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II. EM SÃO PAULO: espaço e diferença

2. No circuito: uma primeira aproximação

2.1. No centro velho

Na área do centro velho, embora haja variação nos preços praticados pelos estabelecimentos, os valores de couvert artístico ou entradas são consideravelmente mais baixos que os praticados no circuito freqüentado por mulheres de estratos médios. Os

estabelecimentos são geralmente marcados por pouca sofisticação em termos de decoração e construção do ambiente e pela proximidade espacial com boates de show erótico, cinemas pornô e prostituição de rua de mulheres, michês e travestis. Além disso, são locais de fácil acesso pelo uso de transporte público. O público é mais “preto”/“pardo” e mais pobre e o estabelecimento de parcerias heterogâmicas é mais comum que nos estabelecimentos situados nos bairros de classe média.

Região central (no círculo vermelho, a sub-área da República; no azul, a sub-área do Bixiga) Fonte: Google Maps

Nessa área, a delimitação espacial de diferentes territorialidades é mais nítida, dividindo os estabelecimentos situados no entorno da Praça da República e os situados entre a Praça Roosevelt e o Bixiga.

2.1.a.) Sub-área do Bixiga

A sub-área do Bixiga, que parece ter se desenvolvido em torno do “gueto lésbico” referido nas pesquisas de Perlongher (1987) e MacRae (2005 [1983]), é marcada pela contigüidade espacial com as áreas de prostituição feminina da Rua Nestor Pestana com

Praça Roosevelt e da Rua Augusta – em torno das quais estão também vários prédios com flats e kitinetes que servem de moradia a garotas de programa e outros profissionais envolvidos na prostituição e no “mercado do sexo”. A sub-área guarda também contigüidade espacial com a Escola de Samba Vai-Vai e pontos de tráfico de psicoativos ilícitos no Bixiga e na Bela Vista. É vizinha também da área de lazer noturno decadente que tem como centro a Rua Treze de Maio56 e do começo da rua Augusta no seu trecho mais próximo ao centro. Esse trecho da Rua Augusta foi recentemente “revitalizado” pela instalação de bares e boates freqüentados por jovens de estratos médios ligados ao underground, que convivem com as casas de prostituição locais57.

A lateral da Praça Roosevelt que dá acesso ao Bixiga - ocupada, entre meados dos anos 1980 e meados dos anos 1990, por uma mistura de espaços culturais (teatro, cineclubes) e estabelecimentos dirigidos à sociabilidade homossexual masculina58 - tem estado sob grande pressão dos moradores e de estratégias de “revitalização do centro”, o que retirou os homossexuais e propiciou a ampliação da ocupação daquele espaço por teatros e barzinhos, de freqüência majoritariamente heterossexual, com exceção do bar Repertório, do qual tratarei adiante.

Essa sub-área possui uma freqüência majoritariamente feminina. Predominam pequenos bares - como o Azulzinho, o Cantinho M, o Acalanto e o Quero Mais, sempre munidos de mesa de sinuca e de karaokê, onde se canta sobretudo sucessos românticos de pagode e música sertaneja. Nessa sub-área, boates como a Êxtase, para onde se transferiu depois o bar Quero Mais, também ofereciam shows eróticos de strip-tease e sexo explícito entre mulheres em sua programação, além dos tradicionais karaokê e sinuca e do som mecânico com mistura de drag music, axé, funk e samba.

Esta região se caracteriza pela presença majoritária de mulheres de um leque de

56 Citada por Perlongher (1987) como reduto dos “malucos” e tendo vivido seus dias de glória entre os anos

1970 e início dos anos 1990

57 Mais referências sobre as adjacências dessa sub-área podem ser encontradas em duas pesquisas que estão

em curso: a de María Elvira Díaz Benitez (2008) sobre a indústria da pornografia no Rio de Janeiro e São Paulo e a de Alexandre P. Vega (2007) sobre a sociabilidade juvenil na rua Augusta.

58 Os freqüentadores do bar Corsário lotavam a rua nas sextas e sábados à noite. Falo um pouco mais sobre o

Corsário em minha dissertação de mestrado (Facchini, 2005). O Corsário era um dos espaços em que o Grupo Corsa, em meados dos anos 1990, fazia os “arrastões” em busca de potenciais participantes. As constantes reclamações de moradores e investidas policiais, que acabaram por causar seu fechamento, levaram a Comissão Organizadora da I Parada do Orgulho GLT de São Paulo, em 1997, a definir a Praça Roosevelt como local de encerramento da manifestação.

idade mais amplo – dos 20 e poucos aos 40 e poucos, concentradas na faixa dos 30 anos - e de menor poder de consumo, pela maior presença de pretas e pardas e pela predominância de pares com uma diferenciação mais evidente de atributos “masculinos” e “femininos”.

Os estabelecimentos dessa sub-área apresentam menor investimento em infra- estrutura e oferecem programação bem menos articulada a um estilo gay mais popular presente entre boa parte dos rapazes que freqüentam a sub-área da República, marcado por uma estética associada às drag queens59 e pelo que nos anos 1980 se costumava denominar de “fechação”. Nos estabelecimentos do Bixiga ouve-se funk carioca, axé, samba, MPB e sertanejo romântico, com menor presença de uma versão popular de música eletrônica – o house com vocais femininos chamado de drag music.

2.1.b.) Sub-área da República

A sub-área da República é marcada tradicionalmente pela presença de homens que procuram outros homens (Perlongher, 1987; MacRae, 2005; Barbosa da Silva, 2005; Trevisan, 2000; Green, 2000; Simões e França, 2005; França, 2006). Essa região está inserida num conjunto maior de estabelecimentos voltados a homossexuais masculinos60, onde

ocorre a busca de parceiros sexuais, tanto nas ruas com o footing, quanto em boates - que são famosas por contarem com dark room61 -, nos cinemões ou em clubes de sexo62.

Há poucos estabelecimentos de freqüência mista de homens e mulheres nessa sub- área. É o caso do Café Vermont, da Queen – ambos bares fechados que cobram pelo ingresso - e da boate Freedom. Nesses estabelecimentos há shows de drag queens e a programação musical varia entre o bate-cabelo/drag music63 e ritmos populares, como axé

59 Drag queens tornaram-se personagens visíveis na noite paulistana nos anos 1990. Segundo França (2006:

59), que estudou as mudanças que se deram no “circuito GLS” paulistano nesse período: “o termo designa homens que criam um personagem travestindo-se de mulheres, em determinadas ocasiões sem necessariamente transformar o corpo de forma definitiva e enfatizando o exagero da composição, ao incorporar personagens femininas de forma debochada”.

60

Para descrições mais detalhadas dos estabelecimentos de freqüência masculina dessa sub-área ver Simões e França (2005) e França (2006). A pesquisa de doutorado de França, conduzida a partir da Unicamp, tem se concentrado nos estabelecimentos comerciais e espaços de sociabilidade homossexual masculina.

61 Termo nativo que refere salas escuras que se encontra em partes das boates voltadas para homens

homossexuais, são destinadas a trocas sexuais.

62 Uma pesquisa sobre clubes de sexo nesta área, bem como na área de freqüência de estratos médios e

médios-altos, vem sendo conduzida por Camilo de Albuquerque Braz (2007).

63 “Drag music” é uma categoria nativa utilizada para se referir ao house dançante, fortemente marcado por

e funk. Em noites específicas, há shows de MPB, que costumam atrair uma quantidade maior de mulheres. A presença de mulheres nessa sub-área é relativamente recente. Moradora na vizinhança, me lembro de que, na segunda metade dos anos 1990, alguns dos estabelecimentos que hoje têm freqüência mista preteriam mulheres no seu atendimento, numa estratégia similar a que Warren (1998) descreve como sendo usada para afastar freqüentadores heterossexuais de bares gays nos Estados Unidos.

Essa sub-área concentra uma freqüência mais jovem – até 30 anos -, identificada com o que poderia ser chamado de um estilo “gay popular”64, incluindo estratos sócio- econômicos baixos e médios-baixos, estes últimos mais presentes no Café Vermont e na Queen, que cobram a entrada no estabelecimento, a título de couvert artístico. A boate Freedom tem como principal atividade, em termos de público, a matinê aos domingos, reunindo freqüentadores na sua maioria adolescentes. A fila, que garante “entrada VIP” aos 30 primeiros que chegarem65, começa geralmente horas antes da abertura da casa, no final da manhã.

“bate-cabelo” é outra categoria nativa usada de modo intercambiável tanto para ser referir ao mesmo que

“drag music” quanto à dança que eventualmente acompanha esse tipo de música, onde performances de drag queens são simuladas, com movimentos que giram a cabeça de um lado para outro no ritmo da música.

64 Ainda que não se trate de um estilo reconhecido como tal, sendo diferenciável a partir de características

difusas que são aproveitadas em categorias acusatórias como “bicha poc-poc” ou “pão-com-ovo”, há toda uma rede de relações e trocas que se estabelece no circuito comercial e se estende a espaços como os encontros em shopping centers e festas comunitárias organizadas em bairros afastados do centro. Nesses espaços, rapazes bastante jovens se esmeram na imitação de drag queens. Acompanhei uma festa organizada num equipamento comunitário em São Miguel Paulista, zona leste da cidade, onde o ponto alto era o momento em que adolescentes produzidos, muitas vezes acompanhados por familiares, apresentavam seus números de drag. Alguns deles, inclusive, já participavam de concursos e faziam pequenas participações em estabelecimentos comerciais centrais. Certamente, tudo isso tem relação com as sobrancelhas feitas, as roupas justas e a atribuição do nome "drag music" ao house com vocais femininos. Concordo com Perlongher (1993) e com Carrara e Simões (2007), como discutirei no Capítulo 4, quanto à inadequação de pensar os modelos classificatórios delimitados por Fry (1982) a partir de uma ótica evolucionista. Sem dúvida, a trajetória das drags no circuito comercial paulistano e os estilos focados na figura da drag mereceriam ser tomados como foco de estudo. A expressão estilo “gay popular” é usada aqui em referência a elementos como tipo de música, gírias e modos de vestir utilizados no “universo” homossexual mais popular, a fim de demarcar uma diferenciação em relação a estilos mais delimitados presentes entre homossexuais de estratos médios. É também utilizada no texto para demarcar a diferença em relação a um conjunto de estabelecimentos – os do Bixiga – que não têm qualquer afinidade com drag music ou outros elementos mais presentes em ambientes como os da República, mais freqüentados por homens ou por público misto.

Boate Freedom: pista em tarde de domingo (foto do site da casa na Internet)

Ainda nessa sub-área, há alguns estabelecimentos cujas proprietárias são casais de mulheres – como o Telepizza Laranjão66, na rua Bento Freitas, e o bar Odara, no Largo do Arouche. Esses espaços caracterizam-se por receber um público mais amplo e oferecem serviços tanto para esse público como para as mulheres, contempladas na programação com shows de MPB, confraternizações e outras atividades voltadas às freqüentadoras, que incluem amigas das donas e moradoras locais: em geral mulheres de meia idade e de estratos médios-baixos. Os casais que circulam por esses espaços variam entre pares formados por “masculina”/“feminina” e os formados por mulheres cuja estilização corporal demarca menos as diferenças de gênero.

É importante, ainda, destacar que, entre as freqüentadoras da sub-área da República, há alguma circulação por casas noturnas de freqüência predominante de estratos médios, o que pude perceber ao encontrar mulheres que vão aos bares e boates da República em outros locais, dado que se confirmou nas entrevistas realizadas. No caso das entrevistadas que citaram freqüência à sub-área do Bixiga, o mesmo não se verificou, sendo que em geral essas mulheres apenas revezam a freqüência a esse conjunto de estabelecimentos com a ida a bares, pizzarias, churrascarias próximas à moradia ou situações de sociabilidade doméstica.

66 O Telepizza Laranjão, uma pizzaria delivery também freqüentada por um público bastante variado, vem

adotando algumas iniciativas no sentido de conseguir uma maior identificação com o público de mulheres. Uma dessas iniciativas foi o apoio à VI Caminhada de Mulheres Lésbicas e Bissexuais, de 2008, marcado por uma faixa no trio elétrico da Caminhada, convidando as pessoas a conhecerem o Telepizza. Já o bar Odara foi um dos poucos estabelecimentos comerciais a ter um carro na XII Parada do Orgulho GLBT de São Paulo, que se diferenciava dos outros carros por tocar samba e MPB.

2.1.c.) Variações na área central

Algo um pouco diferente dessa descrição geral ocorre em dois estabelecimentos: o Repertório Bar e a Gruta. O primeiro foi inaugurado em 2006 na Praça Roosevelt, na sub- área do Bixiga, e apresenta um grau um pouco maior de sofisticação de instalações e programação, mais voltada à MPB do que a estilos musicais mais comerciais ou populares, o que parece estar sob o impacto de estratégias de “revitalização” do centro da cidade, assim como a multiplicação dos bares e teatros na praça. A freqüência majoritária é de mulheres de estratos médios-baixos ou médios entre 30 e 40 e poucos anos.

Gruta: (1) visão do bar; (2) show erótico (fotos do site da casa na Internet)

Gruta: (1) visão do público na pista; (2) show de samba no palco e, de fundo, corredor que dá acesso ao bar e aos banheiros e camarins (fotos retiradas do site da casa na Internet)

O segundo estabelecimento, a Gruta, situa-se nas imediações da Praça da República: é uma boate que combina traços de estilos associados à “negritude”, como o black e o samba, às características mais sexualizadas da região67. Majoritariamente

67 A área é marcada pelos muitos locais de prostituição e estabelecimentos gays com espaço para trocas

sexuais e a boate Gruta funciona num prédio que já abrigou uma das muitas casas de prostituição feminina da região.

freqüentada por mulheres – talvez numa proporção maior que o “90% feminina” prometido no flyer de divulgação -, mescla na programação shows de samba de um grupo composto exclusivamente por mulheres, de drags, de strip-tease, de MPB e o som mecânico com samba, axé, drag music, funk e black music, além de ter karaokê e sinuca. O público se concentra na faixa dos 20 e poucos a 30 e poucos anos e é composto por mulheres majoritariamente pretas ou pardas, que vêm na sua maioria de bairros afastados do centro e que também freqüentam os bares da República e a região da Bela Vista.

2.1.d.) A produção de diferença na área central

O modo como diferenciações em torno de gênero e sexualidade aparecem na área do centro velho remete a recortes de classe e geração. Entre as mais velhas, a distinção entre “masculinas” e “femininas” parece mais rígida, aderindo a padrões mais “tradicionais”. Entre as mais jovens, nem sempre há valorização da composição do par “masculina”/“feminina”, especialmente entre as que freqüentam os barzinhos da República e também circulam pelos estabelecimentos situados em bairros de classe média.

Onde existe a valorização do par “masculina”/“feminina”, sobretudo nas boates locais, percebe-se que o recorte geracional vem acompanhado de significativa diferença nas masculinidades. Um perfil mais “tradicional” geralmente pode ser visto entre mulheres com mais de 30 anos, calçando sapatos e vestindo camisa de botão, calça social ou jeans, num composto de cores sóbrias, combinado aos cabelos curtos com formas angulares. Essa aparência vem acompanhada de uma gestualidade e comportamento também característicos: elas têm o andar mais duro e gestos pausados e contidos, pouco dançam ou mal se movimentam ao dançar, permanecendo a maior parte do tempo, quando em atitude de paquera, nos cantos da casa, lugar de onde observam o movimento. Também podem estar próximas à mesa de bilhar, sempre com uma bebida na mão. São essas mulheres que mais ocupam a sinuca e as que mais parecem levar a sério o jogo, com tacadas estudadas e ar compenetrado.

Por outro lado, as mais jovens, na faixa de até 20 e poucos anos, têm uma aparência mais semelhante à de alguns rapazes da “periferia”: usam calças jeans largas, tênis de skatista ou de jogador de basquete, camisetas coloridas largas, algumas com correntes unindo os bolsos da frente e traseiros da calça, similares às utilizadas por rapazes para

compor um estilo black, piercings no queixo e sobrancelha e tatuagens. Essas garotas têm um gestual consideravelmente mais solto, movendo-se com desenvoltura pela pista de dança, fazendo lembrar o modo como rapazes dançam ritmos como black music, samba ou axé em bailes populares. Para elas, o momento da dança é um espaço privilegiado da paquera. Podem ter ou não o cabelo comprido, mas, se tiverem, ele geralmente estará sob o boné, um item que parece essencial na composição do estilo, sugerindo uma adaptação do vestuário e do gestual dos rapazes associados ao hip hop. Entre as que têm cabelos curtos, há também a possibilidade de que estejam cuidadosamente arrumados deixando topetes e/ou os fios arrepiados ou dando a impressão de estarem bagunçados.

O perfil das mulheres que se fazem acompanhar pelas “masculinas” varia menos claramente em termos geracionais, sendo muitas vezes só um pouco mais discreto entre as mais velhas, as mais gordinhas e entre algumas das que estão acompanhadas. São mulheres cuja vestimenta e gestualidade poderiam ser classificadas como “femininas”, vestindo calça jeans, bermudas, shorts ou saias sempre justos e blusinhas coladas ao corpo e decotadas, muitas vezes deixando a barriga à mostra. Nos pés, sapatos ou botas de salto e sandálias. O visual se completa com brincos e colares que chamam a atenção em meio aos cabelos sempre longos, muitos tingidos de loiro ou alisados e arrumados de modo a parecerem mais lisos. Essas mulheres parecem beber menos e, em geral, dançam com muita desenvoltura e de modo a explorar uma “sensualidade feminina”, que parece inspirada nas performances de dançarinas de axé ou de funk carioca, passistas de escola de samba e nas sex symbols dos vídeo-clipes de black music norte-americana.

Assim como a dança e a cuidadosa composição do visual, a gestualidade parece fruto de um treinamento. Isso é especialmente notável nos pares mais jovens. Se entre as “femininas” a dança e os gestos são minuciosamente marcados por características como delicadeza e sensualidade, entre as “masculinas”, o olhar, o jeito de parar o corpo, de posicionar as mãos e a cabeça, de bater o cigarro ou de segurar a bebida também parecem, muitas vezes, resultado de algum tipo de treinamento cuidadoso.

Nessa direção, as danças em pares, além de um momento privilegiado de paquera, colocam em ação verdadeiras performances teatrais, nas quais nota-se não apenas o

investimento em aprender a coreografia68 - é impressionante como as garotas na faixa dos 20 anos dançam bem nesses espaços - como também em encenar machos fortes e galantes e fêmeas sensuais e fatais69.

A valorização da performance na dança faz com que se torne item especial da programação, com concursos de dança em meio ao show de drag, que normalmente atua como se fosse uma apresentadora engraçada de um programa de variedades. Nesses concursos, que acompanhei algumas vezes na Gruta, são chamadas ao palco “masculinas” e “femininas”, que são entrevistadas e convidadas a dançar: para as “femininas”, toca-se samba, axé ou funk e, para as “masculinas”, black music, para não ferir a masculinidade. As donas das melhores performances ganham aplausos e brindes, além de popularidade70.

Nas boates freqüentadas por mulheres no centro velho, as parcerias estabelecidas são orientadas quase exclusivamente segundo o padrão “masculina”/“feminina”, com raras variações que admitem “feminina”/“feminina”, mas nunca o par “masculina”/“masculina”. Por diversas vezes acompanhei, ao longo da noite, o isolamento de garotas que poderiam ser consideradas bonitas e que seriam paqueradas em outros estabelecimentos, mas que não se adequavam a uma estilização marcadamente “feminina” ou “masculina” ou que tinham um estilo de feminilidade mais discreto. Eu mesma, que poderia ser classificada como alguém que tem uma performance mais ambígua, cheguei a jogar com vários estilos de roupa para ir a essas boates. Geralmente, permanecia como se estivesse invisível para as freqüentadoras. Numa dessas vezes, apesar dos cabelos curtos, lancei mão de um pouco mais de maquiagem, decote na blusa e uso de salto e o resultado se fez sentir: a garçonete no bar já me atendeu de modo mais atencioso. Estilizações corporais ou performances de gênero ambíguas ou que sejam menos marcadamente estilizadas para compor um par que

68 Toda a valorização e a qualidade da performance na dança faz pensar nas descrições de Hermano Vianna

(1988) acerca das reuniões domésticas para ensaiar os passos de funk que seriam executados mais tarde no salão. O fato de que não tenha me aprofundado no contato com essas mulheres não permite afirmar que o investimento na dança chegue a esse ponto, mas certamente envolve um treino que, se não é feito em grupo na residência de alguma delas, tem relação com a própria freqüência habitual a esse estabelecimento e/ou outros, voltados para homossexuais ou não, onde esses estilos musicais predominam. Uma entrevistada que