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I. ESTAMOS EM TODOS OS LUGARES E EM TODAS AS PROFISSÕES

3. Novas abordagens para um novo contexto

As considerações críticas de Foucault a um “ideal emancipatório”, embora se reportassem ao emergente movimento de liberação sexual dos anos 1960, levaram a interpretações que parecem ter coroado um processo de disjunção entre teoria e fazer

político, creditado às perspectivas construcionistas (Epstein, 1998 [1987]). No entanto, para além das críticas, na segunda metade dos anos 1980, o debate entre construcionismo e essencialismo parecia gerar frutos a partir das reflexões sobre os limites de um construcionismo social estrito, de uma aproximação com a teoria feminista e da inclusão de novos pontos à pauta dos estudos sobre sexualidade.

Steven Espstein (1998[1987]) organiza sua reflexão a partir da crítica à disjunção entre o refinado arcabouço teórico construcionista e a prática de ativistas nos Estados Unidos, e procura sugerir caminhos por meio dos quais a teoria possa informar a prática. O autor parte da análise do debate construcionismo-essencialismo reconhecendo que, embora as perspectivas construcionistas38 ofereçam um olhar teoricamente mais elaborado e mais cuidadoso no sentido de salvaguardar a diversidade e os objetivos de transformação social mais ampla no movimento, há dificuldades que residem no fato do debate se mover sobre uma série de pares de falsas oposições – natureza/sociedade; diferença/igualdade; realismo/nominalismo; constrangimento/escolha; interno/externo; intrapsíquico/adquirido; real/fictício. Na vida cotidiana e no ativismo, ao contrário, tais polaridades lhe parecem se combinar, além da predominância de um ou outro dos pólos variar contextualmente. Além da necessidade de ultrapassar as referidas oposições, Epstein localiza uma inabilidade do construcionismo em lidar com o constrangimento e sugere um diálogo mais profundo com a psicanálise e com outros “domínios”, tais como gênero, “raça” e classe.

Carole Vance (1989) também elabora uma reflexão sobre problemas nas teorias construcionistas. Para tanto, separa críticas que considera provenientes de uma má compreensão e as questões que considera realmente relevantes. Entre os problemas de compreensão, Vance cita as críticas que sustentam que apenas fenômenos biologicamente determinados podem ter alguma significância na vida social humana e consideram que o que é socialmente construído não é real e é marcado por trivialidade, menor importância ou efemeridade. A autora enfatiza que tais críticas, além de subestimarem o impacto das construções sociais, confundem níveis sociais e individuais: afirmar que a sexualidade é construída no nível da cultura e da história, através de complexas interações, é diferente de

38 Epstein refere-se basicamente ao interacionismo simbólico de Simon e Gagnon, à teoria da rotulação, com

as análises de McIntosh sobre o “papel homossexual” e as de Plummer sobre o “estigma sexual”. Refere-se também a estudos antropológicos que se desenvolvem a partir da perspectiva culturalista e ao trabalho de Foucault.

considerar que indivíduos têm uma habilidade de se construir e reconstruir múltiplas vezes, mesmo em idade adulta.

Entre os problemas que Vance considerava reais estão os diferentes graus da teoria de construção social, a instabilidade da sexualidade como uma categoria e o papel do corpo. A autora argumenta que o construcionismo, assim como o essencialismo, assume várias formas e é composto por diferentes posições construídas ao longo do próprio debate. Essas posições variam com relação ao grau do que se considera socialmente construído: a maior parte dos construcionistas concorda que significados sexuais, classificações e comunidades são socialmente construídos, mas os mais radicais falam numa construção do desejo sexual. Assim, ao falar de construcionismo seria necessário deixar claro o que se entende por construção social.

Os outros dois problemas estão relacionados à constituição do construcionismo a partir da crítica ao universalismo, e à abordagem da sexualidade como uma entidade estável e coesa por parte da sexologia e da biomedicina. Um deles diz respeito à instabilidade da sexualidade como categoria, que torna o próprio objeto de estudo evanescente. O outro se refere à abordagem do corpo: a oposição ao determinismo biológico e ao essencialismo traz em si uma tendência a elaborar teorias da sexualidade desincorporadas. A questão é: como construir uma abordagem que leve em conta a materialidade corpórea sem cair no essencialismo?

Por outro lado, Vance também localizava tensões de ordem política entre “desconstruir sistemas de hierarquia sexual” e “defender gays e lésbicas”. Tais tensões se tornariam especialmente complexas num contexto em que teorias construcionistas têm um pequeno impacto sobre o campo mainstream da sexologia e da medicina, e em ambientes culturais como o norte-americano, que mostra um apreço especial por questões que envolvem natureza, “raça” e etnicidade. Desse modo, enquanto teorias construcionistas aplicadas à homossexualidade podiam ser usadas para fragilizar politicamente os que assim se classificavam, a heterossexualidade permaneceria como uma categoria naturalizada e não examinada39.

39 Essa era uma questão especialmente difícil, principalmente pelo fato de que a produção construcionista

tenha sido, em grande parte, fruto do estudo de pesquisadores que se identificavam como gays e lésbicas. Vance (1989: 29) registra a ansiedade de pesquisadores em torno da possibilidade da “dissolução de grupo” trazida pela “desconstrução” da homossexualidade e, ao mesmo tempo, a improbabilidade de tal ocorrência a

Alguns dos desafios apontados por Epstein e Vance tiveram resposta, a partir de um diálogo que já havia começado, quando tais desafios foram enunciados, e que guarda tanto continuidades, quanto rupturas, em relação ao contexto que gerou suas contribuições. A atenção de autores como Plummer (1998[1981]) a noções como a de uma opressão sexual mais geral, e ao fato de que determinadas teorias negligenciavam as mulheres, se dá numa conjuntura muito diferente da que marcou os anos 1960 e 70, quando as pesquisas estiveram focadas nas expressões visíveis e territorialmente delimitadas das “comunidades” e, por isso, estiveram quase exclusivamente restritas à homossexualidade masculina. Na década de 1980, a reflexão volta seu olhar para outros “dissidentes sexuais” (Weeks, 1985) e, a partir da contribuição de autoras feministas, se dirige para mulheres e para fora dos limites da homossexualidade.

Uma das principais contribuições dessas aproximações está registrada num artigo de Gayle Rubin (1998[1984]), que procura delinear uma teoria da política da sexualidade. Rubin parte da crítica ao essencialismo e das análises históricas de Weeks e Foucault, para afirmar a sexualidade como um produto humano passível de análise social, cujos aspectos repressivos são melhor compreendidos, quando “não nos reportamos às hipóteses essencialistas da linguagem da libido” (Rubin, 1998:106). Desse modo, ela afasta o que considera um mal entendido: as abordagens que creditavam à crítica da “hipótese repressiva” em Foucault uma negação de quaisquer constrangimentos ou normatividades à sexualidade.

Com base em ampla pesquisa bibliográfica e documental, a análise de Rubin procura identificar as formações ideológicas que influenciariam o pensamento acerca de sexo. Entre tais formações estariam as idéias de que: o sexo é essencialmente perigoso, destrutivo e negativo; a sexualidade deve conformar-se a um padrão único, toda variação é negativa, e pequenas variações, na prática, são sérias ameaças à ordem social; os atos sexuais têm diferentes valores e podem ser hierarquizados. Desse modo, faz-se necessário traçar uma linha entre o bom e o mau sexo, que se coloca entre a ordem e o caos sexual, e impedir que se rompa, já que, uma vez rompida, qualquer coisa muito terrível poderia passar por ela. De acordo com a autora, a estratificação sexual tende a racionalizar o bem-

partir das intervenções de Dorothy Allison e Esther Newton em conferências da época: “Desconstrua a

estar dos “sexualmente privilegiados” e o infortúnio da “ralé sexual” e a atribuir complexidade moral apenas aos primeiros. Sua análise concentra-se na dinâmica de tal classificação.

Para Rubin, a transformação industrial no Ocidente teria trazido novas formas de estratificação social, que envolveram mudanças nas desigualdades de classe, gênero, “raça” e etnia e, também, sexuais. No caso da estratificação sexual, há aparatos legais e controles sociais extralegais que caracterizam o sexo como vetor de opressão. Em situações de conflito, as referidas formações ideológicas atuariam no sentido de acionar o “pânico moral” (Weeks, 1981). O uso de argumentos forjados em conflitos internos do campo feminista, para produzir situações de pânico moral40, fez com que Rubin teorizasse em favor da abordagem analítica separada de gênero e sexualidade, uma vez que, “mesmo relacionados, não são o mesmo e constituem a base de dois diferentes campos da prática social” (Rubin, 1998: 125 – tradução livre).

Embora a afirmação de que gênero e sexualidade constituem diferentes campos de práticas sociais possa sugerir uma dissociação necessária entre gênero e sexualidade, esta parece não ser a perspectiva da autora. Numa reflexão posterior sobre esse trabalho, Rubin afirma que:

Nunca foi minha intenção estabelecer uma barreira disciplinar mutuamente excludente estre o feminismo e os estudos gays e lésbicos. Eu estava tentando conseguir um espaço para trabalhar com a sexualidade (e mesmo com gênero) que não pressupunha o feminismo como a abordagem obrigatória e suficiente. Mas eu não estava buscando criar um novo campo. [...] Assim como uma década antes eu procurava pensar a opressão de gênero como algo distinto da opressão de classe (embora não necessariamente dissociadas ou contrapostas), mais tarde, eu queria ser capaz de pensar sobre a opressão com base no comportamento sexual ou no desejo ilícito como algo distinto da

40 Esse artigo de Rubin foi desenvolvido sob o calor do impacto do moralismo de direita da New Right e da

organização de grupos feministas com posições antagônicas, como o Women Against Violence in Pornogra- phy and Media (1976), o Women Against Pornography (1979) e o Samois (grupo lésbico sadomasoquista criado em 1978). As teóricas mais próximas ao movimento anti-pornografia, defendiam posições como as expressas por Catharine Mackinnon (1980), que “apresenta uma análise das relações sexuais como sendo estruturadas pela subordinação, de tal modo, que os atos de dominação sexual constituem o significado social do ‘homem’, e a condição de submissão o significado social da ‘mulher’” (Gregori, 2003: 101). Rubin (2003 [1994]: 178 e 194) percebe a mudança em seu trabalho como resposta a essa mudança do clima político e social: “algo diferente estava acontecendo e meu arsenal de pressupostos e ferramentas não me bastava para lidar com essas mudanças (...) Eu observava os que tinham os assim chamados ‘desvios sexuais’, e francamente eles não me pareciam ser o supra-sumo do patriarcado. Ao contrário, eles pareciam ser pessoas com toda uma série de problemas específicos, gerados por um sistema dominante de política sexual que os ameaçava seriamente. Eles não me pareciam ser os avatares do poder político e social da sociedade. Por isso perguntei a mim mesma o que havia de errado com o quadro que nos apresentavam. Parecia-me que muitas feministas simplesmente tinham assimilado os estigmas e antipatias contra certas práticas sexuais não convencionais, rearticulando-os dentro de seu próprio universo teórico”.

opressão de gênero (embora, também neste caso, não necessariamente dissociadas ou contrapostas). [...] Acho que, então, um certo tipo de ortodoxia feminista se tornara um edifício com alguns dos mesmos problemas que javiam acometido o marxismo. Em vez de classe, o gênero, muitas vezes, foi considerado a contradição fundamental da qual derivam os problemas sociais. [...] Para alguns, o feminismo se tornara o sucessor do marxismo, e era a grande teoria de toda a miséria humana. [... Sobre gênero] Eu diria apenas que nunca afirmei que a sexualidade e o gênero estão sempre dissociados, apenas que eles não são idênticos. Além disso, suas relações são situacionais, não universais, e devem ser analisadas em situações particulares. (Rubin; Butler, 2003: 193-5; 205) Apesar desses últimos autores e trabalhos serem pouco conhecidos no campo das Ciências Sociais, suas formulações são fundamentais para compreender os desenvolvimentos posteriores no campo dos estudos de gênero e de sexualidade. As críticas ao construcionismo apontavam uma série de necessidades: ultrapassar os dualismos sobre os quais o construcionismo havia se assentado em sua crítica ao essencialismo; aproximar teoria e prática política ou fazer com que a teoria pudesse informar a prática; e buscar respostas teóricas para a abordagem dos constrangimentos e do corpo. Além desse teor crítico, o diálogo com teóricas feministas e uma reflexão menos restrita à homossexualidade ampliavam o escopo da discussão, desfocando-a do debate situado entre a necessidade de afirmar uma “condição” que desse concretude a uma “comunidade”, e a de combater os argumentos universalizantes e naturalizantes, que forneceram as bases para pensar variações sexuais como “condições” ou “entidades”.

As críticas ao construcionismo ocupam um papel fundamental, tanto na proposição de novos temas para a agenda dos estudos gays e lésbicos, quanto para a constituição do novo campo de estudos queer. A crítica a abordagens naturalizantes e universalizantes permanece e se aprofunda, trazendo novos estudos sobre intersecções entre homossexualidade e outros marcadores sociais de diferença, como gênero, “raça” e etnia, bem como uma valorização de estudos em outros contextos sócio-culturais. Antes de prosseguir, no entanto, gostaria de retomar o modo como um processo semelhante se deu nos estudos de gênero.