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I. ESTAMOS EM TODOS OS LUGARES E EM TODAS AS PROFISSÕES

2. Como pensar a (homo)sexualidade?

Boa parte dos trabalhos produzidos entre as décadas de 1950 e 1970, a que tive acesso, não delimitavam mais precisamente a base sobre a qual se fundaria a “comunidade”. Para Lezznoff e Westley (1998[1956]), a homossexualidade tem sua “significância minimizada e obscurecida” por ser tabu social, e homossexuais são descritos, entre o minoritário e o desviante, a partir das sujeições sociais a que estão submetidos - sanções sociais e legais, isolamento psicológico – e de suas relações sociais num grupo desviante. A “comunidade” teria por base a circulação de sujeitos e de valores, que se dá a

partir da troca de parceiros sexuais entre diferentes grupos. Albert Reiss (1998[1961]) não define o que chama de “homossexual” ou de “comunidade”; em seu artigo, homossexual parece ser uma categoria social que pode ou não ser acionada pelos que têm práticas sexuais com pessoas do mesmo sexo. Para Nancy Achilles (1998[1967]), a “comunidade” bem como suas “instituições”, que devem suprir bens, serviços e interação social, estão relacionadas a uma situação social particular em que indivíduos se sentem estranhos ao “sistema social” e criam “subculturas”. Carol Warren (1998[1974]) parece definir a “comunidade” a partir de uma situação de segredo e estigmatização que define limites temporais e espaciais. Para Esther Newton (1978[1972]), comunidades homossexuais são fenômenos urbanos, não incluem todos os que têm práticas sexuais com pessoas do mesmo sexo e nem mesmo todos os que se definem como homossexuais, não implicam unidade ou união, são perpassadas por distinções de “raça”, sexo, classe, geração e nacionalidade, têm alguns centros (organizações ativistas, bares, grupos de amigos) e se comunicam, principalmente, pela mobilidade pessoal.

O primeiro trabalho a propor uma teorização sociológica acerca da homossexualidade data do final dos anos 1960. Em The homosexual role, Mary McIntosh (1998[1968]) chamava atenção para a necessidade de diferenciar um olhar sociológico do olhar de outras ciências, para as quais a homossexualidade era uma “condição”, algo que se tinha ou não, que poderia ser vista como inata ou adquirida. Frente aos resultados inconclusivos dos estudos sobre etiologia, McIntosh afirmava que, talvez, não se tratasse de falta de rigor científico ou de inadequação das evidências acessíveis: as perguntas é que estariam erradas. A partir da idéia de uma “sociologia comparada”, a autora via a possibilidade de tomar como objeto de estudo a própria concepção que afirmava a homossexualidade como uma condição.

Para ela, essa concepção operaria como uma forma de controle social numa sociedade em que práticas homossexuais eram condenadas, marcando-as e segregando os desviantes, como uma categoria especial de indivíduos. A partir da segregação, parte dos classificados tendia a adotar a classificação para si mesmos. No entanto, a aplicação da categoria não dependia da atividade homossexual em si mesma. McIntosh argumentava que “homossexual” podia ser visto como um “papel social”,em vez de uma “condição”, e não se tratava simplesmente de descrever um determinado padrão de comportamento sexual:

O termo papel é, certamente, uma forma concisa/simplificada que se refere não somente a uma concepção cultural ou conjunto de idéias, mas também a um complexo de arranjos institucionais que depende de e reforça essas idéias. Esses arranjos incluem todas as formas de atividades heterossexuais, namoro e casamento, bem como de processos de rotulação – fofoca, escárnio, diagnósticos psiquiátricos, condenação criminal – e os grupos e redes de subcultura homossexual. Para clarificar, podemos simplesmente dizer que um papel especializado existe. (McIntosh, 1998[1968]: 72 – tradução livre)

Desse modo, as ciências sociais começavam a construir a homossexualidade como um problema de pesquisa, e tinha início o longo debate que contrapôs perspectivas essencialistas33 e construcionistas. Esse debate mobilizou grande quantidade de estudos, especialmente entre meados dos anos 1970 e o final dos anos 1980. Nesse momento, pesquisadores procuraram sustentar seus argumentos por meio de pesquisas em outras épocas e lugares. Embora crescesse a disjunção entre o debate teórico e o que podia ser diretamente aplicado em debates políticos, nesse período se constituiu boa parte do arcabouço teórico-conceitual utilizado ainda hoje, não só por pesquisadores, como por ativistas.

Cerca de uma década depois da publicação do artigo de McIntosh, Frederic Whitam (1998[1977]), autor com grande influência entre os que adotaram uma perspectiva essencialista, questionava a propriedade do uso de “papel social” para a abordagem da homossexualidade: não se tratava de um comportamento socialmente prescrito, de acordo com os quais as pessoas fossem socializadas, nem se tratava de haver possibilidade de escolha, como no caso de ocupações profissionais. Whitam argumentava que a homossexualidade devia ser tratada como uma “orientação sexual” visto que: 1) dados de diferentes pesquisas indicavam que desejos homossexuais são relatados por muitos, desde a infância, e que a maioria dos homens que se definiam como predominantemente hetero ou homossexuais, já haviam experimentado tais desejos, até por volta dos 17 ou 19 anos de idade; 2) relatos de diferentes épocas e sociedades mostram uma aparente universalidade da homossexualidade apesar da aparente ausência universal de um papel homossexual.

Perspectivas essencialistas e universalizantes foram confrontadas tanto por surveys que seguiam a tradição inaugurada por Alfred Kinsey, quanto por um crescente refinamento

33 De acordo com Vance (1989: 14), o essencialismo pode tomar várias formas no estudo da sexualidade: uma

crença em que o comportamento humano seja “natural”, predeterminado por mecanismos genéticos, biológicos ou fisiológicos não sujeitos a mudanças; ou a noção de que comportamentos humanos que mostrem alguma similaridade na forma são os mesmos, guardam uma tendência, essência ou direção subjacente.

conceitual. A partir de um dos maiores surveys realizados após Kinsey34, Alan Bell e Martin Weinberg (1998[1978]) argumentavam a necessidade de falar em “homossexualidades”, visto que “homens e mulheres homossexuais adultos” formavam um grupo diverso, e que seus dados de pesquisa demonstravam a necessidade de especificar “raça”, sexo, idade e, muitas vezes, níveis educacionais e de ocupação, para que se pudesse delinear qualquer conclusão particular sobre eles.

Influenciados tanto por Kinsey quanto pelo interacionismo simbólico, Willian Simon e John Gagnon (1973) enfatizavam que as condutas sexuais poderiam ser entendidas como produto de um complexo processo de desenvolvimento psicossocial. Desse modo, propunham que a sexualidade fosse investigada no nível dos significados subjetivos, argumentando que os atos sexuais não têm significados inerentes e que nenhum ato é inerentemente sexual. As redes de significados em torno do que é designado como sexual seriam, então, tecidas por indivíduos e sociedades no curso da interação e ao longo do tempo: a atribuição de significados subjetivos às interações entre os atores desenvolveria “scripts sexuais” que lhes serviriam de guia em suas interações sexuais futuras.

Se o interacionismo simbólico contribuiu para desbancar a idéia de uma sexualidade “natural”, foi a chamada “teoria da rotulação”, da qual McIntosh é vista como precursora, que desafiou a utilização de “homossexual” como uma categoria natural e trans-histórica. A partir de uma revisão de estudos no campo da História, McIntosh nota que, até o século XVII, questões relacionadas à homossexualidade aparecem na forma de relatos sobre “sodomia” ou “garotos tomados para propósitos imorais”, que não eram apresentados, contudo, como situações incomuns. No final do século XVII, os estudos localizam na Inglaterra as primeiras referências a uma “subcultura homossexual rudimentar”, mas a autora observa que os termos usados naquele contexto remetiam à efeminação e, em especial, ao travestismo. Após um incremento na “vida homossexual”, durante o século XVIII, a ênfase no travestismo havia decrescido em importância no século XIX.

Influenciados pela “teoria da rotulação” de McIntosh e pela perspectiva interacionista de Simon e Gagnon, os estudos de Jeffrey Weeks (1977) na área da história ofereceram subsídios empíricos para a idéia de uma gênese do “homossexual moderno”.

34 Trata-se de um survey envolvendo homens e mulheres homo e heterossexuais, realizado na Califórnia no

Sua perspectiva era crítica quanto à abordagem da homossexualidade como um “problema” separado, explorado de modo isolado de outros fenômenos sociais. Ao estabelecer uma distinção entre “comportamento homossexual” e “identidade homossexual”, argumentava que, apesar de indícios da emergência da designação de homossexuais como desviantes, no final do século XVII, a forma moderna, associada a noções de “homossexualidade exclusiva” e “condição homossexual”, se cristaliza apenas no final do século XIX e coincide com uma profunda hostilidade acerca da homossexualidade.

Para ele, tais desenvolvimentos só podem ser compreendidos como parte de uma reestruturação da família e das relações sexuais associadas ao triunfo da urbanização e do capitalismo industrial, a partir da qual emergiram noções modernas como: “a dona-de- casa”, “a prostituta”, “a criança” e “o homossexual”. Com base na afirmação de Simon e Gagnon de que a sexualidade “está sujeita à moldagem sócio-cultural num grau ultrapassado por poucas outras formas de comportamento humano” (apud Weeks, 1977: 2), o autor afirma que a sexualidade aparece “menos como determinante da identidade de gênero e mais como veículo para expressar papéis sociais culturalmente determinados” (Weeks, 1977: 2).

Também influenciado pela “teoria da rotulação”, Kenneth Plummer (1981) enfatiza o modo como o “papel homossexual” se constitui nos anos 1970, com a rejeição da patologização e a criação de uma regulação exercida pelos próprios homossexuais, que os levaria a uma proliferação de tipos e a segregação auto-imposta crescentes. Invertendo a questão sobre a causa da homossexualidade, Plummer se pergunta sobre o que faz as pessoas reagirem do modo como reagem à homossexualidade. Embora reconheça o forte impacto simbólico da idéia de “homofobia” na ação ativista, o autor relaciona o que percebe como dificuldades para o seu uso nas ciências sociais: reforçaria a visão de “doença mental”; sua explicação mais comum, a partir da idéia de ameaças à masculinidade, negligenciaria as mulheres; desviaria o foco de uma opressão sexual mais geral; e, principalmente, individualizaria o problema da hostilidade ao invés de situá-lo como uma questão social35.

35 Durante os anos 1970, Plummer trabalhou em torno da idéia de um “tabu homossexual” que relacionava a

hostilidade a homossexuais a receios acerca de ameaças à ordem social. Segundo o autor, tais receios e reações hostis poderiam se tornar mais intensos sob certas formas de organização social.

Ao analisar os modos pelos quais os indivíduos são caracterizados como homossexuais, Plummer questiona a idéia de que uma “identidade” seja decorrente do desenvolvimento de uma “orientação sexual”, afirmando que não há congruência entre práticas, pensamentos e sentimentos, nem mesmo ligação necessária entre qualquer desses elementos e a classificação de alguém como “homossexual”. Esse argumento foi retomado nos anos 1990, num survey conduzido nos Estados Unidos com 3.432 participantes (Laumann et al, 1994). De acordo com os resultados, comportamento, desejo e identidade deveriam ser considerados diferentes eixos de análise, uma vez que não havia inter-relação necessária ou congruência na forma como se apresentavam distribuídos na amostra. Entre as mulheres, apenas 15% relataram desejo, comportamento e identidade homossexual, ao passo que desejos pelo mesmo sexo foram relatados por 59% e 13% relataram comportamento sem forte desejo ou identidade decorrente. A análise dos autores relacionava a variabilidade à maneira como a homossexualidade está organizada subjetivamente como conjunto de comportamentos, práticas e experiências.

Com a publicação de História da sexualidade e sua tradução para o inglês, Michel Foucault (1977) torna-se aos poucos a referência mais conhecida de uma perspectiva construcionista36. Seu trabalho teoriza a dimensão histórica da sexualidade, deslocando o questionamento acerca da repressão do sexo para uma indagação acerca de como o sexo é produzido através de uma teia de discursos de saber e poder. Sua reflexão sobre o poder colocava em questão uma mecânica essencialmente repressiva, para dar lugar a uma concepção capilarizada e produtiva de poder. Desse modo, localizava o “ideal emancipatório” dos discursos críticos37 na mesma rede histórica que eles próprios denunciavam.

36 Em entrevista realizada por Judith Butler, Gayle Rubin (2003: 184 e 193) tece críticas ao fato de que se

atribua a Foucault o papel de criador da teoria da “construção social”, subestimando pesquisadores como McIntosh, Weeks e Plummer e tantos outros, que pagaram um preço alto em suas carreiras por pesquisarem um tema que não estava institucionalizado na academia. Rubin frisa, ainda, que boa parte da produção existente era feita por pesquisadores ingleses e norte-americanos e que a História da Sexualidade se tornou acessível com sua tradução para o inglês, em 1978, reforçando conclusões a que outros estudos na época, como os de Weeks e os dela mesma, estavam chegando.

37 As considerações críticas de Foucault a um “ideal emancipatório” devem ser tomadas no contexto a partir

do qual escrevia: tratava-se de um momento em que os “movimentos libertários” tinham grande visibilidade e operavam sua argumentação por meio de um discurso freudo-marxista que enfatizava a idéia de que o poder operava a partir de um mecanismo repressivo e que a sexualidade era foco privilegiado dos mecanismos de repressão.

Ao refletir sobre a produção do sexo em discurso, Foucault situava um regime de poder-saber no qual técnicas, saberes e instituições produziriam um efeito de verdade. Entre a explosão discursiva do século XVII, e a gestão do sexo por especialistas e poderes públicos do século XVIII, o sexo é progressivamente tomado como um segredo que é necessário desvendar e torna-se objeto de disputa entre o Estado e o indivíduo. Entre os séculos XVIII e XIX, o autor situa a sobreposição entre um “dispositivo de aliança”, cujo foco de controle é centrado no casal monogâmico, heterossexual e nas relações permitidas ou não, e um “dispositivo de sexualidade”, então nascente, cujo foco são as sexualidades periféricas (homossexualidade, sexualidade das crianças, obsessões, manias). A “sexualidade” nasce, assim, “de uma técnica de poder que, originalmente, estivera centrada na aliança”, funcionando “em atinência a um sistema de aliança e apoiando-se nele” (Foucault, 1977: 102). Desse modo, a sexualidade é desnaturalizada e historicizada:

A sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo histórico: não à realidade subterrânea que se apreende com dificuldade, mas à grande rede de superfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências encadeiam-se uns ao outros, segundo algumas estratégias de saber e poder. (Foucault, 1977: 100)

A mesma transformação mais ampla que dá origem a formas de controle estruturadas em torno da disciplina e ao crescente poder de especialistas, especialmente no campo da medicina, faz surgir a noção moderna de homossexualidade, a partir do “dispositivo de sexualidade”:

A sodomia – a dos antigos direitos civil ou canônico – era um tipo de ato interdito e o autor não passava de seu sujeito jurídico. O homossexual do século XIX torna-se uma personagem: um passado, uma história, uma infância, um caráter, uma forma de vida, também é morfologia, com uma anatomia indiscreta e, talvez, uma fisiologia misteriosa. (...) A homossexualidade apareceu como uma das figuras da sexualidade quando foi transferida, da prática da sodomia para uma espécie de androgenia interior, um hermafroditismo da alma. O sodomita era um reincidente, agora o homossexual é uma espécie. (Foucault, 1977: 93-4)