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5. Corpos e diferenças

Nos anos 1990, Butler (2003a [1990]) surge como uma das autoras mais radicais em seu afastamento em relação às feministas dos anos 1970, ao usar o método genealógico em relação às apostas feministas, problematizando categorias fundacionais que criariam ilusões de naturalidade, tais como sexo, gênero, identidade e corpo. As formulações de Butler (2002; 2003a) centram-se, especialmente, na produção de sujeitos e modos de subjetivação. Nesse sentido, a autora recusa o dualismo natureza/cultura e o construcionismo social, ao contestar a idéia de socialização como interiorização de normas sociais e focar sua investigação nos corpos e nos processos de materialização. Gênero, em Butler, passa de categoria analítica a aparato de produção de estruturas binárias. A definição de matriz heterossexual como uma “grade de inteligibilidade cultural por meio do qual corpos, gênero e desejos são naturalizados” (Butler, 2003a, 215-16 - nota 6), aponta para uma crítica não apenas da naturalização do gênero, mas da naturalização dos corpos e dos desejos.

Bodies that matter (1993) procura desfazer mal entendidos causados por interpretações que confundiram performatividade e performance na leitura de Gender Trouble (1990), tomando por objetivo inicial considerar a materialidade do corpo. Para tanto, Butler começa por uma reflexão acerca da materialidade do sexo e da relação entre gênero, agência, subjetivação e corpo. Nessa reflexão, a autora questiona a noção humanista de sujeito, na qual a agência passaria pelo voluntarismo e pelo individualismo – o sujeito que decidiria sobre seu gênero - e apresenta gênero como parte do conjunto de constrangimentos e normatividades impostos ao sujeito, e como algo que se constrói a partir de relações de poder. Nesse sentido, ao sujeito não cabe decidir sobre seu gênero, uma vez que é, ele mesmo, constituído a partir das normas de gênero.

O “sexo”, assim como em Foucault, é visto como um ideal regulatório. Ideal que produz os corpos que governa, materializando-se através da repetição ritualizada das normas de gênero. A materialidade é, portanto, apresentada como o efeito mais produtivo do poder. Nesse sentido, não se trata de pensar no construído como algo artificial e prescindível, nem tampouco de compreender a condição constitutiva das normas de gênero

pela perspectiva de algum tipo de determinismo cultural:

Conceber o corpo como algo construído exige reconceber a significação da própria construção. Se certas construções parecem constitutivas, ou seja, se têm o caráter de ser aquilo “sem o que” não poderíamos sequer pensar, podemos sugerir que os corpos só surgem, perduram e vivem dentro das limitações produtivas de certos esquemas reguladores em alto grau generizados. (Butler, 2002:14 - tradução livre)

A proposta elaborada por Butler se coloca como uma recusa a operar a partir de uma cisão polarizada entre natureza e cultura, própria das abordagens construcionistas. Em certa medida, Butler parece concordar com a crítica que refere em seu texto, e que atribui às abordagens construcionistas um certo tipo de “somatofobia”, ao afirmar que, em boa parte dessas abordagens, a natureza seria pressuposta como uma superfície passiva, fora do social, vista como contraparte deste, sobre a qual o social atuaria unilateralmente, investindo-a com seus parâmetros e significados, de modo a usurpar a própria agência dos sujeitos e instaurar um tipo de determinismo cultural.

Como alternativa às concepções construcionistas, Butler propõe um “retorno à noção de matéria, não como local ou superfície, mas como um processo de materialização que se estabiliza através do tempo para produzir o efeito de fronteira, de fixidez e de superfície daquilo que nós chamamos matéria” (Butler, 2002, 28 – tradução livre). Esse processo de materialização é pensado em relação aos efeitos produtivos e materializadores do poder regulatório, no sentido foucaultiano. Nessa direção, as normas de gênero são vistas como restrições constitutivas que fazem com que os corpos se materializem como “sexuados” e que, ao mesmo tempo, produzem o terreno dos corpos culturalmente inteligíveis e o domínio dos corpos abjetos e impensáveis. A questão deixa de ser “de que modo o gênero é constituído através de uma interpretação do sexo?”, deslocando-se para “através de que normas regulatórias o próprio sexo é materializado?”.

A fim de enfrentar o que formula como “o conjunto de oposições metafísicas entre materialismo e idealismo” presentes nas críticas ao construcionismo, e de questionar os apagamentos e exclusões que, para ela, constituiriam o limite das próprias formulações construcionistas, a autora propõe reformular a idéia de performatividade discursiva nos termos de uma citacionalidade. Para tanto, recupera a idéia de “assumir um sexo”, presente no jargão lacaniano, sustentando que tal formulação passa a falsa impressão de uma escolha altamente reflexiva ao ocultar o caráter impositivo dessa assunção, que apenas reiteraria,

pela identificação compulsória com suas demandas normativas, um aparato regulatório de heterossexualidade.

A idéia de reiteração é elaborada a partir da formulação de Derrida a respeito do caráter derivativo do poder: o sucesso de um enunciado performativo depende do fato de que cite convenções de autoridade. Dessa formulação, deriva a idéia de que o sujeito só venha a existir como tal, através de uma sujeição às normas do sexo. Tais normas assumiriam controle na medida em que são citadas, derivando seu poder das citações que impõem. Se um ato performativo é aquele que produz o que nomeia, a performatividade reelaborada nos termos de uma citacionalidade não permite que se pense num ato singular, mas na reiteração de uma norma ou conjunto de normas, que, ao adquirir o status de ato, no presente, dissimula as convenções das quais é uma repetição.

Se o “sexo” é o efeito sedimentado de uma prática reiterativa e, assim, adquire efeito naturalizado, em virtude dessa reiteração, fissuras são abertas, podendo serem vistas como aquilo que “escapa ou excede a norma”. Essa instabilidade é vista pela autora como “a possibilidade desconstitutiva no próprio processo de repetição, colocando a consolidação das normas do “sexo” em uma crise potencialmente produtiva” (Butler, 2002: 29).

Se a construção/materialização do gênero atua por meio de exclusões, de modo que o humano não seja apenas produzido contra o inumano, mas através de um conjunto de apagamentos radicais que recusam a possibilidade de articulação cultural, caberia a esses corpos abjetos a ameaça de questionamento da estabilidade da norma e dos pressupostos fundantes do sujeito sexuado. Essa ameaça, segundo Butler, não deve ser encaminhada como um questionamento ou uma negação permanente das normas sociais – o que “a condenaria ao pathos do fracasso perpétuo” – mas como um recurso crítico para rearticular os próprios termos da legitimidade simbólica. Nesse sentido, a “desidentificação” com as normas regulatórias através das quais a diferença sexual é materializada, seria tão ou mais crucial para a rearticulação da contestação democrática, do que a estratégia de criação de identificações com finalidades políticas, típica da política de identidades. Daí a ênfase da autora nas paródias, que se apropriam de modo desestabilizador das identificações normativas, e nos atos corporais subversivos.

Nos anos 1990, outras autoras enfrentaram a questão dos corpos e dos dualismos. Anne Fausto-Sterling (2001/02 [2000]) questiona a afirmação de que “a sexualidade não é

um fato somático, ela é um efeito cultural” (Halperin, 1993: 416), argumentando que os modos norte-americano e europeu de entender o funcionamento do mundo dependem, em grande parte, do uso de pares de opostos, como sexo/gênero, natureza/criação, real/construído e que, no uso cotidiano, conjuntos de associações desse tipo costumam andar juntos. Para a autora, o dualismo sexo/gênero limita a análise feminista, uma vez que, posto numa dicotomia, gênero exclui a biologia e a possibilidade de uma análise sócio- cultural do corpo. Nas discussões públicas e científicas, argumenta ela, sexo e natureza são considerados reais, enquanto gênero e cultura são vistos como construídos, mas o próprio dimorfismo sexual é construído pelo social e reforçado pela tradição de invisibilizar os nascimentos intersexuais. Desse modo, entende que a pesquisa científica que usamos para compreender a natureza dos materiais que formam o mundo, a forma em que se dá o debate e as ferramentas escolhidas, são apenas tecnicamente limitados, mas marcados por contextos sociais e históricos.

Para Fausto-Sterling, assim como para Butler (2002), a matéria, apesar de inegável43, já contém noções de gênero e sexualidade, de modo que “não pode ser um recurso neutro sobre o qual construir teorias ‘objetivas’ ou ‘científicas’ do desenvolvimento e diferenciação sexual” (Fausto-Sterling, 2001/02: 63). Por outro lado, a autora critica os argumentos de Elisabeth Grosz em Volatile bodies (1994) por “deixar um resíduo não explicado de natureza” ao postular “impulsos inatos que são organizados pela experiência física em sensações somáticas, que se traduzem no que chamamos de emoções” (Fausto- Sterling, 2001/02: 68).

Os humanos são biológicos e, portanto, em certo sentido, seres naturais e sociais e, em certo sentido, artificiais – ou, se quiser, entes construídos. Podemos imaginar um modo de ver a nós mesmos, à medida que nos desenvolvemos desde a fertilização até a velhice, como simultaneamente naturais e não naturais? [...] Os teóricos do desenvolvimento sistêmico negam que haja basicamente dois tipos de processo: um guiado pelos genes, hormônios e células do cérebro (isto é, a natureza) e outro pelo ambiente, a experiência, o aprendizado ou forças sociais rudimentares (isto é, a criação). (Fausto-Sterling: 2001/02: 68;70).

Para ilustrar tais abordagens, Fausto-Sterling usa como exemplo uma teoria sobre o funcionamento do cérebro, o conexionismo. Oposto a teorias que sobrepõem funções e anatomia cerebral, o conexionismo afirma que a função surge a partir da força e da

43 A materialidade significada através dos “domínios da biologia, anatomia, fisiologia, composição hormonal

complexidade de muitas conexões neurais que atuam ao mesmo tempo. Assim, a informação não estaria em lugar algum, resultando de diferentes conexões e forças, de modo que pequenas mudanças poderiam produzir grandes efeitos, e que um mesmo comportamento poderia ter muitas causas subjacentes, eventos que acontecem em diferentes momentos do desenvolvimento. A partir dessa perspectiva, haveria a possibilidade de um olhar muito mais dinâmico e do rompimento de dicotomias entre mente/corpo, natureza/criação e real/construído.

Uma das fundadoras desse debate acerca do rompimento de dicotomias, Donna Haraway pode ser aproximada desta discussão a partir de sua crítica ao que denomina paradigma da “identidade de gênero”, que teria sua origem no trabalho de psicanalistas como Sigmund Freud e na distinção entre sexo e gênero estabelecida nas formulações psiquiátricas de Robert Stoller, posteriormente retomadas por John Money (Haraway, 2004[1991]). Em “Gênero” para um dicionário marxista, Haraway concorda com Butler na avaliação de que esse paradigma postula uma identidade coerente e estável que relaciona sexo a biologia e gênero a cultura, mas sua crítica dirige-se sobretudo ao fato de que tal paradigma carrega consigo uma história sócio-política relacionada ao discurso colonialista ocidental e à dominação daqueles que foram ou são situados no pólo “natural”.

Assim como Fausto-Sterling, Haraway é crítica do construcionismo, tanto por isolar o sexo, de modo a tornar biologia sinônimo de corpo e não um discurso aberto à intervenção, quanto por tornar as feministas menos capazes de desconstruir o modo como os corpos aparecem como objeto de conhecimento e espaço de intervenção da biologia. Seus argumentos vão no sentido de ir além da dicotomia em direção a um conceito de gênero totalmente politizado e historicizado. É crítica também da noção de um “eu interior” coerente, que, assim como Butler, considera uma ficção reguladora desnecessária. No entanto, para ela, cada condição de opressão requer análise específica que recusa a separação, mas insiste na não identidade de “raça”, sexo e classe, de modo que a identidade pessoal e coletiva é precariamente e constantemente reconstituída.