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Gênero, sexualidade e a perspectiva da interseccionalidade

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6. Gênero, sexualidade e a perspectiva da interseccionalidade

As formulações de Haraway, escritas inicialmente com o objetivo de integrarem um verbete sobre o termo “gênero” para um dicionário marxista, tomam em consideração não apenas o sentido de gênero no par sexo/gênero, mas também suas implicações para conceitos relacionados a sexo, sexualidade, diferença sexual, geração, parentesco, “raça”, taxonomia biológica, linguagem e nacionalidade. Desse modo, “gênero é central para as construções e classificações de sistemas de diferença” (Haraway, 2004: 209). Daí, a especial atenção dedicada pela autora aos estudos antropológicos e ao pensamento produzido pelas “mulheres de cor”, que questionam postulados e dicotomias do pensamento feminista branco ocidental:

Finalmente, e ironicamente, o poder político e explicativo da categoria “social” de gênero depende da historicização das categorias de sexo, carne, corpo, biologia, raça e natureza, de tal maneira que as concepções binárias, universalizantes, que geraram o conceito de sistema de sexo/gênero, num momento e num lugar particular na teoria feminista sejam implodidas em teorias da corporificação articuladas, diferenciadas, responsáveis, localizadas e com conseqüências, nas quais a natureza não seja mais imaginada como recurso para a cultura ou o sexo para o gênero (Haraway, 2004: 245).

Embora a necessidade de articular a análise com outras diferenças seja apontada desde os anos 1970, na trajetória dos estudos feministas ou de gênero temos abordagens que tomam gênero, classe, “raça” e sexualidade como eixos de opressão/dominação ou marcadores de diferenciação tratados de modo paralelo, e trabalhos que, além disso, subordinam alguns desses eixos ou marcadores a outros. Mais recentemente, temos, como sugere Haraway, tentativas de trabalhar a partir da articulação de eixos, mas elas não necessariamente decorrem da crítica ao sujeito humanista ou da abordagem do corpo.

Em Butler (2002), como vimos, há uma preocupação especial em pensar processos de subjetivação sem recorrer a dualismos como corpo/mente ou natureza/cultura, o que se traduz na idéia de um processo de materialização dos corpos. No que diz respeito à articulação de marcadores de diferenciação, o que Butler sugere é que a performatividade de gênero não pode ser teorizada separadamente da prática forçosa e reiterativa dos regimes sexuais regulatórios, retomando preocupações com a naturalização da heterossexualidade e da relação entre reprodução e gênero, há muito presentes no pensamento feminista (Firestone, 1976; Rubin, 1975; Rich, 1980; Wittig, 1981). No entanto, a priorização dessa

articulação traz conseqüências do ponto de vista da possibilidade de analisar as intersecções entre vários tipos de diferenças.

Butler (2002) chega a formular “raça” como algo que se produz parcialmente como efeito da história do racismo, e que tem suas fronteiras e significações construídas ao longo do tempo, não só em relação ao racismo, bem como em relação à oposição ao racismo. No entanto, reconhece, já na introdução do livro, as dificuldades na articulação de gênero, “raça” e sexualidade, afirmando que “pensar o poder contemporâneo em toda a sua complexidade e em todas as suas interarticulações continua sendo, apesar de sua impossibilidade, indiscutivelmente importante” (Butler, 2002: 43-4; tradução livre).

A formulação de simbólico, como um conjunto de normas sexuais racialmente articuladas, talvez perca um pouco de sua força sob o impacto da articulação preferencial que faz entre sexualidade e gênero. A noção de simbólico pode ser interpretada como provendo às normas sexuais um caráter universal, o que é reforçado pela formulação de matriz heterossexual: a delimitação de sujeitos viáveis a partir da coerência entre sexo, gênero e desejo tem sido apontada na literatura, especialmente na antropológica, como uma construção ocidental, especialmente presente na Europa e nos Estados Unidos.

As dificuldades na teoria de Butler relacionam-se tanto à abordagem pela via da psicanálise, que tende a privilegiar aspectos relativos a sexo – diferença sexual e comportamento sexual - na constituição dos sujeitos, quanto à aproximação prioritária com um conjunto de questões que foram situadas criticamente pelas “mulheres de cor”, por não levarem em conta os entrelaçamentos de “raça”, nacionalidade, sexo e classe na produção de sistemas de diferenças hierárquicas44.

Por outro lado, a partir da antropologia, Marilyn Strathern (1988) tem discutido a natureza fragmentada e múltipla dos corpos, em termos de gênero, a partir de pesquisas na região de Mount Hagen na Nova Guiné, enquanto Anna Meigs (1990) relata – a partir de outro povo dos planaltos da Nova Guiné – concepções de gênero que incorporam a idéia de que as pessoas podem se tornar mais ou menos masculinas ou femininas, por meio do contato ou ingestão de substâncias consideradas femininas45. Henrietta Moore (1997), por sua vez, discute o fato de que etnografias recentes, em várias sociedades, tenham apontado

44 Para a crítica das “mulheres de cor” a perspectivas universalizantes, ver Haraway, 2004. 45 Para uma discussão dos dados de Strathern, ver Moore, 1997.

para a coexistência entre categorizações de gênero baseadas na genitália externa e outras formas de conceituação múltiplas e processuais. De acordo com Moore, fatos desse tipo podem ter sido negligenciados em abordagens anteriores, tanto pela dependência das ciências sociais em relação a um modelo de gênero que enfatiza a natureza fixa e binária das diferenças sexuais, quanto pela concepção de cultura, com um conjunto abrangente de crenças e costumes igualmente compartilhado por todos os membros de uma sociedade. Nessa direção, os questionamentos aos binarismos e à noção de cultura, como todo coerente, parecem ter lançado a possibilidade de que as pesquisas antropológicas estejam mais abertas, para captar modelos de gênero diferentes e contraditórios no interior de uma mesma sociedade e sua intersecção com outros marcadores de diferença. Retomarei esse ponto no próximo capítulo, mas, antes, gostaria de voltar à reflexão sobre as contribuições de Butler.

Ela chega a criticar a primazia da diferença sexual na formação do sujeito na linguagem lacaniana convencional e reconhece que “na constituição do sujeito, a ordem da diferença sexual não é anterior à de raça ou classe” (Butler, 2002: 191). No entanto, embora destaque a importância de submeter o paradigma psicanalítico a essa percepção, o recurso à noção de simbólico dificulta a operacionalização contextualizada de noções como materialização e performatividade, de modo que se possa pensar como diferentes eixos de diferenciação se constituem mutuamente em contextos específicos. Apesar de indicar o uso da categoria “mulheres” como um campo sempre aberto a novas inclusões (Butler, 2003a[1990]), e do caráter inovador de suas contribuições a partir de conceitos como performatividade e processo de materialização, o recurso à noção de simbólico e a possibilidade de universalização das características atribuídas a uma matriz heterossexual levam a questionar: em que medida essa priorização da crítica a um imperativo heterossexual não limita o alcance das proposições de Butler a respeito dos “corpos abjetos”? Por que, necessariamente, a abjeção deve ser pensada em termos da heterossexualidade compulsória ou da matriz heterossexual? Como a abjeção sexual se constitui a partir de outros campos de poder estruturados em esferas analíticas separadas, que, segundo a própria autora, “não podem se constituir sem as outras” (Butler, 2002: 242).

Recentemente, autoras que produzem a partir das críticas pós-coloniais têm colaborado para operacionalizar uma análise social que lide com vários eixos ou esferas de

poder ou de diferenciação social, de modo contextualizado e localizado. Anne McClintock (1995) argumenta, na mesma direção que Butler (2002), no sentido de que classe, “raça” e gênero são categorias articuladas, na medida em que não são campos distintos de experiência, isolados uns dos outros ou simplesmente justapostos, mas que existem concretamente em e através de relações com cada um dos outros. Nesse sentido, não se trata de tomá-los como redutíveis uns aos outros ou idênticos, mas reconhecer que existem em relações íntimas, recíprocas e contraditórias. Na análise de McClintock, o imperialismo e a invenção da “raça” são tomados como aspectos centrais da modernidade ocidental, mas de um modo que se tornou fundamental, não só para a auto-definição da classe média, como também para o controle das “classes perigosas”: trabalhadores, judeus, prostitutas, feministas, gays e lésbicas, criminosos etc. O imperialismo não pode ser analisado, por outro lado, sem levar em conta o culto da domesticidade e o estabelecimento do doméstico como reino “natural” da família, bem como sem levar em conta os padrões de desvantagem baseados em gênero.

Também na direção de pensar a articulação de eixos de diferenciação, Avtar Brah e Ann Phoenix (2004) definem o conceito de interseccionalidade como designando os efeitos complexos, irredutíveis, variados e variáveis, que se seguem quando múltiplos eixos de diferenciação – econômicos, políticos, culturais, psíquicos, subjetivos e experienciais – se intersectam em contextos históricos específicos. A análise de interseccionalidades em Brah (2002) conecta-se a uma elaboração de diferença como categoria analítica que articula experiência, relações sociais, subjetividade e identidade. A idéia de diferença não é tomada, aí, em si mesma, de modo essencial, mas como categoria que remete a processos de designação de “outros”. Sujeitos e experiências são pensados como estando sempre em- processo, ao passo que as identidades, como enunciados contingentes.

As formulações de McClintock e de Brah parecem se beneficiar do processo de elaboração de reflexões que pontuamos brevemente nas últimas páginas. A elaboração de diferença como categoria analítica em Brah, em especial, sistematiza uma série de reflexões acerca do sujeito, da experiência46, da capilaridade do poder, da contingencialidade das identidades e da articulação de eixos de diferenciação. Desse modo, parece oferecer um

ponto de partida para operacionalizar, de modo menos focado no imperativo heterossexual, as importantes contribuições para o rompimento de dicotomias entre corpo/mente, natureza/cultura e real/construído, oferecidas pelas formulações de Butler (2002), a respeito da performatividade e da materialização dos corpos.