• Nenhum resultado encontrado

I. ESTAMOS EM TODOS OS LUGARES E EM TODAS AS PROFISSÕES

1. Desvio, estigma, subculturas e guetos

No prefácio à segunda edição de Mother Camp: female impersonators in America, em 1978, Esther Newton se referia à impressão de olhar para um trabalho passado, escrito dez anos antes para a obtenção do título de doutora, como reencontrar um antigo amante: evocativo, desconcertante, talvez entristecedor. Muita coisa havia mudado e, talvez, fosse interessante um estudo da nova realidade, mas a autora não se propunha a fazê-lo. Dois anos depois de escrita a tese, no prefácio à primeira edição, ela conta que suas conclusões dialogavam com a necessidade de estudos antropológicos sobre a “cultura Americana” e com problemas na teoria sociológica do desvio. No entanto, a existência de uma “cultura Americana” havia sido reconhecida e a teoria do desvio havia perdido muito de sua utilidade. A partir disso se colocava algumas questões – “Quem precisa de uma teoria do desvio? Por quê? Por que não uma teoria da normalidade?” (Newton, 1978: xv – tradução livre) – ainda que formulá-las, de fato, parecesse exigir “coragem” e que procurar examinar a normalidade pudesse nos chocar a nosso próprio respeito.

Suas reflexões sobre o trabalho anterior não lhe permitiam pensar em antropólogos como outsiders em suas próprias culturas: antropologia e política pareciam, então, ter fortes conexões. Aprendera na universidade a conceitualizar cultura como um sistema estático e funcional e a mudança como um problema persistente, mas periférico; no entanto, a importância das mudanças e das relações entre cultura e poder ganharam o espaço dos prefácios. Drag queens não eram mais heróis do “mundo gay”, desafiando e sustentando atitudes sociais acerca dos “queers”, embora tanto elas quanto “a sensibilidade e o humor camp” tivessem sido apropriados pela comunicação de massas, mostrados de modo açucarado para largas audiências31. Com o início dos movimentos de gay-pride, homens musculosos ganhavam a cena e “a passagem de estilos femininos para masculinos” tentava afastar o “estigma da afeminação”. Assim, a estratégia anteriormente usada para lidar com o estigma havia sido objeto de um deslocamento, que a transformara na própria fonte do estigma. Ou seja, a representação do feminino por homens - outrora reação espirituosa às convenções sociais que associavam masculinidade à diferenciação e dominação das mulheres, e que consideravam que homens homossexuais agiam como mulheres numa relação que “naturalmente” deveria se dar entre machos ativos e fêmeas passivas - havia se convertido no próprio foco do estigma a ser combatido por estilos hiper-masculinos.

Esther Newton havia se proposto fazer uma etnografia da “comunidade” a partir dos shows de drags, que havia considerado como um ritual da “subcultura”. O trabalho de campo foi realizado, entre 1965 e 1966, em Chicago, Nova Iorque e Kansas. Além de Howard Becker e Irving Goffman, sua bibliografia contava, entre outros, com a referência a um dos primeiros trabalhos publicados sobre homossexualidade nas ciências sociais: The homosexual community (Lezznoff; Westley, 1998 [1965]). Esse trabalho, por sua vez, partia de uma distinção bastante rígida entre a “comunidade homossexual” e a “sociedade abrangente”. A “comunidade” teria sua origem na evasão de controles sociais e busca de apoio para uma “tendência desviante” comum, a homossexualidade. Diferentes mecanismos de evasão dos controles sociais, relacionados à posição dos sujeitos no mundo do trabalho, dariam origem a grupos formados por “secretos” ou “abertos”, onde a

31 Termos como drag queen, queer, camp e gay-pride, citados neste parágrafo e nos seguintes, são categorias

êmicas encontradas nas pesquisas citadas. Embora não descreva o sentido desses termos, visto que isso não tem relevância para a discussão aqui conduzida, seu significado deve ser buscado na obra dos autores citados, não devendo ser deduzido a partir do uso feito atualmente no contexto brasileiro.

“manutenção do segredo” ou a “renúncia aos valores e relações sociais com straights” dariam, respectivamente, a tônica. Esses grupos tão distintos se encontrariam, afinal, de acordo com os autores, através da interdependência sexual:

A comunidade homossexual consiste num largo número de grupos distintivos, nos quais a amizade ata fortemente os membros e, entre os quais, os membros são ligados por tênues mas repetidos contatos sexuais. O resultado é que os homossexuais da cidade tendem a conhecer ou conhecem cada um dos outros, reconhecem um número de interesses e normas morais comuns e interagem na base de uma cooperação antagônica. Esta comunidade está por sua vez ligada a outras comunidades homossexuais do Canadá e dos Estados Unidos, principalmente através da mobilidade geográfica de seus membros. (Lezznoff; Westley, 1998 [1965]: 10 – tradução livre)

A introdução do texto remetia às pesquisas de Alfred Kinsey como “evidências de que homossexuais estão distribuídos em todas as áreas geográficas e estratos sócio- econômicos” (Lezznoff; Westley, 1998 [1965]: 5 – tradução livre). No entanto, o continuum esboçado pela escala Kinsey não foi levado em conta, de modo a construir uma oposição entre um “mundo” ou uma “comunidade homossexual” e o que aparece ora como “sociedade abrangente” ora como “comunidade heterossexual”. Assim, traços que possivelmente fossem compartilhados por homens heterossexuais e homossexuais, como a valorização e o relato de aventuras sexuais, não são explorados para além dos integrantes da “comunidade”. Por outro lado, sobre a “comunidade heterossexual”, ou sobre “os heterossexuais”, não sabemos nada, além de sua hostilidade, num contexto em que havia sanções legais que incluíam a possibilidade de prisão em boa parte dos lugares onde foram feitas as primeiras pesquisas sociológicas. O “mundo homossexual” era espacialmente delimitado por uma série de bares, casas de homossexuais mais velhos, ruas e locais semipúblicos como banheiros e lobbies de hotéis, onde se davam as interações entre o “grupo desviante” e o contato com parceiros sexuais, sendo que o “encobrimento” era necessário para a circulação na “comunidade heterossexual”.

Trabalhos posteriores vão, aos poucos, minando a idéia de separação rígida entre universos sociais heterossexuais e homossexuais e mostrando suas inter-relações. Um exemplo é um estudo – The social integration of queers and peers (Reiss, 1998 [1967]) – que, na mesma linha da análise do desvio e de “carreiras desviantes”, descreve a interação entre rapazes que trocam com outros homens favores de natureza sexual por dinheiro, sem reconhecerem-se, no entanto, nem como prostitutos nem como homossexuais. De acordo com o autor, os homens que se envolvem com esses rapazes não pareciam participar de

grupos de homossexuais, sejam eles “secretos” ou “abertos”. Assim, o chamado “mundo gay” provavelmente encompassaria somente uma pequena proporção de todos os “contatos homossexuais”. A própria prática que era objeto da transação – a felação – era concebida como “queer” pelos jovens “delinqüentes” que a recebiam, apesar de que, sob circunstâncias especiais, a prática “queer” pudesse envolver pessoas que não se considerassem “homossexuais”.

Outro exemplo que relativiza a separação entre universos sociais homo e heterossexuais é o próprio trabalho de Esther Newton, que discute o uso de termos como “mundo gay”, “comunidade” e tipologias como “abertos” e “secretos”:

Homossexuais, como muitos outros grupos sociais americanos, não constituem uma “comunidade” tradicional. O conceito é utilizável porque contrasta com a noção de que homossexuais são simplesmente uma categoria de pessoas desviantes. [...] Nem todos que se auto- definem como homossexuais pertencem à comunidade homossexual. A comunidade é uma realidade social em processo, em torno da qual ou contra a qual pessoas se alinham de acordo com suas auto- definições. [O desejo/necessidade de evitar ser identificado] causa a mais fundamental divisão na vida social homossexual. Mas não pode ser visto como um princípio fixo que aloca categoricamente os indivíduos de um lado ou de outro. Ao contrário, é um princípio dinâmico que causa tensão contínua e o re-direcionamento de linhas sociais. [Há extremos], mas a maior parte está entre os pólos; a “obviedade” de qualquer pessoa é largamente relativa e situacional. [...] Isto pode ser visto como uma hierarquia de estigmatização, ou “obviedade”. Qualquer grupo particular tenderá a traçar a linha abaixo de si mesmo. (Newton, 1978: 20-25)

Trabalhos posteriores ainda seguiam a idéia de que homossexuais poderiam ser estudados a partir da idéia de “minorias”, que já era usada para estudar questões étnico- raciais (Nardi; Schneider, 1998: 3). Várias contribuições, produzidas entre meados dos anos 1950 e meados dos anos 1970, trabalharam numa perspectiva que entrelaçava as idéias de “minoria”, “comunidade”, “estigma” e espaços específicos. Nancy Achilles (1998[1967]) elevava o bar gay ao status de “instituição” da comunidade minoritária e Carol Warren (1998[1974]) falava de como a estigmatização e o segredo impunham limitações espaciais e temporais criando tempos e espaços “em que a comunidade [pudesse] celebrar a si mesma”. A idéia de territórios específicos foi trabalhada por Warren a partir da descrição de alguns desses espaços e de reações a “invasões territoriais”, que tenderiam a reforçar o “sentimento de comunidade”. Nessa linha, o trabalho mais conhecido no Brasil é o de Martin Levine (1998[1979]), que procurava analisar a validade da aplicação do conceito de “gueto”, conforme elaborado pela Escola de Chicago na década de 1920, de modo a ampliar seu uso corrente, voltado a “comunidades” étnico-raciais, para incluir vizinhanças

que concentrariam grande quantidade de moradores e instituições homossexuais socialmente isolados, onde o comportamento homossexual seria geralmente aceito.

Em meados dos anos 1970, no entanto, havia sérias críticas à imprecisão conceitual do termo “comunidade”, que era usado numa variedade de sentidos, remetendo a sistema social, grupo social, população ou conjunto de pessoas ou, ainda, território. Essas noções geralmente apontavam na direção da conformação de uma “entidade” (Murray, 1998: 205). Apesar das críticas, Stephen Murray (1998[1979]) procurou reabilitar o termo, a partir dos aspectos que as várias estratégias de conceituação de “comunidade” tinham em comum e da comparação de uma possível “comunidade gay” na cidade de Toronto com outras “comunidades étnicas” na mesma cidade. Assim, lançando mão da observação participante e realização de entrevistas, o autor analisa o que chama de “comunidade gay” frente às dimensões territoriais, institucionais, temporais, de ação coletiva e solidariedade, do compartilhamento de valores e normas, entre outros, para concluir que todos esses elementos estão presentes na “comunidade gay” de Toronto, embora sozinhos não tenham o poder de definir uma “comunidade”. Murray, então, recorre ao interacionismo simbólico32 para deslocar a noção de “comunidade” como “entidade” ou “sistema social” para a idéia de “comunidade como processo”, tendo por base o sentido de pertencimento, que não seria o “produto automático de uma homogeneidade abstrata nem de um território comum, mas de um sentimento de participação numa mesma história” (Gusfield apud Murray, 1998: 212 – tradução livre). Desse modo, o que autorizaria a falar em “comunidade gay” seria a noção de “identidade”, que, como retomaremos adiante, não guarda relação direta com as práticas ou desejos do sujeitos.

Se as perspectivas utilizadas, nesse período, foram hábeis em localizar e dar visibilidade a homossexuais no espaço das cidades e no interior de uma sociologia urbana, elas impunham várias dificuldades para uma análise mais nuançada e dinâmica do que estava sendo observado. Um primeiro motivo está relacionado ao efeito de enrijecimento da dinâmica social que a visão de poder, como propriedade de determinado grupo social,

32 Com raízes na produção da Escola de Chicago, essa perspectiva privilegiava o estudo da interação entre as

pessoas a partir de métodos qualitativos. Tal interação era tida como motor da constituição de significados, sempre negociados na relação entre os sujeitos, sendo constantemente modificados ou reinterpretados. Nesse sentido, a "comunidade" seria sempre o produto mutante das interações entre pessoas que partilhavam vivências coletivas.

poderia induzir. Nessa direção, pesquisas etnográficas que privilegiassem a observação detalhada e cotidiana dos sujeitos e de suas relações representavam uma possibilidade importante de relativizar o quadro teórico-conceitual.

A rigidez trazida pela visão de poder como propriedade era, ainda, reforçada pela separação de proprietários e não proprietários do poder e sua constituição em “comunidades” ou mundos sociais, como “mundo gay” e “mundo straight”. Os contextos de produção desses estudos eram marcados pelas sanções sociais e, muitas vezes, legais, impostas a determinadas práticas sexuais, entre elas a “sodomia”. Assim, a idéia de “mundo straight” tendia a ser usada alternadamente com a de uma “sociedade abrangente”, dentro da qual estava a “comunidade homossexual”, pensada em termos de seu caráter “minoritário” ou “desviante”. Numa época em que a noção de “direitos humanos” não era usada para focalizar direitos de populações ou grupos específicos, e em que o movimento homossexual moderno dava seus primeiros passos, a mudança era pensada a partir da constituição de “instituições” específicas da “comunidade”, geralmente pensadas como espaços de lazer comerciais, e da conquista de tolerância.

A idéia de “comunidade”, por sua vez, só se sustentava pela via da supressão de diferenças ou sua expressão em termos de tipologias. Dessa maneira, traços como atributos de gênero, publicização das preferências eróticas ou papéis acionados durante práticas eróticas, que sem dúvida demarcam questões significativas na pesquisa sobre (homo)sexualidades, se tornaram tipos: “abertos” , “secretos”, “efeminados”, “masculinos”, “ativos”, “passivos”.