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3 ANÁLISE DO CONTEXTO POLÍTICO E DAS CONDIÇÕES

3.2 Base teórico-ideológica do PAA

3.2.2 Circuitos Curtos de Comercialização (CCC)

Contrapondo-se ao modelo convencional hegemônico de agricultura, baseada em monoculturas, circuitos longos de produção com diversos intermediadores e insumos químicos para aumentar a produtividade; começou a surgir no final do século XX e início do século XXI, nos EUA e na Europa, formas alternativas de alimentação que buscavam uma comercialização mais saudável, justa e solidária que ficaram conhecidas por várias nomenclaturas, como: Sistemas Agroalimentares Alternativos (SAA) ou Sistemas Alimentares Locais (SAL), cujo conceito é expresso nos seguintes termos:

Murdoch et al. (2000) falam em “cadeias alimentares alternativas” (alternative supply chains) e Muchnik desenvolveu o conceito de sistemas agroalimentares localizados - SIAL (localized agri-food system) (Baptista et al. 2013). Apesar da diversidade de conceitos, a noção mais abrangente que enquadra todo este movimento em torno da aproximação produtor-consumidor é o conceito de “Sistema Alimentar Local” e definido por Feenstra (2002) como “um esforço colaborativo para construir economias alimentares autossustentadas e baseadas no local, em que a produção, transformação e distribuição e consumo são integrados de forma a melhorar a economia, o ambiente e a saúde social de um lugar específico (TIBÉRIO; BAPTISTA; CRISTÓVÃO, 2013, p. 2).

Entre essas novas formas alternativas de produção e comercialização alimentar, distingue-se os Circuitos Curtos de Comercialização (CCC) ou, também conhecidos, Circuitos Curtos Agroalimentar (CCA) definidos como a comercialização efetivada por meio de “venda direta do produtor para o consumidor ou por venda indireta, com a condição de não haver mais de um intermediário. A ele se associa uma proximidade geográfica [...] e relacional entre produtores e consumidores” (TIBÉRIO; BAPTISTA; CRISTÓVÃO, 2013, p. 3). Assim, diferentemente dos SAA, conceito mais amplo que destacam produções sustentáveis e saudáveis de âmbito local, os CCC enfatizam as formas de comercialização e como elas se dão, apesar de também possuírem vertente agroecológica, o foco se dá nos modos de comercialização.

Os CCC representam uma forma mais transparente de formação de preços e que diminui os gargalos dos intermediadores. Um dos princípios que regem os CCC é a maior autonomia nos processos comerciais (podem escolher o caminho de melhor comercialização – há flexibilidade), contudo tal liberdade não é plena tendo em vista os fatores que influenciam o mercado. Outros princípios que regem esse sistema são: “[...] transparência, corresponsabilidade, relação de longo prazo, pagamento de preço justo e respeito ao meio

ambiente e à dignidade do trabalho, conforme Fairtrade Labelling Organizations International (2006)” (SIQUEIRA et al., 2013, p. 99-100).

Conforme Scarabelot e Schneider (2012), o estudo das cadeias agroalimentares curtas sugere formas de comercialização da produção agrícola com maior proximidade entre produtores e consumidores, permitindo uma vinculação com maior interatividade na construção mútua de relações de confiança. Mercados emergentes formam-se a partir do âmbito local e do relacionamento direto entre compradores e vendedores na lógica do estabelecimento de cadeias curtas de mercantilização (HAAS; RAMBO; BOLTER, 2019, P. 191).

Observa-se desse modo que os CCC permitem melhorar os preços dos produtos ao diminuir os intermediários. Assim, o consumidor passa a pagar menos, ao mesmo tempo em que o produtor passa a receber mais. Ademais, a venda local também traz benefícios sociais ao estimular o comércio naquele território, desenvolvendo-o e aumentando os postos de trabalho, auxiliando a manter a população na sua cidade. Soma-se a tudo isso, por fim, os benefícios ecológicos de uma produção mais saudável, com menos agrotóxicos. É o que defende Haas, Rambo e Bolter (2019, P. 192-193) ao afirmar que:

Os circuitos curtos de comercialização tendem a contribuir para a promoção do desenvolvimento regional em suas diferentes dimensões. Economicamente representam uma alternativa de renda para os agricultores familiares, apresentando enquanto aspecto positivo uma melhor remuneração do agricultor, uma vez que exclui o atravessador, pela venda direta. Socialmente, tendem a valorizar a cultura alimentar local/regional, por serem produzidos para o mercado, produtos típicos do consumo das famílias, contribuindo também para a SAN. Ambientalmente, contribuem com a manutenção da biodiversidade, uma vez que os circuitos curtos despendem menos energia para o transporte dos produtos, além de fomentarem uma produção diversificada nas propriedades, incentivada pelos diferentes canais curtos. Desse modo, contribuem para o desenvolvimento na escala humana, pois se concentram e se sustentam na satisfação das necessidades humanas fundamentais, na geração de níveis crescentes de autoconfiança, na articulação orgânica dos seres humanos com a natureza e a tecnologia. O desenvolvimento se fortalece na interação do pessoal com o social, do planejamento com a autonomia e da sociedade civil com o Estado.

Como o escoamento da produção da agricultura familiar se apresenta como um dos maiores gargalos na comercialização dos produtos, acredita-se que os CCC vêm se apresentando como uma tentativa de ruptura para o modelo hegemônico de comercialização. Contudo, Cordeiro (2014, p. 95) apresenta entendimento divergente como se verifica a seguir:

Conforme já foi ressaltado acima, Dubuisson-Quellier e Le Velly (2008) sugerem que os CCC não chegam a constituir uma ruptura, contribuindo apenas para uma redefinição das práticas em curso nas cadeias já existentes – mediante a hibridização dos mecanismos característicos dos circuitos longos e dos mecanismos localmente reapropriados. Desta perspectiva, os CCC podem estar articulados com outras modalidades de comercialização, fazendo uso de um amplo leque de esquemas de funcionamento.

Não obstante esse entendimento, considerando as classificações que os CCC possuem, pode se verificar que tal sistema de fato apresenta uma redução dos atravessadores na cadeia de comercialização dos alimentos. Nesse sentido, pode-se resumir as classificações dos Circuitos Curtos de Comercialização em venda direta e indireta consoante o quadro 4, apresentado por Darolt, Lamine e Brandemburg, a seguir exposto:

Quadro 4: Tipologia de circuitos curtos de comercialização de produtos ecológicos no Brasil (Br) e na França (Fr).

Fonte: Darolt, Lamine e Brandemburg (2013, p. 9).

Como se observa do quadro acima, esse sistema pode se apresentar por dois tipos: venda pela via direta – entrega em domicílios de cestas, colheita na propriedade, agroturismo, feiras, lojas de associações, venda em beira de estrada, etc. – e venda por via indireta no qual há no máximo um intermediário – lojas especializadas, lojas de cooperativas ou virtuais e aqui entram, também, os mercados institucionais que representam um novo paradigma para a comercialização. Dessa forma, o PAA-CI vem se apresentando como um tipo de CCC classificado como mercado institucional. Conforme, Renting et al., 2003; Wilkinson, 2008

apud Viegas, Rover e Medeiros (2017, p. 373-374):

o conceito de short food supply chains ou CCC, compõe uma das formas de redes agroalimentares alternativas (Alternative Food Networks - AFN). Estas redes têm sido cada vez mais estudadas, especialmente em países da Europa, como estratégias potenciais de desenvolvimento rural sustentável para agricultores a margem do mainstream convencional. Isto acontece pois envolvem produtos de qualidade diferenciada e, também, a possibilidade de driblar mercados competitivos e padronizados.

Frente a essas dificuldades nos gargalos da comercialização, existe na atualidade o desafio que reconduz a discussão sobre a importância do Estado para a construção social dos mercados. A esse respeito, salienta-se que a Administração Pública, com o dever de construir o bem comum da população e em face do grande mercado das aquisições públicas, “[...] constitui-se como um ator com capacidade de desenhar sistemas socioeconômicos que incorporam preocupações e viabilizam determinados modelos [...]” (TRICHES, FROEHLICH e SCHNEIDER, 2011, p. 255 e 256 apud SIQUEIRA et al., 2013, p. 102).

Desse modo, acredita-se que o PAA-CI se apresenta como um modelo alternativo às estruturas “tradicionais” de comercialização, representado o poder de compra do poder público, instituindo um circuito curto que aproxima produtor e consumidor final e valorizando o trabalha dos primeiros ao pagar preços mais justos.

Souza (2015) estudou o processo de resistência e recriação camponesa a partir do PAA e concluiu que: com relação à comercialização no geral, o programa possibilitou ao camponês uma ampliação do mercado consumidor, dando a ele mais opções de canais de comercialização. Os contemplados pela política pública se distanciam dos demais, pois há uma configuração diferenciada em relação àqueles que não são contemplados. De todo modo, os recursos que são adquiridos pelo fornecimento dos produtos ao programa se configuram numa ajuda interessante, mesmo ainda não se mostrando suficiente para manter a unidade produtiva. Por isso, interessa que se melhorem as condições estruturais da produção camponesa, dando-lhes melhores condições de trabalho e oportunidades, inclusive por parte do Estado. Mas, claro, sem destruir todo um modo de vida que historicamente não obedeceu aos ditames do capitalismo e sobreviveu até os dias atuais, adaptando-se (SOUZA, 2018).

Portanto, nesse aspecto, ressalta-se que o tema agricultura familiar ainda é muito atual e importante. “Ao mesmo tempo em que há uma produção intensiva de alimentos, que seria capaz de abastecer uma população de até 10 bilhões, presenciamos um bilhão de famintos no mundo, sendo estes a maioria agricultores” (CORDEIRO, 2014, p. 36). Ou seja, apesar da produção mundial ser suficiente para saciar a fome de todos, ainda existem pessoas morrendo literalmente de fome, sendo grande parte dos alimentos produzidos desperdiçados. Pensando nisso, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) lançou o decênio das Nações Unidas para a Agricultura Familiar (2019-2028) buscando a erradicação da fome e da pobreza. Para isso, faz se necessário superar o modelo económico, político, social e cultural de comércio hegemônico rumo a construção de um sistema mais justo. Por conseguinte, a intervenção estatal é de suma importância por meio de fomento de políticas públicas.

Los puntos esenciales de las políticas públicas “diferenciadas, efectivas e intersectoriales”, señaló Graziano da Silva, incluyen garantizar el acceso de los agricultores familiares a los recursos naturales y a los medios de producción, en particular la tierra y el agua, y la promoción de mercados más inclusivos a través de instrumentos de compras públicas de productos de la agricultura familiar. [...]

También destacó la importancia de promover la independencia económica de las mujeres rurales y la inclusión de los jóvenes. Señaló, asimismo, que es fundamental trabajar en la construcción de marcos legislativos e institucionales para consolidar la seguridad alimentaria y nutricional (CARRIZO; GRECO, 2019, p. 11).

Assim, com a política definida no PAA, esse processo começa a mudar, democratizando-se o processo de comercialização dos produtos agrícolas, oferecendo-se preços justos para o pequeno agricultor – ao se instituir um preço mínimo de venda, e procedendo-se a um encurtamento dos circuitos de comercialização. Portanto, o PAA pode significar essa tentativa de quebra da lógica de comercialização hegemônica. Além de garantir o direito de um trabalho justo ao agricultor na sua cidade, diminuindo a taxa de exploração.

Observa-se ainda que, para a efetiva execução desse programa, é necessário o envolvimento de diversos sujeitos em ambos os polos – fornecedores e consumidores. Precisa- se que os fornecedores sejam qualificados, planejem a produção de forma regular para a comercialização, que haja certa variedade de produtos e que atendam aos requisitos burocráticos para a venda ao mercado institucional – qual seja, estejam regularizados com as DAPs conforme a legislação. No outro polo, os consumidores, especificamente quanto ao mercado institucional – tais como, administradores, nutricionistas, assistentes administrativos, etc. – também devem estar conscientes de seu papel para a implementação do programa.

Desse modo, considerando que o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) é uma autarquia federal; essa entidade deveria, como componente da administração pública indireta e nos termos do Decreto nº 8.473/2015, implementar o PAA- CI a partir de janeiro de 2016. Ocorre que, na prática, não é o que se verificou nos Campi do IFCE, como se observará no próximo capítulo. Antes disso, é interessante fazer uma breve análise entre o contexto, o conteúdo e a base teórica até aqui apresentadas e que alicerçam o PAA.