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Cixous e a escrita transformadora

No documento A diferença dos sexos: Lacan e o feminismo (páginas 57-66)

1. LACAN E O FEMINISMO FRANCÊS

1.2 Cixous e a escrita transformadora

“Aqui encontramos o inevitável homem das pedras, sustentando-se ereto em seu antigo reino freudiano, na maneira em que, para recuperar a velha figura do ponto em que a linguística é conceitualizada como “revigorante”, Lacan a preserva no santuário do phallus (ø), “protegido” da falta referente à castração. O “simbólico” deles existe, ele detém poder.”

— Hélène Cixous (1975/1981, p. 255; trad. nossa) Hélène Cixous é professora universitária, poeta, filósofa, dramaturga, crítica literária e feminista nascida na Argélia, em 1937. Escreveu diversas peças de teatro, ficções e ensaios. “No final dos anos 70 e durante os anos 80, Cixous se tornou uma das feministas francesas mais frequentemente citadas [...], tornou-se mais militante [...] e se associou ao grupo de mulheres “Politique et Psychanalyse” (IVES, 2013, pp. 21-22), comandado por Antoinette Fouque, uma das figuras mais importantes desse cenário. Sua escrita é um complexo de teoria e ficção, de concessões estratégicas e recusas de certas ideias. Cixous também se dedica à desmontagem de poderosas

narrativas, mitos e lendas presentes na literatura ocidental que acabam por balizar nosso imaginário.

“Le rire de la méduse” (1975), para os nossos fins, é o trabalho de Cixous mais relevante — por ser o que mais abertamente debate com a psicanálise. Seu clima é de uma convocação a que as mulheres recorram a seus corpos como forma de expressão, ao invés de permanecerem enclausuradas pela linguagem opressora estruturada aos moldes masculinos. Esse texto é cheio de alusões literárias e defende um modo feminino e inovador de escrita. Incita-se escrever o corpo: “Se não se escreve, alguém vai escrever (sobre) você [...], você será editada, selecionada, controlada [...]” tal como Ives (2013, p. 40) interpreta a visão de Cixous de seu entorno.

Nunca teria havia no mundo ocidental, segundo Cixous (in MARKS; DE COURTIVRON, 1975/1981, p. 248), uma escrita que inscrevesse a feminilidade. Na sua esmagadora maioria, a escrita era masculina, feita por homens, e as representações das mulheres na literatura provinham do que eles diziam a respeito delas, associando-as a adjetivos como ‘sensível’, ‘sonhadora’ e ‘intuitiva’. Ou seja, no universo da escrita, também, a repressão e a inferiorização da mulher é perpetuada.

Ao lado de Catherine Clément, Cixous publica em 1975 outra obra de grande repercussão no meio, La jeune Née, propondo que seria através da escrita que a mulher se colocaria por si mesma dentro da história — seja através da identificação com a mulher heroica da ficção, na proposta de Cixous; ou com a histérica e a feiticeira, para Clèment (WRIGHT in BRENNAN, 1997, p. 199) — Dora, paciente histérica de Freud, serviria como representação da mulher que ousou ir contra todo o poder do homem encarnado no mestre de Viena, que pretendeu lhe imputar seu saber, abandonando-o.

A descoberta da obra de Clarice Lispector foi de extrema importância para Cixous, considerada por ela uma escritora que legitimamente manifestava em seu texto a “escrita feminina”. Assim como Gide e Beckett, tratava de temas caros a Cixous: a relação entre viver e escrever e o fluxo da linguagem (IVES, 2013, p. 22). Em Lispector, Cixous (cf. Vivre l’orange) confessa ter encontrado o vínculo entre um uso muito peculiar da linguagem e sociedade: “Cixous recorre a Clarice Lispector para ilustrar a conexão entre escritura do feminino e transformação social” (BRENNAN, 1997, p. 32).

Ao lado de Irigaray, Cixous persegue um tipo de escrita que implemente a diferença sem que se acionem oposições hierarquizadas duais, recorrendo também à différance de Derrida, mas expande seu alcance para o teatro. O teatro serviria como

uma forma de “espacializar” esse tipo de escrita, seria como uma fala escrita que pede troca de subjetividades (SCHIACH in BRENNAN, p. 218) — Cixous cria as peças Le nom d’Oedipe e Retrato de Dora, claramente tomando personagens da psicanálise como tema a ser reinterpretado.

Por sinal, no Seminário XXIII, Lacan aborda essa última peça de teatro de Cixous:

Gostaria de apresentá-los, ou de evocar, para aqueles que já a conhecem, a alguém de quem gosto muito e que se chama Hélène Cixous. Ela já tinha feito, parece, uma notinha sobre Dora em um número esgotado de Littérature, em que eu mesmo lancei “Lituraterra”, e depois fez uma peça, O retrato de Dora, que está sendo encenada do Petit Orsay. Achei que não está nada mal. Disse o que pensava a esse respeito àquela a quem chamo de Hélène desde quando a conheci, e lhe disse que falaria disso. (LACAN, 1975- 76/2007, pp. 101-2)

Inicialmente, Lacan comenta a atuação dos atores, e depois trata da histeria ali encenada — “incompleta” (LACAN, 1975-76/2007, p. 102) para ele, já não teria levado em conta que, nesse tipo clínico, é “sempre dois” (LACAN, 1975-76/2007, p. 102) que estão em cena.

Retornemos. Assim como os trabalhos de Irigaray, “Le rire de la méduse” faz duras críticas ao falogocentrismo, tal como concebido por Derrida. Condena-se a lógica binária que opera por oposições entre termos, como masculino e feminino (IVES, 2013, p. 63). Nesse quadro, o que se diz sobre a mulher parte do par de opostos atividade/passividade — assim, a mulher é tida “como continente negro a ser penetrado e pacificado” (CIXOUS in MARKS; DE COURTIVRON, 1975/1981, p. 247). Para que tal empreitada seja bem sucedida, deve-se desterritorializá-la, ou seja, retirá-la do seu corpo. A mulher — seu corpo, sua sexualidade — teria sido reprimida na cultura ocidental e recalcada no interior da psicanálise. O que se diz sobre ela é o que um homem consegue dizer sobre ela, ou seja, quase nada: mistério. Daí a mulher falar de si, escrever sobre si e se inscrever, construir por ela própria uma representação de si. “A mulher deve se colocar em texto — assim como no mundo e na história — pelo seu próprio movimento” (CIXOUS, n MARKS; DE COURTIVRON, 1975/1981, p. 245). O terreno de ação a ser destacado nesse projeto não é o universo econômico ou o mundo do trabalho, mas a sexualidade feminina sempre emudecida.

Para Cixous, não se deve tomar como ponto de partida a visão, ou o registro especular, da anatomia corporal como ponto de partida para se conceber a diferença

sexual, mas o gozo (jouissance). A questão, para Cixous, é, contudo, onde se localiza esse gozo e como escrevê-lo: “Como eu experiencio meu prazer sexual?... O que é o gozo feminino, onde ele acontece, como ele se inscreve – no nível do corpo dela ou no inconsciente dela? E então, como pode ser escrito?” (CIXOUS, 1975/1986, p. 35). É a escrita desse gozo — do, no e através do corpo — o que retiraria a mulher do silêncio reservado a ela por meio do Simbólico, afirma Cixous nesse texto. Trata-se, então, de criar novas imagens, novas formas de representação da sexualidade; de deturpar regras gramaticais, desrespeitar a sintaxe e toda forma de funcionamento determinado pelo simbólico formatado de modo masculino.

É somente pela escrita, da e na direção da mulher, assumido desaviar o discurso que tem sido governado pelo falo, que as mulheres se confirmarão mulheres em outro espaço que o reservado a ela no e pelo simbólico, ou seja, um lugar outro que o silêncio. (CIXOUS in MARKS; DE COURTIVRON, 1975/1981, p. 251; trad. nossa)

Na proposta de Cixous, é como se o corpo tivesse sido confiscado da mulher no sistema patriarcal; portando, trata-se de repossui-lo. Escrever seria a forma de restituir o que lhe foi roubado: sua voz, sua sexualidade, seu prazer, seu desejo e seu gozo.

O corpo da mulher deve ser liberado; e, para que possa se falar disso, para que possa ser tratado como questão, ele deve se confundir com o texto: sext. Texto e corpo são como que coextensivos — censurar o corpo implica censurar que a mulher possa inscrever-se em texto, como já havia denunciado Irigaray. Escrever seria uma forma de transcendência.

“A escrita é precisamente [o lócus] da possibilidade de mudança, o espaço que pode servir como trampolim para o pensamento subversivo, o movimento precursor da transformação social e das estruturas culturais” (CIXOUS in MARKS; DE COURTIVRON, 1975/1981, p. 249). Para que haja esse tipo de transformação, “a mulher deve escrever através de seu corpo, deve inventar uma linguagem inexpugnável que demole repartições, classes, e retóricas, regulações, códigos [...], a gramática e linguagem dos homens” (CIXOUS in MARKS; DE COURTIVRON, 1975/1981, pp. 256-7).

E na radicalidade de sua proposta, Cixous chega a requisitar outra linguagem para a mulher:

Se a mulher sempre funcionou dentro do discurso do homem, um significante que sempre se remeteu ao significante oposto que aniquila sua energia específica, que diminui ou asfixia seus sons específicos, é tempo de deslocar esse dentro, explodi-lo (...) e inventar para ela uma nova linguagem na qual se inserir. (CIXOUS in MARKS; DE COURTIVRON, 1975/1981, p. 257; grifo nosso; trad. nossa)

Intervir nos códigos linguísticos, criar novas palavras, alterar sufixos, derrubar regras gramaticais, “escrever e, assim, forjar para ela uma arma anti-logos” (CIXOUS in MARKS; DE COURTIVRON, 1975/1981, p. 250). Ou seja, esse tipo de escrita, assim como descreve Irigaray, não pretenderia edificar essências, uma identidade feminina, já que tal estratégia é falogocêntrica. Há de se ir contra qualquer proposta de fundamentação identitária: é o sistema que deve mudar, não seus elementos. A proposta é a de uma escrita que desconstrua a linguagem falocêntrica- patriarcal, já que “a mulher foi mantida na escuridão no que diz respeito a si, conduzida ao desdém quanto a si graças à grande armada do falocentrismo parento-conjugal [...]”. Tal sistema objetivaria formatar o universo pulsional da mulher, “surpreso e horrorizado pelo fantástico tumulto das pulsões dela” (CIXOUS in MARKS; DE COURTIVRON, 1975/1981, p. 246).

Prega-se o retorno ao modo de funcionamento do período pré-edípico como tábua de salvação, um período ainda não submetido à lei e à formatação regulatória que exige a perda do caráter subversivo e disruptivo da pulsão à medida que se dirige à sua finalidade genital.

Esse projeto toma muito cuidado em não cair em outro tipo de “falocentricidade”. Pois, caso isso acontecesse, é como se agora fossem as mulheres a reclamar o falo, e não é disso que se trata — mas sim de subverter o mecanismo que opera a lógica masculina. Ao feminino se acoplam o irracional, o intuitivo, ou seja, o não masculino — que aponta para o fixo. Nesse sentido, a escrita feminina não pode ser definida: definições implicam confinamento, codificação — ou seja, pressupõem a falocentricidade. Na fase pré-edípica, a diferença sexual ainda não se implantou no psiquismo. Nesse sentido, esse tipo de escrita não seria restrito às mulheres, anatomicamente falando — homens também poderiam ter acesso a ela. “Poetas resvalam, em alguma medida, na mulher” (CIXOUS in MARKS; DE COURTIVRON, 1975/1981, p. 249), ou seja, poetas teriam um acesso privilegiado ao inconsciente, instância onde a mulher sobrevive como reprimida. Daí todo o deslumbramento de

Cixous por Joyce, que tanto pretendeu desmantelar a linguagem, suas regras; favorecer a musicalidade e uma nova poética.

Como a escrita é submetida a processos históricos e culturais, ela pode ser transformada, e não mais reduzida aos padrões masculinos. Tais transgressões femininas recairiam sobre a “surdez do ouvido do homem, que escuta na linguagem somente o que é falado no masculino” (CIXOUS in MARKS; DE COURTIVRON, 1975/1981, p. 251).

Segundo Cixous, “não existe a cisão, a divisão feita pelo homem comum entre a lógica do discurso oral e a lógica do texto, ligada, assim como ele, a uma antiquada relação — servil, de cálculo — à mestria”. Seria através do corpo que a mulher daria suporte à logica do seu discurso: “ela fisicamente materializa o que está pensando; ela o significa no seu corpo [...] porque ela não nega [o caráter] intratável e passional que participa da fala” 9. Na escrita da mulher prevaleceria a musicalidade que Cixous aproxima da voz da mãe. “Mesmo que a mistificação fálica tenha geralmente contaminado as boas relações, uma mulher nunca está distante de sua mãe [...]. Há sempre nela um mínimo do bom leite materno. Ela escreve em tinta branca” (CIXOUS in MARKS; DE COURTIVRON, 1975/1981, p. 251).

Ou seja, nessa ótica, falo = pai. E Cixous se restringe à vertente de imaginarização do falo na figura paterna, contra a qual a mulher deve se rebelar e retornar ao materno, pré-simbólico — período no qual as pulsões ainda estariam em estudo bruto, indomadas: “a economia das suas pulsões é prodigiosa [...] a libido dela irá produzir efeitos ainda mais radicais em prol de mudanças políticas e sociais do que somos capazes de pensar” (CIXOUS in MARKS; DE COURTIVRON, 1975/1981, p. 252). Enquanto a sexualidade masculina gira em torno do pênis, a “libido da mulher” não se centralizaria em uma parte específica do corpo a prevalecer sobre outras. Ou seja, trata-se de uma sexualidade cujo caráter libidinal não se inscreve a partir de limites predeterminados. E esse “estilo” deve ser transposto à (nova) linguagem.

Nesse sentido, contra o teatro falocêntrico que impõe a diferença sexual, a repartição hierarquizante homem-mulher, proclama-se dar voz à bissexualidade primordial:

9 “Você, Dora, você a indomável, o corpo poético, você é a verdadeira “mestra” do Significante” (CIXOUS, 1975/1981, p. 257).

Bissexualidade: o posicionamento no self de cada um da presença — que se manifesta variada e insistentemente de acordo com cada pessoa, homem ou mulher — de ambos os sexos, não exclusão nem da diferença nem de um dos dois sexos e, a partir desta “self- autorização”, multiplicação dos efeitos de inscrição do desejo, por todas as partes do meu corpo e do corpo do outro. (CIXOUS in MARKS; DE COURTIVRON, 1975/1981, p. 254; trad. nossa)

As mulheres tenderiam a ser mais beneficiadas pela bissexualidade enquanto o homem insistiria em manter sua “gloriosa monossexualidade fálica”, a ideologia falocrática. E por quê? “Por medo de se tornar uma mulher!”. Seria por isso que toda ciência, em que prevalece a visão masculina, inclusive a psicanálise, “foi constituída para reprimir a feminilidade” (CIXOUS in MARKS; DE COURTIVRON, 1975/1981, p. 254).

Simbólico, falo, linguagem, libido: todos elementos cruciais para psicanálise a terem sido elaborados aos moldes do masculino e com fins de manter o poder na mão dos homens, o que necessariamente exige a submissão da mulher — termo que funciona como sua exclusão constitutiva . Mas não só, desejo e falta também. E a negativização da mulher enquanto sujeito, na trama edípica, promoveria a positivação do homem:

Mas não somos obrigadas a depositar nossas vidas nos bancos da falta deles, a considerar a constituição do sujeito nos termos de um drama mutiladoramente reencenado, a constantemente reinstalar a religião do pai [...] Não temos motivos femininos para mantermos laços de fidelidade ou obediência-submissão ao negativo. (CIXOUS in MARKS; DE COURTIVRON, 1975/1981, p. 255; trad. nossa)

Adiante, agora abertamente em confronto com a letra lacaniana:

Não li ‘A significação do falo’? E sobre a separação, e sobre aquela parte do eu que, para nascer, deve-se submeter a uma ablação – uma ablação, eles dizem, sempre a ser celebrada pelo seu desejo? [...] O que é o desejo originado a partir de uma falta? Um desejo bem escasso. (CIXOUS in MARKS; DE COURTIVRON, 1975/1981, p. 262; trad. nossa)

Cixous proclama que a mulher tem, sim, um desejo próprio, e não aquele fundado a partir da falta de uma parte do seu corpo, constituído pela sequência: falta de pênis – castração – inveja do pênis. O desejo feminino não nasceria da privação de uma parte do corpo (ou da vingança por não ter um pênis): “eu não quero um pênis a decorar meu corpo” (CIXOUS in MARKS; DE COURTIVRON, 1975/1981, p. 262). Por fim,

aconselha a postura que a mulher deveria ter frente à psicanálise falicizante, já que aquela sempre foi

remetida pela força de um trapaça a um lugar preciso na cadeia formada em beneficio de um significante privilegiado. (Nós) como remendos de uma cadeia que conduz, senão ao Nome-do-Pai, então, em um novo giro, ao lugar da mãe-fálica. Cuidado, minha amiga, ao significante que te remeteria a autoridade de um significado (...). Quebre o ciclo: não permaneça dentro do encerramento psicanalítico. Dê uma olhada, depois rompa. (CIXOUS in MARKS; DE COURTIVRON, 1975/1981, p. 263; trad. nossa)

Cixous, se admirada por muitos, teve dois dos seus principais estandartes vistos como dúvida dentro do próprio feminismo, como procede Schiach, em dois momentos. O primeiro, pela associação direta entre simbólico e poder:

Podemos verificar então que o ‘simbólico’ nos leva ao cerne dos problemas tratados nesse livro [O riso da Medusa], mas isso também o faz o próximo termo da citação: ‘poder’. Cixous, nesse ponto, equacionou o poder com o simbólico. Não tenho certeza de que essa seja uma equação que todos estariam prontos para aceitar. (SCHIACH in BRENNAN, 1997, p. 207)

O segundo, pela própria engrenagem comum entre o projeto da escrita feminina e mudanças sociais:

O projeto é extremamente pessoal e, às vezes, explicitamente autobiográfico. Ele faz sentido em referência à própria prática textual de Cixous em seus romances e contos. Ela não consegue, todavia, nem mesmo em nível polêmico, manter consistente a equação entre o que as mulheres devem fazer para mudar seu espaço político e cultural e as estratégias da escrita feminina. (SCHIACH in BRENNAN, 1997, p. 213)

Apresentados tais comentários, façamos agora uma breve explanação histórica. No período pós-maio de 68, os debates na França se inflamam no próprio interior do feminismo; diversas facções surgem, umas fortemente opostas às outras, em diversos pontos teóricos e a respeito das estratégias que deveriam ser acatadas como forma de promover transformações sociais. Se o movimento da escrita feminina — acusado, por muitos, de essencialista em sua abordagem do feminino — ganha terreno, surge também em solo francês o “Movimento de liberação das mulheres”, sustentado por Antoinette Fouque, Monique Wittig e Josiane Chanel. Opondo-se a uma suposta tática ontologizante da mulher, pretendia-se ir contra qualquer tentativa de formação identitária sexual. O grupo “Psicanálise e Política”, fundado e dirigido por Fouque,

figura central da profusão dos ideais dessa ala do feminismo francês, conquista espaço, promove locais de discussão onde as mulheres poderiam falar e ser escutadas, tanto com relação à sua vida política quanto à sua sexualidade. Prega-se a reparação e a valorização da relação mãe-filha, uma sexualidade entre-mulheres a ser explorada, algo além do falicismo para o feminino — metas a serem elaboradas no plano das ideias, a partir de uma reformulação do lacanismo e da desconstrução derrideana. Além das reivindicações de ordem social, esse grupo propõe “escrever, traduzir, interpretar a história da sexualidade das mulheres a partir de uma escrita marcada, ela própria, pelo selo da diferença sexual” (ROUDINESCO, 1994, p. 562). Em 1974, Fouque e seu grupo criam as Éditions des Femmes, com a pretensão de publicar obras elaboradas a partir de uma escrita sexuada. Tal grupo mantinha uma relação ambígua com a psicanálise: se, por um lado, valoriza a retomada lacaniana que se deu via instrumentos da linguagem, e se muitas dessas feministas são vinculadas a escolas, são psicanalistas ou psicanalisandas; por outro, contesta a implicação no plano social de alguns de seus pilares conceituais que contribuiriam para o cenário de desfavorecimento da mulher, assim como o funcionamento das próprias instituições psicanalíticas e elementos da técnica em jogo na prática clínica. De toda forma,

daí resulta uma multiplicidade de reuniões, conflitos, amores homossexuais e publicações de toda sorte. Nunca se copulou tanto com o vocabulário da feminilidade quanto durante esse período de 1970 a 1975, quando finalmente se legalizam as medidas igualitárias reclamadas pelo antigo feminismo. (ROUDINESCO, 1994, p. 562) Como já apontado, é justamente nesse momento que ganham profusão Irigaray, Cixous, Montrelay, Wittig e Kristeva.

A construção dessa vertente do edifício feminista psicanalítico de retomada do estruturalismo, da incursão da sexualidade feminina, e toda discussão a respeito do papel da linguagem— e, claro a abundância de revistas literárias e grupos de mulheres — atingiram Lacan:

Durante essa época, Lacan é apanhado pelo ardor feminino [...]. No plano teórico, Lacan não renuncia a nenhum ponto de sua teoria anterior [a esse período dos anos 70]. Mas o tom de seu discurso é diferente. Ele entendeu a mensagem de Antoniette e, se não adota nenhuma de suas afirmações, mostra-se sensível à nova retórica da escrita feminina. (ROUDINESCO, 1994, p. 566)

No documento A diferença dos sexos: Lacan e o feminismo (páginas 57-66)