• Nenhum resultado encontrado

I. ESTAMOS EM TODOS OS LUGARES E EM TODAS AS PROFISSÕES

4. Construcionismo, mulheres, gênero e corpo

Os chamados estudos de gênero têm sua origem no pensamento feminista e nos estudos sobre “a mulher”. Embora houvesse importantes nuances entre os chamados

estudos feministas das décadas de 1960 e 70, são elementos comuns41: a idéia de uma essência universal compartilhada, muitas vezes ancorada no corpo e na maternidade; a universalidade de “a mulher” baseada numa experiência de opressão compartilhada; a pressuposição de um sistema de dominação/subordinação universal das mulheres nos moldes de um “patriarcado”; o uso de marcos explicativos universais; o recurso à polarização entre homens e mulheres, vistos como opressores e oprimidas; um olhar para as relações de dominação como assimétricas e hierárquicas, de modo que o poder é visto como propriedade; a afirmação do pessoal como político; a referência ao corpo como lugar onde se expressa a opressão às mulheres, por meio do controle da sexualidade e da reprodução.

Embora os debates no campo dos estudos de gênero sejam permeados por posições mais nuançados e, portanto, difíceis de situar a partir de uma distinção, como a que tracei nas sessões anteriores, entre essencialismo, construcionismo e desconstrutivismo em relação aos estudos gays e lésbicos, o questionamento às formulações dos estudos sobre “a mulher” a partir da contribuição de autoras como Gayle Rubin (1975) e Joan Scott (1995 [1988]), permitem estabelecer uma comparação com o que se deu no interior do campo de estudos sobre sexualidade. A formulação de um sistema sexo/gênero, em Rubin (1975), parte de uma distinção entre natureza e cultura e enfatiza o caráter fundamentalmente social e histórico das distinções baseadas no sexo, bem como a rejeição ao determinismo biológico. Scott (1995 [1988]), por sua vez, compartilha os dois últimos pressupostos, mas se diferencia da abordagem mais propriamente construcionista de Rubin (1975), na medida em que se aproxima de uma perspectiva pós-estruturalista e passa a questionar as oposições binárias entre natureza e cultura. Mas, vale assinalar a diferença que se estabelece entre as perspectivas referidas nos estudos gays e lésbicos e as contribuições formuladas no campo dos estudos de gênero: estas últimas deparam-se, desde o início, com a necessidade de pensar gênero, a partir de um diálogo com outros marcadores sociais de diferença, tais como classe, “raça” e sexualidade.

Em O tráfico de mulheres, em evidente diálogo com as formulações feministas da chamada “segunda onda”, Rubin formula a idéia de um sistema sexo/gênero, definido como

41 Para as afirmações a seguir foram consultados os seguintes textos: Moore (1996); Chinchilla (1982);

“uma série de arranjos pelos quais a matéria prima do sexo humano e da procriação é moldada pela intervenção humana, social, e satisfeita de um modo convencional, por mais bizarras que algumas dessas convenções sejam”. Tal formulação dialoga com perspectivas feministas e marxistas, questionando, tanto a idéia de “patriarcado”, quanto a de “modo de reprodução”. Ao distinguir sistema sexo/gênero de “modos de reprodução”, afirma sua especificidade e sua importância, afirmando que “sistemas sexuais têm uma certa autonomia e nem sempre podem ser explicados em termos de forças econômicas”, e questionando que o que se abarca no sistema sexo/gênero “seja simplesmente o momento reprodutivo de um ‘modo de produção’”. Ao distinguir sistema sexo/gênero de patriarcado, Rubin aponta para a necessidade de historicizar e contextualizar as reflexões sobre sexo e gênero, estabelecendo “uma distinção entre a capacidade e a necessidade humana de criar um mundo sexual, e as formas opressivas empíricas nas quais os mundos sexuais foram organizados”.

Ao tomar os sistemas de parentesco como “formas observáveis e empíricas de sistema de sexo/gênero”, Rubin se propõe desenvolver uma teoria da “opressão sexual”, a partir do estudo do parentesco, entendido como uma “imposição da organização cultural sobre os fatos da reprodução biológica” e como organização e, portanto, algo que cria poder. Uma de suas conclusões, é que os sistemas de parentesco estão calcados na divisão dos gêneros, na heterossexualidade obrigatória e na repressão da sexualidade da mulher. Assim, parentesco cria sistemas de sexo/gênero. A psicanálise, por sua vez, é tomada pela autora como uma teoria sobre a reprodução do parentesco, descrevendo como os sexos são adquiridos e alterados pela cultura. Para ela, “uma completa revolução iria libertar não apenas as mulheres. Iria libertar formas de expressão sexual, e iria libertar a personalidade humana da camisa-de-força do gênero”.

A elaboração de um sistema sexo/gênero reagia a um englobamento das questões de gênero pelas questões econômicas, e a uma universalização das mulheres e da opressão. Nesse momento, a sexualidade ainda aparecia englobada num sistema sexo/gênero – o que Rubin modifica em Thinking sex42 – e não se pensava em que tipo de relações se estabelecia entre as categorias usadas, para pensar diferentes formas de opressão. Como nas

42 Em Thinking sex, sexo aparece como vetor de opressão que atravessa outros modos de desigualdade social;

teorias construcionistas dos estudos gays e lésbicos, natureza e cultura aparecem estaticamente cindidos. O determinismo biológico aparece como uma ameaça, uma vez que o biológico pode ser utilizado como ancoragem para afirmar disposições de ordem moral e cultural. A reação dessa perspectiva ao determinismo biológico traz a natureza como massa de modelar esculpida pela cultura. O sonho de uma “sociedade andrógina e sem gênero (embora não sem sexo), na qual a anatomia de uma pessoa seja irrelevante para o que ela é, para o que ela faz e para a definição de com quem ela faz amor”, reforça a cisão entre natureza e cultura, enfatizando a cultura como locus da ação transformadora do feminismo, num projeto de resgate da androginia e do polimorfismo sexual pré-culturais.

Em Gênero: uma categoria útil de análise histórica de Joan Scott (1995 [1988]), a formulação da categoria gênero também aparece vinculada à preocupação com a historicização. A contextualização também é fundamental, implicando a ênfase no caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo, bem como a rejeição ao determinismo biológico. No decorrer do texto, gênero é definido como: “elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos” (p.86); “um campo primário no interior do qual, ou por meio do qual, o poder é articulado” (p.91); e, “não faz apenas referência ao significado da oposição homem/mulher; ele também o estabelece” (p.92). A transição de uma perspectiva construcionista para uma perspectiva pós-estruturalista fica evidente na crítica ao caráter fixo e permanente das oposições binárias, que aparece ainda de modo um tanto contraditório em relação à revestida da afirmação de um caráter relacional entre as definições normativas de masculinidade e feminilidade, que devem ser contextualizadas. Há a ambição de firmar gênero como uma categoria de análise capaz de transformar paradigmas disciplinares, em vez de atuar como categoria descritiva de apenas mais um tema de estudos.

Apesar de sugerir a necessidade da abordagem integrada de gênero, “raça” e classe, ao definir gênero como campo primário, por meio do qual o poder é organizado, Scott acaba por assumir um paralelismo em relação às questões econômicas e raciais, senão uma priorização de gênero em relação a estas últimas. O corpo, assim como em Rubin, não é tematizado, embora a relação entre diferença sexual e organização social seja problematizada. Diferentemente de Rubin, Scott não tematiza a sexualidade ao pensar gênero como categoria de análise.