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3 O PENSAR ALTO EM GRUPO

3.4 Os Grupos do Pensar Alto

3.4.1 Grupos no Brasil

A princípio haveria apenas um grupo de crianças do Vera a participar do projeto que chamei 'Ciranda do Pensar Alto': o Grupo 1, ou Vera 1. Mas as crianças durante o intervalo, ou na sala de aula, trocavam impressões sobre o que se fazia nas vivências. Houve uma vez em que reproduziram em sala o rap que haviam criado na vivência com o "Passarinho no sapé", o que atiçou a vontade das que não estavam no grupo, que passaram a pedir para participar também. Então, em comum acordo com a coordenadora do Ensino Fundamental I, Ana Lúcia Cóstola Guizelin, e com as professoras do 4º ano, montamos uma estratégia para acolher a outros grupos com alunos da mesma idade, grupos esses que foram apelidados de Vera 2 e Vera 3 no âmbito deste trabalho.

3.4.1.1 EMEF Vera Lúcia Fusco Borba

Como dito na Introdução, fui apresentada ao corpo docente da Escola Municipal Vera Lucia Fusco Borba por um de seus professores, Leandro Amado, colega do curso de Pós em Estudos da Tradução da USP. Além do apoio dele, contei com o apoio da professora da Sala de Leitura, Daíze Azize, e das professoras dos 4º anos, Pola Bellini e Roberta Hirata, que convidaram as crianças que viriam a formar o primeiro grupo a participar da prática de letramento Pensar Alto em Grupo, lendo poemas da Cecília Meireles. Foi também na Sala de Leitura que realizei as primeiras vivências, inicialmente acompanhadas por Daíze, que trabalhava em sua escrivaninha enquanto as vivências se davam.

A exemplo de outras escolas municipais paulistanas, as aulas do Fundamental I na EMEF Vera Lucia Fusco Borba começam às 13h30 e vão até às 18h30. Carinhosamente apelidado por "Vera" pelos alunos e professores, a escola atende a uma comunidade de educandos que vêm de famílias de classe média ou média baixa, em que ambos os pais contribuem para a renda familiar. Entre as funções exercidas por eles estão a de professores, secretárias, merendeiras, funileiros, enfermeiras, costureiras, bancários, contadores, veterinários e policiais, entre outras profissões.

O Vera obteve média 5,9 no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) na medição de 20159. A média do município para o mesmo período foi de 4,3, e até 2021 o Brasil quer alcançar 6,0, patamar correspondente ao de países como Canadá, Estados Unidos e Inglaterra.

A escola fica no bairro Jardim Campo Limpo, num trecho arborizado e tranquilo da rua Martinho Lutero, a cerca de 200 metros do córrego Pirajuçara. Muitos dos seus 284 alunos matriculados10 no Fundamental I moram nas cercanias, e vão para a escola a pé, levados pelos irmãos mais velhos, quando não pelos avós ou outro parente próximo. A escola conta com uma quadra de esportes coberta e outra descoberta, um pátio parcialmente sombreado com árvores, onde as crianças gostam de ficar durante o recreio; laboratório de informática; sala de brinquedos para os pequenos; sala de audiovisual; e sala de leitura com várias estantes cheias de livros que os alunos podem tomar emprestado. Semanalmente as crianças têm aula nesta sala e ouvem a professora de leitura ler histórias, normalmente relacionadas ao gênero estudado. Na época das vivências elas ouviram contos de fadas, mitologia, fábulas, lendas brasileiras e poesia. Uma vez por mês são realizadas rodas de leitura, em que cada aluno elege o que quer ler para os colegas. Lá também são encenadas peças de teatro criadas pelas monitoras (em geral alunas do 5º e 6º anos), supervisionadas pela professora de leitura, e auxiliadas por crianças do 4º ano. O público dessas peças são as próprias crianças do Fundamental I.

O Vera conta ainda com cozinha própria e um amplo e iluminado refeitório no pátio central, circundado pelas oito salas de aula, que ocupam dois andares. Além de servir de refeitório, esse pátio também abriga eventos culturais como a Festa de Halloween; a Mostra Cultural, com apresentações de canto, violão, recital de poemas, e teatro; tardes de contação de histórias por eventuais escritores convidados; além de montagens teatrais sobre a violência e o bullying – temáticas preferenciais das companhias de teatro educativas que têm feito visitas à escola em anos recentes. Há um ambiente de acolhimento, favorecido pela afetuosidade do corpo docente e da coordenadora pedagógica. Além das atividades e eventos citados, durante o ano também se realizam festas juninas, torneios esportivos, e ao menos duas saídas anuais com as

9 http://www.escol.as/197122-vera-lucia-fusco-borba-profa

10 Fonte Censo Escolar 2016, disponível em https://www.melhorescola.net/escola/emef-vera-lucia-

crianças, que pode ser uma visita ao teatro, ao planetário, ao cinema de algum shopping, ou ao CEU Campo Limpo, onde as crianças podem passar o dia usufruindo da piscina, das quadras esportivas, biblioteca e pista de skate.

Iniciativas paralelas ao conteúdo pedagógico também são bem acolhidas pelo Vera quando são significativas para as crianças, como o 'Projeto Arrastão', que duas vezes por mês, durante um semestre, realizou jogos de criação de histórias e outras brincadeiras com as crianças do 4º ano, durante uma hora-aula. Incluo entre essas iniciativas paralelas meu próprio projeto de leitura de poesia, que foi bem acolhido e realizado também com as crianças do 4º ano.

Em termos étnicos, aproximadamente 60% dos educandos são brancos, 25% pardos, 12% negros e cerca de 3% são descendentes de orientais. Não tenho informações precisas sobre sua origem, mas muitos são oriundos do interior do Brasil, pois durante as vivências as crianças às vezes conversavam sobre viagens a Minas, Sorocaba, Pernambuco e Bahia, para visitar avós, primos e tios. Quanto à denominação religiosa, os alunos dividem-se equitativamente entre católicos e evangélicos, e compartilham o sonho de fazer faculdade e se tornarem cientistas, médicas, jogadores de futebol, jogadoras de vôlei, policiais, modelos, cantoras, atrizes, professores, astronautas, desenhistas, veterinários, escritores...

O primeiro grupo foi formado por cinco meninas e cinco meninos, com idade entre 9 e 11 anos, a convite das professoras e, segundo disseram as próprias crianças, por serem participativos e por lerem bem. O critério de equilíbrio entre meninos e meninas não foi seguido nos grupos formados posteriormente. Como houve muito interesse por parte das crianças que não haviam sido convidadas para esse primeiro grupo, achamos por bem, como já dito, convidar todos os alunos do 4º ano para participar da atividade, que seria realizada em grupos de dez crianças por vez.

O convite foi feito diretamente a elas, na sala de aula: alguns dias antes do início das vivências, visitei a sala de aula para falar sobre a pesquisa. Após explicar em termos simples como seria o projeto, dei espaço para que fizessem perguntas e tirassem dúvidas. Contei que as sessões seriam gravadas, e que sua participação não era obrigatória, mas quem quisesse participar deveria pedir permissão aos pais, e colher a assinatura deles (ou do responsável), no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Ato contínuo, distribuí o Termo a todos e o li com eles, em voz alta, explicando ponto por ponto, inclusive a troca de seus nomes verdadeiros por nomes fictícios, feita para

proteger sua identidade – algo que lhes despertou vivo interesse. Algumas crianças começaram ali a escolher o nome que eu deveria adotar: "Quero Mike!" "Eu quero Leonardo da Vinci..."

No Termo de Consentimento deve constar o nome completo da pesquisadora, com endereço, email e telefone. Mostrei, então, meus dados às crianças, e lhes expliquei que seus pais poderiam me ligar ou escrever se tivessem alguma dúvida sobre o projeto. Ninguém solicitou mais informações, e todos os pais assinaram o Termo dando permissão aos filhos para participar da atividade. Vale lembrar que como as vivências eram realizadas em outra sala, mas no horário normal de aula, as professoras tiveram de acomodar o conteúdo dado em sala no horário das vivências de modo a não começar algo novo e com isso prejudicar as crianças que saíam para participar do projeto. Essa preocupação levou-nos a escolher um horário em que as crianças na sala estariam fazendo leitura silenciosa ou alguma atividade de caráter não conteudístico, em geral reservadas para momentos quando as crianças estão cansadas por terem acabado de ter uma aula mais exigente em termos cognitivos.

Como as vivências passaram a ser regulares, e a Sala de Leitura não estava disponível no horário que seria o ideal para as vivências, passei a conduzir o projeto na Sala de Reforço, também usada para guardar livros e outros materiais excedentes, como cartazes coloridos com as letras do alfabeto (possivelmente usados na alfabetização). Esse material ficava em um pequeno armário e em prateleiras afixadas na parede, próximas ao teto. A sala era relativamente estreita na largura, porém graciosamente iluminada de luz natural por uma extensa janela, composta de vitrôs basculantes, através da qual se via o telhado da cozinha logo abaixo, regularmente visitado por pombas que às vezes vinham pousar no parapeito. Um pouco além, avistava-se a copa de um jacarandá plantado na lateral da escola, e providencialmente coberto de cachos roxos à época em que realizei as sessões. A sala contava com mesinhas suficientes para, juntas, formar uma mesa grande e acomodar todos à volta, como num círculo.

Trabalhei com grupos de 10 alunos do 4º ano, uma vez por semana, durante quatro semanas, ou até que cada grupo tivesse participado de quatro vivências. Passadas essas quatro vivências, dávamos início a mais quatro sessões, com outro grupo de dez alunos; ao término destas, um terceiro grupo de dez alunos se formava, para participar, também, de quatro vivências. Já que a ideia era trabalhar com todos que quisessem participar do projeto, as crianças passaram a ser agrupadas seguindo a ordem da chamada, pela praticidade: no primeiro grupo entrariam as dez primeiras crianças;

no segundo grupo, as próximas dez, também seguindo a ordem da chamada; e no terceiro grupo entrariam as últimas dez crianças. Isso valia para aqueles que já tivessem devolvido o Termo de Consentimento assinado pelos pais. Aqueles que não tivessem trazido o Termo assinado davam seu lugar a outro que já o tinha, e entravam no grupo seguinte, e assim sucessivamente.

Devido ao critério de selecionar pela ordem de chamada, não houve muito equilíbrio quanto ao gênero. O Grupo 1, por seu caráter pioneiro, foi aquele com que mais convivi, mas foi possível estabelecer uma relação de afeto e de troca entre os outros grupos também, uma vez que eu pude participar da dinâmica escolar e conviver com os participantes pelo menos uma vez por semana.

As sessões duravam em torno de 50 minutos, e em diversas ocasiões as crianças ficaram genuinamente surpresas quando anunciei o fim da sessão, dizendo em tom de queixa: "Mas já?", "Tudo que é bom dura pouco", o que para mim se tornou indício de que gostavam da atividade. Os dez minutos finais eram reservados para as crianças fazerem ilustrações sobre o poema, da maneira como bem quisessem. Essa parte da vivência era especialmente apreciada por elas. Cada criança recebeu um pequeno caderno de desenho onde colavam ou grampeavam o poema impresso, e onde desenhavam a ilustração. Se a discussão sobre o poema avançava sobre o tempo que seria destinado ao desenho, as crianças terminavam a ilustração em casa, e a traziam na próxima sessão para que eu as fotografasse. Eu sempre lhes pedia para assinarem o desenho – não só para determinar a autoria e observar se o desenho corroborava o que a criança havia dito em sala ou se trazia alguma informação nova –, mas também como forma de empoderamento, para que elas se soubessem autoras.

A decisão de trabalhar com diferentes poemas me ajudou na escolha daqueles que seriam lidos nas vivências em inglês, pois eu sabia que não teria tempo de realizar tantas vivências na Inglaterra quanto no Brasil. O contato com diferentes poemas também possibilitou às crianças brasileiras ampliarem seu repertório sobre a obra da Cecília Meireles. Diferentes grupos leram "O menino azul", "A égua e a água", "As meninas", "A avó do meninó", "Ou isto ou aquilo", "Passarinho no sapé", "A lua é do Raul", "Enchente", "A bailarina", "O cavalinho branco", "Rômulo rema", e "Colar de Carolina". Um dos resultados imediatos dessa série de vivências foi o recital "Sarau da Cecília", idealizado pelas próprias crianças em conjunto com a professora Pola, e apresentado na reunião de pais e mestres.