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2 ERA OUTRA VEZ: A TRADUÇÃO DOS POEMAS PARA O INGLÊS

2.2. Das traduções dos poemas

2.2.3 Um olhar prospectivo: adequabilidade, aceitabilidade

Nunca perdi de vista que o público primordial das versões de Ou isto ou aquilo seriam crianças. Era para elas que eu traduzia. Mas esta é uma das questões chave nos Estudos da Tradução, especialmente em tradução de literatura infantil: que criança é esta que o tradutor imagina e que criança seria aquela que o autor imaginou? Quão distante ela está da criança "real"? Estudiosa de literatura infantil, Cecília Meireles refletia sobre esse público e sobre o que ela considerava uma das complicações para se caracterizar e escrever um livro infantil: "[saber] se a criança não é mais arguta, e sobretudo mais poética do que geralmente se imagina..." (MEIRELES, 1984, p. 30).

O mero debruçar-se sobre a tessitura de Ou isto ou aquilo já nos mostra que a autora tinha a criança em alta conta: considerava-a, sim, arguta e poética, e tratou-a

como tal ao escrever para ela, seguindo sua própria máxima de que "à criança só se devia dar o ótimo". (MEIRELES, 1984, p. 146).

Foi suficiente ter ciência disso para dar os primeiros passos e tentar elaborar as versões de Ou isto ou aquilo, visando também o "ótimo" para as crianças que possivelmente as leriam. Ocorre que há alguns nós a serem desatados e eles se referem à 'distância oceânica' de que falávamos no fim do tópico anterior.

Tomando como modelo o poema "As meninas", e incorporando o papel de tradutora e pesquisadora, eu me vi ao lado do sujeito poético na rua, ao relento, saudosa das meninas que viviam naquela janela; concebi o público leitor como as crianças que vivem do outro lado da janela e de quem o sujeito poético tem saudade. Mas será que as crianças, público leitor preferencial, interpretarão que a pessoa saudosa é um adulto? Ou será que verão essa pessoa saudosa como uma criança também? Será que imaginarão que as meninas são irmãs? Ou imaginarão outro arranjo familiar? Será que gostarão de conhecer essas meninas e se identificarão com quem vive na janela? Como saber? Essa 'distância oceânica' entre línguas e culturas, que ocorre em qualquer tradução interlingual, torna-se mais profunda, no caso da literatura infantojuvenil, em função da distância entre o universo adulto e infantil:

Quem pudesse crescer sem perder a memória da infância, sem esquecer a sensibilidade que teve, a claridade que cintilava dentro da sua ignorância, e os seus embarques por essas auroras de aventuras que se abriam nas páginas dos livros! (MEIRELES, 1984, p. 30) Essa perda da memória do que foi a infância representa um desafio específico da tradução de literatura infantojuvenil; nela, há que se levar em conta a distância interlingual e intercultural, e também a distância vivencial entre o adulto escritor e a criança leitora, segundo João Azenha (2005) em "A tradução para a criança e para o jovem: a prática como base da reflexão e da relação profissional": Essa assimetria, marcada pelas diferenças de experiência e de vivência do mundo real e ficcional é o traço distintivo, por excelência, da literatura infantojuvenil e sua tradução. É sua característica-chave. Outras características importantes, de acordo com Azenha (2005, p. 370), também incluem:

as escolhas de itens lexicais acessíveis à compreensão do público destinatário, o emprego de estruturas sintáticas condizentes com tais escolhas, o diálogo do texto com as ilustrações, os jogos e brincadeiras com a linguagem que marcam o caráter lúdico dessas obras.

Tais características também podem estar presentes nas traduções de outros tipos de texto para o público adulto; porém a assimetria entre esses dois universos – o adulto e o infantil – simbolizada na bagagem de vivências que o tradutor, adulto que é, amealhou ao longo da vida, e que representaria naturalmente uma vantagem na tradução de qualquer outro texto, pode ser tornar um empecilho na tradução de literatura infantojuvenil, exatamente devido ao distanciamento entre o mundo infantil e o adulto. Segundo Azenha (2005, p. 371),

Na produção e na tradução de literatura infantojuvenil, tais recursos assumem uma função de sustentação da assimetria mencionada, ora promovendo o alcance dos objetivos pretendidos para a obra e

garantindo, assim, sua aceitação junto ao público, ora operando em sentido contrário, dependendo da conscientização, em maior ou menor escala, que o(a) autor(a) tem da natureza assimétrica que

marca o processo de escritura de literatura infantojuvenil (grifo nosso).

É o que também nos conta Renata Dias, na dissertação "Traduzir para a criança: uma brincadeira muito séria": a comunicação desigual e assimétrica está presente em todo o processo de produção dessa literatura; enquanto o público receptor é feito de crianças, "o processo de escritura e tradução de livros para crianças e jovens costuma ser sempre feito e intermediado por adultos" (DIAS, 2001, p. 43): adultos escrevem, editam, revisam, traduzem, selecionam e compram obras que serão lidas por crianças.

Cientes dessa intermediação e assimetria, retornamos uma vez mais à questão inicial: Quanto daquela criança arguta, cantada por Cecília, seria conhecimento real? Quanto reimaginação? Quanto projeção? Quanto do que eu, como tradutora, penso ter descoberto sobre essa criança é real? Quanto é inferência? Quanto é projeção?

"É uma dupla projeção", responde João Azenha (2005, p. 378):

No processo de tradução de literatura infantojuvenil, trata-se de uma

dupla projeção: o tradutor trabalha com a (sua) imagem daquilo que

acredita ser a criança – na verdade, também uma projeção – imaginada pelo autor. E o texto traduzido, ao final das contas, pode convergir

para ou divergir da criança imaginada e de seu mundo (grifo nosso).

Se devido a essa dupla projeção o texto traduzido corre o risco de divergir do mundo da criança imaginada, Azenha (2005, p. 372-373) propõe que se recupere a

"noção de interação" – diálogo em que tomariam parte o leitor, o autor, o ilustrador, o tradutor e o editor:

A fim de se escapar desse jogo de projeções, vale a pena recuperar a noção de interação [...] e considerar a tradução de textos para jovens e crianças um processo interativo, pensando-se desta vez no diálogo

entre os agentes desse processo, cada um deles funcionando também

como agente controlador das leituras e projeções dos outros (grifo nosso).

Esse diálogo possibilitaria que o autor e, por extensão, o tradutor, o ilustrador e o editor, tivessem uma melhor compreensão em relação a seu público. Afinal, aqueles que conhecem o universo do seu público, sejam eles escritores, ilustradores ou tradutores, saberão também minimizar os efeitos negativos da assimetria, se assim o quiserem: "O autor/tradutor que conhece e reconhece seu público, sabe que tipo de inferências pode esperar de seu leitor" (DIAS, 2001, p. 44, grifo nosso).

O objetivo claramente não é deslindar tudo para o leitor, deixando a tradução mais explícita do que o texto fonte. Se há lacunas no original que não dependem de algum conhecimento prévio, mas fazem pensar, refletir e inferir, tais lacunas devem ser mantidas. Porém, se tais lacunas se devem a um conhecimento prévio, isto é, se são dados específicos da cultura de origem, partilhados apenas pelas crianças leitoras do texto de origem, tudo leva a crer que elas devem ser preenchidas para não tolher o entendimento do público leitor da tradução. Segundo Renata Dias (2001, p. 45),

Muitas vezes o não preenchimento de uma dessas lacunas ou seu preenchimento errado pode barrar a compreensão de um texto traduzido ou conduzir sua interpretação a um caminho totalmente diverso do pretendido pelo autor original.

Lacunas como essas ocorrem quando o autor faz menção ligeira a canções ou lendas de conhecimento exclusivo das crianças da cultura de origem. A criança da cultura de chegada, por desconhecer tal lenda ou cantiga, não saberá refazer a intertextualidade e inferir o que o autor gostaria que ela inferisse. Em casos assim, é preciso que o tradutor adapte ou recrie, procurando usar uma referência que, dentro do possível, corresponda ao que foi dito na fonte, e que faça sentido às crianças leitoras do texto de chegada. Aliás, como pondera Azenha (2005, p. 379), "a tradução de literatura infantojuvenil é um campo fértil em que o tradutor é convidado, continuamente, a recriar".

A dificuldade está em recriar de tal modo a manter o que há de lúdico no original, sem banalizar (usando soluções rasteiras, infantilizadas e pouco criativas, por exemplo), nem tampouco sofisticar em demasia, fazendo uso, por exemplo, de léxico muito rebuscado ou de estruturas sintáticas complexas, com inversões cansativas. Quanto ao estilo, é interessante observar as preferências estilísticas das crianças, constatadas em pesquisa realizada por Bernhard Engelen7 (1977 apud ZILBERMAN, 1985, p. 51), das quais destaco: "frases relativamente curtas, elos frasais relativamente curtos, poucas frases subordinadas, utilização mínima da voz passiva, utilização mínima do discurso indireto". Para Azenha (2005, p. 380, grifo nosso), o importante é dosar:

De um modo geral, podemos dizer que a linha mestra do tratamento da linguagem na tradução de literatura infantojuvenil está a meio caminho entre a simplificação e uma certa complexidade que garante a acuidade de informações e conceitos.

[...]

Como o público receptor está no centro das questões de tradução de literatura infantojuvenil, não é possível se escapar de uma certa

aproximação com a linguagem do tempo para o qual se traduz, ressalvadas as limitações impostas pelo enredo e pelas brincadeiras com a linguagem da obra a ser traduzida.

Se por um lado o uso do léxico incomum e das inversões sintáticas pode ser justificado em alguns casos, em termos dos resultados fônicos que oferecem, por outro lado esse mesmo uso pode ser contraindicado em função da recepção que certamente dificultam. Em quanto dificultam? Até que ponto as estratégias para obter recursos fônicos não estariam prejudicando o entendimento e, logo, a recepção na cultura de chegada?

O conceito de 'normas' de Gideon Toury talvez lance alguma luz sobre essas questões, antes de continuarmos. Segundo Toury, a tradução é uma atividade governada por normas; e estando na interface entre duas línguas e duas culturas distintas, está sujeita a dois conjuntos de normas de cada lado da interface. Essas normas envolveriam o que é praticado e aceito pela comunidade ou conjunto de pessoas que vivem naquela cultura e usam aquela língua. Um exemplo notório que talvez ocorra a todos é o caso das traduções francesas do século 17, que receberam a alcunha de "belas infiéis",

7 ENGELEN, Bernhard. "Zur Sprache des Kinder-und Jugend Buchs". In: LYPP, Maria (org.) Literatur fur

porque feitas em uma época em que era "normal" que os tradutores franceses procurassem elevar o registro e "embelezar" os textos cujo padrão de fluência, clareza e sofisticação fosse tido como insuficiente, ou não ideal pelos leitores franceses. Segundo a norma da época, a tradução podia ser infiel à fonte se fosse mais bela do que ela.

No capítulo que John Milton dedica às belles infidèles em seu Tradução: teoria

e prática (2010), somos informados que "tradutores franceses, a fim de chegar à clareza

de expressão e à harmonia de som, muitas vezes faziam acréscimos, alterações e omissões nas suas traduções". E mais: "A beleza consistia na eliminação de qualquer tipo de obscuridade". Essa beleza seria mesmo relacionada com a 'busca da felicidade': "um texto belo e puro poderia conferir a seus leitores 'uma alma repleta de beleza, paz e descanso'" (MILTON, 2010, p. 80). Ao analisar as traduções de d'Ablancourt, um dos expoentes do período, John Milton (2010, p. 81) esclarece:

Obviamente, traduzindo para a prosa, d'Ablancourt não utilizava a rima, mas tinha muita preocupação com o ritmo e, muitas vezes, utilizava sentenças ou orações com as doze sílabas do alexandrino para conferir aos textos uma qualidade de nobreza.

Hoje nos 'escandalizamos' com as 'liberdades' que os tradutores franceses se davam quando faziam alterações de toda sorte, entre elas cortes, acréscimos e omissões, mas eles na verdade não eram tão livres assim, pois essa prática de tradução a que se dedicavam era exatamente o que se esperava deles; era a "norma" do período, como podemos inferir também do seguinte parágrafo:

O conceito de equivalência entre os tradutores franceses dos séculos 17 e 18 era muito diferente da nossa interpretação contemporânea do termo. A tradução tinha de proporcionar ao leitor impressão semelhante à que o original teria suscitado, e a pior maneira de fazê-lo seria através de tradução literal, o que pareceria dissonante e obscuro.

Seria melhor fazer mudanças, a fim de que a tradução não ferisse os ouvidos e que tudo pudesse ser entendido claramente. Somente

fazendo essas mudanças, o tradutor poderia criar essa "impressão" semelhante (MILTON, 2010, p. 81, grifo nosso).

Se no século 17 pensava-se o ideal de tradução em termos de reproduzir uma "impressão suscitada" (trecho acima), hoje esse ideal parece mais próximo de uma "ilusão proporcionada", lembrando o conceito de "tradução ilusionista" cunhado pelo pensador Levý (2011, p. 20), cujo objetivo maior é fazer com que o texto traduzido seja visto como um representante do texto fonte na cultura de chegada, proporcionando ao

leitor a ilusão de estar lendo o próprio autor, como discutido anteriormente (p. 31 deste trabalho) . E embora os termos 'impressão suscitada' e 'ilusão proporcionada' nos façam crer que são coisas semelhantes, a maneira de se chegar à primeira é bem diferente da maneira de se chegar à segunda, e as normas que regiam os tradutores franceses no século 17 são bem diferentes das normas que regem os tradutores brasileiros neste começo do século 21.

Como tentei demonstrar anteriormente neste estudo, persigo os princípios de tradução poética praticados por poetas-tradutores contemporâneos (Britto; Laranjeira; Franca Neto; Campos; Lira) que buscam recriar, senão todos os atributos poéticos de um dado poema, ao menos todos quantos forem possíveis, sem descuidar da semântica – sendo essa, a meu ver, a 'norma vigente' para tradução de poesia na atualidade brasileira. Assim, um descuido injustificado na recriação de uma forma poética pode negar à minha tradução o "selo de representante do poema fonte na cultura de chegada", como discutido anteriormente neste estudo.

No entanto, ao ficar atenta aos princípios praticados pelos poetas-tradutores citados, estou agindo de acordo com as normas da cultura de partida, não de chegada, uma vez que estou traduzindo para o inglês, a partir do Brasil, poemas de uma brasileira cuja língua mãe era o português (como o é a minha). Apesar de estar de acordo com as normas no quesito 'reproduzir a forma sem fugir da semântica', estou indo contrariamente a elas no quesito 'direção linguística', pois estou traduzindo na direção contrária ao que é considerado "normal". Segundo a norma vigente, para que uma tradução seja boa, o tradutor deve não só dominar as duas línguas de trabalho, como também traduzir, preferencialmente, da língua estrangeira para sua língua materna (e não o contrário, como venho fazendo neste trabalho, ainda que em parceria com uma tradutora inglesa de origem). Segundo Toury, essa tendência de se alinhar com as normas da língua e cultura de partida no processo de tradução é característica da busca pela "tradução adequada", pela adequabilidade, o que pode engendrar certas incompatibilidades em relação às práticas e normas da cultura de chegada, especialmente aquelas não meramente linguísticas: "Enquanto a aderência às normas da cultura fonte determina a adequabilidade de uma tradução em comparação ao texto fonte, o alinhamento às normas originárias da cultura alvo determina sua aceitabilidade" (TOURY, 2004, p. 201).

Ainda que qualquer tradução envolva uma combinação de decisões que pendem ora para um lado ora para outro, o primeiro estágio deste trabalho, que envolveu a elaboração das traduções atendendo às normas da cultura de partida, pendia mais para a adequabilidade. Já no segundo estágio, o de averiguar a recepção das versões diretamente com o público alvo, pendia para a aceitabilidade das traduções.

Recriar adequadamente os poemas na língua alvo para que eles possam ser considerados representantes dos poemas fontes naquela língua é primordial para que ocupem um lugar na Biblioteca Universal Infantil sonhada por Cecília Meireles. Porém, se esses poemas recriados, ainda que "adequados", não tiverem "aceitação" por parte do público alvo, a ideia de "integrar as culturas mundiais" em torno de um acervo universal de literatura infantil não atingirá sua meta.

É quando se faz fundamental retomar a ideia, defendida por Azenha (2005) e Oittinen (1998), de que a tradução de literatura infantojuvenil deve ser um diálogo, deve se dar na interação entre leitor, autor, tradutor, ilustrador, editor. Esse processo interativo seria a base que viabiliza e justifica a tradução de literatura infantojuvenil: "É a interação também que justifica a escritura e a reescritura desse tipo de texto que, como qualquer outro, não está imune às transformações do tempo e dos hábitos e costumes de seus leitores" (AZENHA, 2005, p. 372).

Para promover essa interação, e obter a participação direta, construtiva e criativa daquele agente que, pela assimetria presente em toda a produção de literatura infantojuvenil, sempre esteve um tanto à margem do processo – o público leitor de direito – nada melhor do que ouvir sua expressão autêntica. E uma das melhores formas para se chegar a isso, a meu ver, é o Pensar Alto em Grupo, de que tratarei a seguir.