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Circulação e variações na freqüência ao circuito

II. EM SÃO PAULO: espaço e diferença

2. No circuito: uma primeira aproximação

2.3. Circulação e variações na freqüência ao circuito

As descrições das diferentes áreas no circuito comercial corroboram o observado por outros estudos realizados recentemente em São Paulo, como os de Isadora Lins França e Júlio Assis Simões:

O Centro Antigo aparentemente absorve uma camada da população homossexual menos valorizada pelos padrões globalizados de estética, consumo e estilo de vida homossexual: congrega homens mais velhos, gordos e peludos, lésbicas “masculinizadas”, michês, travestis, e homossexuais considerados afeminados. Também se caracteriza pelo menor poder aquisitivo do seu público, o que se pode aferir facilmente diante dos menores preços cobrados pelas casas noturnas. (...) Assim, em muitos sentidos, a “mancha” de freqüência homossexual Jardins-Paulista define-se de modo oposto à do centro da cidade. Entretanto, apesar de ser possível traçar uma oposição entre as duas “manchas”, não se pode delinear fronteiras absolutas entre ambas, pois “mesmo dentro de cada uma há diferenças notáveis de categorias e/ou serviços, bem como considerável movimento de circulação e trocas entre elas” (Simões, França, 2005: 329). Além disso, as duas “manchas” não conseguem abarcar, em termos territoriais, toda a variedade de espaços de sociabilidade homossexual, mesmo que os padrões nelas identificados se espalhem para além de um espaço fixo. (França, 2006: 48) O delineamento de áreas e sub-áreas no circuito comercial permite identificar alguns estilos, aparências, comportamentos e categorizações relacionados a gênero e sexualidade predominantes nos diferentes lugares. Há considerável circulação por espaços

situados no interior de uma mesma área e entre elas. No entanto, há também limites para esta circulação. Classe e geração parecem organizar a distribuição das pessoas pelo espaço a partir dos preços, distâncias, rede de transporte disponível no local e perfil da programação. Há também outras barreiras que dificultam a circulação entre os espaços, para além das restrições impostas pela distância e pelos recursos financeiros e da identificação com o público que fazem com que se constituam como lugares. Uma primeira barreira está no fato de que em geral as pessoas procuram fazer amizades ou paquerar nos estabelecimentos comerciais, mas como vimos há tipos mais ou menos específicos de parcerias e de pessoas valorizadas nos diferentes espaços do circuito. Outra barreira diz respeito aos códigos de comportamento, mesmo para quem circula em grupo com amigas e namoradas.

Em determinada ocasião, convidei duas informantes a me acompanharem a campo na região central. Apesar de serem próximas à rede das minas do rock, elas moravam no centro e gostavam de MPB e essa era a programação do bar Quero Mais. A valorização da masculinidade no local chamava a atenção e as impressionou positivamente. O celular de uma delas tocou: eram amigas da rede de minas do rock, que estavam recebendo uma garota de outro estado em viagem a São Paulo e queriam ir a um “lugar diferente”, nos encontrando no local onde estávamos para irmos depois à boate Êxtase. Apesar de isoladas do restante do público do local, divertiram-se bastante em grupo e algumas delas retornaram outras vezes. Numa dessas visitas, as garotas beberam muito – um dos itens indispensáveis à “balada” de boa parte das minas do rock - e uma das garotas mais valorizadas dentro da cena do rock deixou cair um copo de bebida no tablado que servia de palco para as apresentações de drags e strippers. A essa altura, deviam chamar bastante atenção, pois eram visivelmente “de fora”, estavam bêbadas e faziam bastante estardalhaço, além de não interagirem com ninguém no local. Como resposta à bebida derrubada no palco, a garota recebeu de freqüentadoras um rodo e um pano de chão para limpar o local. A mensagem foi explícita. O que para o grupo de visitantes podia ser entendido como diversão num “lugar exótico” onde estavam as “verdadeiras sapatões”, para as outras pode ter sido entendido como “desrespeito”, agravado pelo fato de serem visivelmente de outro estrato social. Depois desse episódio, não tive notícias de que tivessem voltado ao local.

do rock, as mulheres de estratos médios em geral não circulem pelos estabelecimentos do centro. O Café Vermont e o Repertório são exceções por onde costumam circular mulheres de estratos médios-baixos. As mulheres de estratos populares, especialmente as que freqüentam os pequenos bares do Bixiga, geralmente não vão a outros espaços no circuito. A maior circulação entre as áreas parece ter lugar entre as mulheres de estratos médios- baixos. Essa circulação muitas vezes varia a depender dos interesses implicados: para sair com as amigas, para sair com a namorada, para buscar relações eventuais ou para buscar possíveis namoradas. Uma das entrevistadas, auxiliar de enfermagem de 35 anos, foi explícita em relação ao fato de que vai pouco a estabelecimentos de classe média. Quando está namorando, não freqüenta espaços específicos, pode ir ao cinema, ao motel ou à churrascaria do bairro. Conta que, se quer uma relação eventual, vai aos bares do centro, mas quando quer uma namorada, vai a estabelecimentos de classe média, onde espera encontrar pessoas de “mais nível”.

É importante ressaltar que, além da freqüência a bares e boates no circuito ser maior entre as mulheres de estratos médios e médios-baixos, são as mulheres mais jovens, até 30 anos, que têm uma presença mais constante. Entre as mulheres acima dos 35 anos, a freqüência a bares e boates é bem menor, especialmente quando estão em relações estáveis:

No meu primeiro relacionamento eu freqüentei bastante, em boate, assim. Era novidade pra mim, então eu gostava. Agora, hoje, dizer pra você que eu gosto... Não gosto. No segundo relacionamento até não ia, mas era uma coisa natural, preferia fazer outras coisas: ia ao cinema, teatro, porque também eu gosto mais. [...] Hoje, não sei, eu procuro andar mais de calça jeans, porque andei observando e acho que dá um ar mais jovial. E eu andei observando, né? Porque eu comecei a freqüentar os guetos. Eu fiquei sozinha, solteira, e fui pra balada, né? Então, eu observei o estilo das pessoas se vestirem, é sutil a diferença, mas você percebe. E aí eu comecei a entrar nesse estilo. [... Tenho ido ao] Vermont, ao Farol. Fui uma vez só na Z, tinha muita criança, aí eu parei de ir. (Teresa, 42 anos, corretora de imóveis).

Apesar da importância do circuito e de seus vários lugares no sentido de fazer circular categorias e cristalizar, ainda que temporariamente, determinados estilos e padrões de comportamento, há mulheres que não se inserem, têm contatos muito pontuais e/ou intermitentes com alguns dos estabelecimentos mencionados. Várias entrevistas mencionaram espaços religiosos, de prática esportiva, a sociabilidade doméstica e mesmo o ambiente escolar e o de trabalho como lugares onde conheceram e conviveram com parceiras ou amigas que gostam de mulheres. Entre os espaços religiosos citados, a umbanda e o candomblé foram referidas como espaços onde se pode encontrar mulheres

que gostam de mulheres e se identificam como tal. Entre as práticas esportivas, o futebol88 foi bastante citado em entrevistas e conversas informais, aparecendo como importante espaço de sociabilidade para mulheres tão diversas quanto moradoras da periferia e jovens universitárias de estratos médios e médios-altos. Não é à toa que esteve incluído na programação de grupos ativistas e das celebrações da “Visibilidade Lésbica” nos últimos anos.

O desenho da pesquisa procurava, de alguma maneira, discutir essa variedade de relações desenvolvidas com os espaços de freqüência de mulheres, inclusive evitando que houvesse uma conexão óbvia entre práticas, identidades, “comunidade” e lugar. A idéia é pensar como diferenças emergem ao olharmos para a distribuição das mulheres pelo espaço físico da cidade e pelas escolhas que fazem ao se deslocarem por esses espaços, constituindo-os em lugares por meio da atribuição de significados a esses espaços.

Além dos espaços citados, acompanhei de modo mais próximo as atividades de duas redes de mulheres que tangenciam pontualmente o circuito. A primeira, formada pelas minas do rock e a segunda, formada por mulheres que freqüentam um clube voltado para público fetichista e práticas sadomasoquistas. No próximo capítulo, essas redes estarão em foco como estratégia para produzir distanciamento etnográfico em relação ao conjunto de observações e entrevistas que realizei no trabalho de campo para esta pesquisa e como material para pensar sobre as relações que se estabelecem entre desejos, práticas, identidades, estilizações corporais e subjetividades, reforçando a recusa a um isomorfismo fácil entre “comunidade” e lugar.

88 Bruna Angrisani, jornalista que jogou futebol por oito anos, relatou em sua coluna no site Mix Brasil: “O

fato é que quando uma mulher (lésbica ou não), toma a iniciativa de praticar o futebol no Brasil, esporte historicamente cercado por machistas e homofóbicos, ela deve estar ciente de que poderá enfrentar olhares reprovativos, preconceito, piadas homofóbicas e repúdio por parte de membros da família, amigos, companheiros de trabalho ou até desconhecidos. Muitos duvidarão de sua orientação sexual. (...) Já presenciei companheira de time apanhando do namorado porque foi treinar escondido. Em partidas oficiais, já ouvi algumas com papel de gênero masculino sendo hostilizadas por parte da torcida adversária (uhu, sapatão, uhu sapatão!). Flagrei diversas vezes amigas aos beijos nos vestiários, como também já fui flagrada (ui!). Uma fazendo gol em homenagem à outra... e por aí vai! Este é o cenário do futebol feminino. Trata-se de uma subcultura lésbica que existe, de fato, com valores, comportamentos, interesses e linguagem muito peculiares.” ANGRISANI, B. Dyke futebol clube. <http://mixbrasil.uol.com.br/mp/upload/noticia/2_105_60178.shtml>. Acesso em 26 mai 2007.