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3 O PENSAR ALTO EM GRUPO

3.5 Sobre a tradução das falas das crianças estrangeiras

Realizadas sob a égide do Pensar Alto em Grupo, as vivências que geraram os dados para este trabalho foram gravadas em áudio e depois transcritas integralmente em texto. As transcrições encontram-se no Apêndice, com título que indica o nome do poema lido e o grupo que fez a leitura, em sua língua original: quatro vivências em português e quatro vivências em inglês.

No entanto, para a discussão dos dados no corpo do texto, achamos por bem traduzir as falas das crianças estrangeiras, uma vez que este trabalho pretende atingir um público mais amplo do que aquele constituído de tradutores do par inglês < > português. Assim, nos Excertos apresentados e discutidos no corpo do texto, as falas das crianças estrangeiras foram traduzidas para o português, e embora eu não as tenha cortado ou editado, ao traduzi-las tive de tomar algumas decisões, sobre as quais tecerei alguns comentários a seguir.

As transcrições das falas das crianças brasileiras que leram os poemas originais, e que também fazem parte dos dados deste trabalho, foram um auxílio luxuoso, minha constante referência na elaboração das traduções das falas das crianças estrangeiras, da mesma idade. Pude me basear em algumas características presentes em suas falas para traduzir as falas das estrangeiras.

Mesmo levando em conta que não estou lidando com uma narrativa ficcional protagonizada por crianças fictícias, mas sim com um evento real, com falas autênticas ditas por crianças de carne e osso, ao fazer a tradução considerei que era preciso aproximar as falas infantis estrangeiras das falas infantis brasileiras, para lhes dar o desejado tom de verossimilhança. Era preciso tratá-las com o cuidado que dedicamos à tradução de literatura, somado ao cuidado que dispensamos aos dados gerados por uma pesquisa acadêmica. Não alterei as falas, modulei-as na tradução para soarem verossimilhantes. Citarei alguns exemplos para esclarecer melhor.

Por exemplo, marcas de oralidade encontradas nas falas das estrangeiras como "like", "sort of", "and stuff", são encontradas de maneira semelhante nas das brasileiras, respectivamente como "tipo", "meio assim", "e tal" e pude adotá-las na tradução.

Quando as crianças estrangeiras discutiram a hipótese de alguma personagem dos poemas terem morrido, elas usaram três verbos diferentes: "die", "pass away" e "gone", que procurei traduzir conforme a circunstância em que apareceram, respeitando o registro: "morrer", "falecer" e "ir-se", respectivamente.

Já a tradução dos advérbios que exprimem dúvida como "probably" e "maybe" demandou um pouco mais de atenção e ouvido. As crianças brasileiras dificilmente usam advérbios de dúvida. O advérbio "provavelmente" não foi usado uma única vez durante as quatro vivências dos grupos brasileiros, e "talvez" apareceu apenas quatro vezes nas falas das crianças, e apenas no grupo Vera 1, na leitura de "O menino azul".

Os grupos estrangeiros, pelo contrário, usaram "probably" com muita frequência, e até mesmo diversas vezes numa mesma fala. Nas falas das crianças de Thriplow, encontrei 28 ocorrências de "probably" na leitura de "The blue boy" e nove na leitura de "Girls at the window".

Já as crianças de King David parecem preferir "maybe", pois encontrei 28 ocorrências desse advérbio na leitura de "The boy and the donkey" e apenas cinco ocorrências de "probably". Na leitura de "Girls at the window", em King David, contei doze "maybe" e três "probably". As falas de um garoto de King David, por exemplo, eram pontuadas com tanta frequência por 'basically' (ele usou este advérbio dez vezes numa mesma vivência) que eu mesma o incorporei às minhas falas, sem perceber.

Quando as crianças brasileiras querem indicar dúvida, elas recorrem a estruturas com "poder" ou "dever", e aqui exemplifico com alguns fragmentos de falas reais: "ele pode ter ficado azul"; "ele devia sofrer bullying"; "ele deve ter se mudado"; "elas devem ter amadurecido"; "a Maria deve ser a mais alegre"; "ela deve ser amigável", entre outros.

Elas também usam a expressão "vai ver" na acepção de "talvez", como por exemplo, "vai ver ele escreveu um monte de porcaria de letra". Também é muito usado o verbo de opinião "achar", que exprime igualmente uma dose de dúvida, como "Eu acho que ele quer o burrinho como companhia"; ou ainda "Eu tô achando que elas são irmãs". Assim agindo, sem recorrer a "talvez", por exemplo, os falantes evitam usar o modo subjuntivo. Se eu traduzisse as falas das crianças estrangeiras como se todas usassem subjuntivo, eu estaria elevando artificialmente seu registro. Assim, pensei inicialmente em lançar mão de outras estruturas e não traduzir 'probably' por 'provavelmente', nem 'maybe' por 'talvez'.

Por outro lado, os advérbios são uma 'marca registrada' na fala de grande parte dos ingleses, mesmo os que são fluentes em outras línguas. Muitas vezes, advérbios como "terribly" ou "strongly", traduzidos literalmente para o português como "terrivelmente" e "fortemente", continuam marcando as falas de expatriados ingleses, mesmo depois de eles morarem há vários anos no Brasil.

Em vista do exposto, decidi por uma solução intermediária. A tradução de "basically" ficou, basicamente, "basicamente". Mantive alguns 'provavelmentes' e outros tantos 'talvezes' mas alternei seu uso com o de outras estruturas para evitar que as crianças estrangeiras parecessem usar muito o modo subjuntivo.

Assim, por exemplo, a fala "Maybe he is young yet, so he doesn't know how to read" que poderia ser "Talvez ele seja muito pequeno..." ficou "Ele deve ser muito pequeno ainda...". No caso da fala "Maybe he's poor and can't afford to get a reading book" que poderia ser traduzida como "Talvez ele seja pobre...", na versão final ficou "Vai ver ele é pobre e não tem dinheiro pra comprar uma cartilha."

Também lancei mão do pronome reto em posição de objeto, como ocorre na fala da imensa maioria de brasileiros. Assim, a fala "You can't buy a donkey that could do all that stuff, and you can't train him", que deveria terminar com "treiná-lo", ficou "Não dá pra comprar um burro que faz tudo aquilo, e também não dá pra treinar ele".

Outro exemplo dessa estratégia é a fala "His parents haven’t trained him properly and then he wants someone who can teach him", que ficou "Os pais dele não ensinaram ele direito e agora ele quer alguém pra ensinar ele..."

Segundo o tradutor e poeta Paulo Henriques Britto, marcas de oralidade como as morfossintáticas aqui mencionadas são as melhores para conferir verossimilhança a uma tradução de texto oral, pois "elas tendem a perdurar muito mais do que as lexicais". Ainda segundo Britto (2012b, p. 95), os portugueses "que vieram para o Rio de Janeiro com a corte portuguesa em 1808 já comentavam em suas cartas que os brasileiros diziam coisas como 'xingar ele'".

Outras marcas de oralidade foram usadas, como "pra" em lugar de "para"; "né?" em lugar de "não é?" ou de "certo?"; ou "tá" em lugar de "está".

Como dito, a decisão de traduzir as falas das crianças com marcas de oralidade foi efetuada com o intuito de obter verossimilhança, e deixar a leitura mais fluente, soando de maneira mais próxima às falas das crianças brasileiras. Como as transcrições integrais de todas as oito vivências estão disponibilizadas no Apêndice, o leitor que assim o desejar pode "ouvir" as crianças no idioma original inglês consultando a respectiva vivência.