fim do outono, e davam sinais de que começavam a sofrer com a geada que, naqueles dias, branqueava tudo pela manhã. No horário das vivências, o sol filtrava por essa porta envidraçada, irradiando a sala, porém sua luz incidia diretamente nos olhos das crianças sentadas do lado oposto,

o que lhes causava grande desconforto. Desloquei, então, para perto dessa vidraça, um cavalete branco que estava ali para servir como lousa, e ele passou a servir como anteparo entre o nosso grupo e os raios do sol.

No cavalete alguém havia escrito o nome da sala, com a explicação de seu uso: "Welcome to the SEND room. Some children have Special Educational Needs and/or Disabilities and may need extra help, delivered in different ways..." que pode ser traduzida como "Bem-vindos à sala NEEDS. Algumas crianças têm Necessidades Educacionais Especiais e/ou Deficiências e podem precisar de ajuda extra, proporcionada de diferentes maneiras..." Assim que entravam na sala, as crianças que participaram do Pensar Alto olhavam em volta e depois miravam a mensagem no cavalete. Sempre havia uma ou outra que lia o que estava escrito em voz alta, o que para mim se tornou evidência de que nenhuma delas até então havia precisado entrar naquela sala para ter alguma aula extra.

A King David também pontuou "Good" no relatório de 2016 da secretaria de educação do Reino Unido, o Ofsted report17 (Office for Standards in Education,

Children's Services and Skills). No quesito progresso em fluência leitora, as crianças

foram classificadas como 'acima da média' (above average). Na segunda página desse mesmo relatório18 somos informados que a escola tem um total de 243 alunos (46% meninas, 54% meninos) e que a porcentagem de alunos que não têm o inglês como língua materna é de 47,3%. Ou seja, quase metade dos alunos da King David, ou 115 crianças de um total de 243, não tem o inglês como idioma materno. É um dado impressionante. Segundo o mesmo relatório, a porcentagem média nacional de alunos de escolas inglesas cuja língua materna não é o inglês é de 20%, lembrando que na Thriplow eram 4%.

A King David é uma escola sui generis em vários aspectos, e já foi matéria em jornais locais, como Birmingham Mail19 e nacionais, como o The Independent20. É uma escola pública, mantida pelo governo (voluntary aided school), porém, diferentemente da maioria das escolas públicas inglesas, de tradição anglicana, a King David é de origem judaica, e segue os mesmos preceitos seguidos por outras escolas judaicas ao

17 https://www.compare-school-performance.service.gov.uk/school/103444Acesso outubro de 2017 18https://www.compare-school-performance.service.gov.uk/school/103444?tab=absence-and-pupil-

population

19 http://www.birminghammail.co.uk/news/local-news/king-david-junior-infant-school-6491781 20http://www.independent.co.uk/news/education/education-news/the-jewish-school-where-half-the-

redor do mundo: obedece ao calendário de feriados e celebrações judaicas, mantém uma sinagoga na escola, serve alimentação kosher a todos os alunos, e ministra aulas regulares de hebraico, oferecida como língua estrangeira. A escola também ministra aulas de ensino religioso regularmente. Os alunos judeus frequentam o curso Limudei

Kodesh, em que aprendem os preceitos da prática do judaísmo, e os alunos de outras

religiões frequentam aulas de "Ensino religioso sob a perspectiva judaica", conforme informado no Prospecto21 de Admissão, disponível no site da escola. Esse mesmo documento informa que os pais que não quiserem que o filho frequente aulas de religião devem entregar uma solicitação por escrito à direção.

Aparentemente, são raros os pais que o fazem. As famílias prezam muito o ambiente multicultural e multiétnico da escola e há relatos de famílias muçulmanas que se mudaram para o bairro Moseley Village, onde se localiza a escola, para poderem matricular seus filhos na King David (MARGOLIS, 2007). No relatório da inspeção feita na King David em julho de 2017, disponibilizado no site do Ofsted22 (School short

inspection report), e assinado pela inspetora de ensino Deana Holdaway, a escola é

louvada por seu ethos e pela maneira como lida com os diferentes backgrounds, etnias, culturas e religiões que convivem sob seu teto. Nesse mesmo relatório, a inspetora menciona depoimentos dos pais sobre a escola e destaca alguns, que cito literalmente: "King David’s School is a beacon of how inclusive, progressive and caring a school can be" [A King David é como um farol a nos mostrar como uma escola pode ser inclusiva, progressista e acolhedora]; e "We are very pleased that children from different faiths and backgrounds mix and play so well together" [Dá gosto ver como crianças de religiões e origens diferentes podem se relacionar tão bem e brincar tão bem juntas].

Fundada em 1843 pela congregação judaica de Birmingham, o corpo discente da King David foi 100% judeu até meados da década de 1960. A congregação judaica ainda é proprietária do prédio e demais instalações da escola, mas em 1967 a King David passou a ser mantida pelo município. Desde então, e com o correr dos anos, o bairro Moseley Village, assim como a escola, passaram por grandes transformações, em parte reflexo do crescente número de famílias muçulmanas que têm se mudado para a vizinhança. É comum encontrar mulheres e jovens de hijab, fazendo compras nas ruas

21 http://www.kingdavid.org.uk/index.php/about-us/school-prospectus

do comércio local, onde também se encontram restaurantes que servem tradicionais pratos árabes como malfouf ou homus tahine. Aliás, ser dono de restaurante ou de ponto comercial é uma das ocupações dos pais das crianças matriculadas na King David, entre os quais há também profissionais liberais e autônomos como advogadas, engenheiros, dentistas, cabeleireiras, açougueiros, professoras, motoristas, e donas de casa, entre outras ocupações.

Os critérios de matrícula para a King David continuam a priorizar o acesso de crianças judias, como tem sido desde a fundação da escola, e conforme consta no Prospecto de Admissão23, anteriormente citado. Porém, na ausência de candidatos judeus que preencham as trinta vagas anuais, crianças não judias também são admitidas. E a escola é hoje uma mescla de diferentes etnias, línguas e backgrounds, com maioria absoluta de alunos muçulmanos.

Dentre as crianças com que trabalhei e que compunham o Y5 em 2016, havia uma criança sikh, filha de família de origem indiana, cinco crianças judias, e vinte e quatro muçulmanas, conforme registrado nas fichas de matrícula pelos próprios pais. As famílias das crianças muçulmanas eram oriundas majoritariamente do Paquistão, e em ordem decrescente Somália, Bósnia e Marrocos. Dentre as crianças judias, duas eram de origem britânica, filhas de pais também britânicos, outra era oriunda do Canadá, outra do Irã, e outra tinha pais nascidos no Caribe. No cômputo geral, cerca de metade das crianças não tinha o inglês como língua materna, enquanto a outra metade cresceu bilíngue. Além do inglês, as crianças bilíngues falavam um dos seguintes idiomas: urdu, árabe, punjabi, farsi, bósnio. Um dos meninos, que acabara de emigrar do Marrocos, criou-se bilíngue em francês e árabe, e apenas começara a aprender o inglês. Foi uma presença meiga e querida, ainda que silenciosa. Não ouvi diretamente dele o que ele sonhava ser; um de seus colegas disse que ele queria ser professor, mas uma colega disse que ele queria ser médico. Quanto às outras crianças, muitas queriam ser médicas (ouvi isso especialmente das meninas), artistas, ilustradores, jogadores de futebol, cientistas, professores... Quanto aos passatempos prediletos, alguns gostam de cozinhar, outros de ler, nadar, escrever, jogar futebol, praticar ginástica, brincar de bola, desenhar, cantar, dançar...

Descontados alguns ocasionais habibs e uma ou duas expressões em árabe (até hoje indecifráveis para mim), nós todos nos comunicamos harmoniosamente em inglês. E não fosse a minha dificuldade em pronunciar alguns de seus nomes (e, no erro, ser prontamente corrigida por eles), meu sotaque de brasileira talvez tivesse passado despercebido. Não passou, mas foi aceito com naturalidade, como quaisquer dos outros variados sotaques ali ouvidos.

Além de "The mare and the water", lemos na King David os poemas "The boy and the donkey", "Girls at the window", "Flash flood", e "The little white horse", traduções, respectivamente, dos seguintes poemas de Cecília Meireles: "A égua e a água", "O menino azul", "As meninas", "Enchente", e "O cavalinho branco". Em diferentes ocasiões as crianças demonstraram gostar das atividades de discussão e de ilustração: seja envolvendo-se ativamente nas discussões, seja declamando enfaticamente os poemas, seja expressando-se abertamente – "This is so good!" – ao término da vivência.

Cada história de vida tem sua própria dose de delicadeza e violência, desafio e rotina, assombro e decepção, desatino e conformação; e seu próprio quinhão de eventos internos, subjetivos, que podem ser tão ou mais estrondosos quanto os eventos externos, provocados muitas vezes por instâncias familiares, sociais, políticas, econômicas. O contexto que procurei delinear aqui com traços das escolas e de seus alunos, se tem alguma pretensão é a de prover o leitor com um pouco do que testemunhei, do que pesquisei. Trata-se de um recorte ínfimo de uma realidade infinita que acredito se tornar mais 'definita' quando nos aproximamos dela. Este foi, afinal, o meu intento: aproximar o leitor daquilo que eu vivi; apresentá-lo às pessoas e lugares que entrevi, e conheci, ou que me deram a conhecer. Um instantâneo. Acredito que uma imagem mais clara surgirá das transcrições das vivências que, ao libertar as vozes das crianças, as proverá também de forma e cor e materialidade: um instantâneo encorpado. Não deixará de ser um instantâneo de um pensamento gerado em determinado instante; afinal, "as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas estão sempre mudando", como disse Guimarães Rosa. Conheceremos, assim, um instantâneo encorpado do que as crianças pensaram a respeito dos poemas, ou além dos poemas, ou a despeito dos poemas, quando provocadas por eles. Com o recorte e os traços aqui pincelados, quis jogar alguma luz sobre as interpretações das crianças. Espero desta vez ter sido mais janela que anteparo. Em nome delas.