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Semblante, diferença sexual e performance

No documento A diferença dos sexos: Lacan e o feminismo (páginas 110-116)

2 GÊNERO E LACAN

2.2 A noção de semblante

2.2.1 Semblante, diferença sexual e performance

Seguindo no Seminário XVIII, Lacan, após criticar o “caráter inoperante do aparato dialético” (LACAN, 1971/2009, p. 30) utilizado por Stoller para explicar os casos de seus pacientes transexuais — justamente por, para o psicanalista francês, ele ter negligenciado o mecanismo da foraclusão e a psicose latente de tais sujeitos23 —, discorre sobre a identidade de gênero stolleriana. Trata-se de “parecer” homem ou mulher:

O importante é isso: a identidade de gênero não é outra coisa senão o que acabo de expressar com estes termos, “homem” e “mulher”. É claro que a questão do que surge precocemente só se coloca a partir de

23 Lacan afirma no Seminário XVIII: “Chama-se Sex and Gender [Sexo e gênero], de um certo Stoller. É muito interessante de ler, primeiro porque desemboca num assunto importante — o dos transexuais, com um certo número de casos muito bem observados, com seus correlatos familiares. Talvez vocês saibam que o transexualismo consiste, precisamente, num desejo muito enérgico de passar, seja por que meio for, para o sexo oposto, nem que seja submetendo-se a uma operação, quando se está do lado masculino. No livro vocês certamente aprenderão muitas coisas sobre o transexualismo, pois as observações que se encontram ali são absolutamente utilizáveis. Aprenderão também o caráter completamente inoperante do aparelho dialético com que o autor do livro trata essas questões, o que o faz deparar, para explicar seus casos, com enormes dificuldades, que surgem diretamente diante dele. Uma das coisas mais surpreendentes é que a face psicótica desses casos é completamente eludida pelo autor, na falta de qualquer referencial, já que nunca lhe chegou aos ouvidos a foraclusão lacaniana, que explica prontamente e com muita facilidade a forma desses casos (LACAN, 1971/2009, p. 30)”. Em Corpo em

obra: contribuições para a clínica psicanalítica do transexualismo (COSSI, 2011, nVersos), discutimos

essa apreciação de Lacan e a relação direta que passou a ser estabelecida na tradição lacaniana entre transexualidade e psicose.

que, na idade adulta, é o próprio destino dos seres falantes distribuírem-se entre homens e mulheres. Para compreendermos a ênfase depositada nessas coisas, nesse caso, é preciso nos darmos conta de que o que define o homem é sua relação com a mulher, e vice-versa. Nada nos permite abstrair essas definições do homem e da mulher da experiência falante completa, inclusive nas instituições em que elas se expressam, a saber, no casamento. Para o menino, na idade adulta, trata-se de parecer-homem. É isso que constitui a relação com a outra parte. É à luz disso, que constitui uma relação fundamental, que cabe interrogar tudo o que, no comportamento infantil, pode ser interpretado como orientando-se para esse parecer-homem. Desse parecer-homem, um dos correlatos essenciais é dar sinal à menina de que se o é. Em síntese, vemo-nos imediatamente colocados na dimensão do semblante. (LACAN, 1971/2009, pp. 30-1)

Lacan afirma que a sexualidade humana não é determinada pela anatomia, fisiologia ou pela genética, nem adota a reprodução sexual como imperativo. A linguagem também não a esgota e rituais, instituições culturais — como o casamento, por exemplo —, são ineficazes para demarcar homem e mulher. Também não é a operação de nomenação (você é uma menina! Você é um menino!) o que permite ao sujeito assegurar-se como um ou outro. A identificação sexual não consiste em se crer homem ou mulher, mas em levar em conta que há meninas, no caso dos meninos, e que existem meninos, para as meninas (LACAN, 1971/2009, p. 33). Nesse sentido, o homem só pode ser definido como tal em relação à mulher, e vice-versa — há de se levar em conta a diferença e que um só existe em relação ao outro. Os gêneros não têm substância intrínseca a eles. E aqui entra o semblante na sua dimensão sexualizada: trata-se de “parecer-homem” ou “parecer-mulher”. Essa dimensão discursiva e dialética do semblante sexual questiona a ideia de que um gênero se constitui por si só, sem o seu respectivo oposto e sem o reconhecimento do outro sexo.

Lacan pontua que, no campo da etologia, também se trata do semblante: no caso dos mamíferos superiores, a copulação se dá, na maioria dos casos, suscitada por uma exibição prévia do macho em direção à fêmea. A relação sexual humana também conta com a aparência nessa função. A distinção entre eles virá por outro ângulo. Comparando o comportamento sexual humano com a exibição animal, Lacan afirma:

A única coisa que o diferencia dela é que esse semblante seja veiculado num discurso, e que é neste nível de discurso, que ele é levado, permitam-me dizer, para um efeito que não fosse semblante. Isto significa que, em vez de ter a refinada cortesia animal, sucede aos homens violar uma mulher, ou vice-versa. Nos limites do discurso, na medida em que ele se esforça por fazer com que se mantenha o

mesmo semblante, de vez em quando existe o real. É a isso que chamamos passagem ao ato. (LACAN, 1971/2009, p. 31)

Por mais que uma vertente do comportamento sexual humano também se sustente em exibições do tipo semblante animal, o semblante humanizado é difundido em um discurso, e é nesse nível que ele é conduzido para um efeito que não fosse semblante. Deriva disso o humano ser regido por um gozo excessivo, desregulado, que pode desembocar numa violência muito particular.

Avançando na discussão, Soler aponta que a diferença entre os sexos também se faz notar no que tange ao semblante fálico, “[...] um desfila como desejante, a outra como desejável [...]. De um lado, portanto, a exibição ostentatória [...]. Do outro, a armadilha disfarçada [...]. As maneiras variam, é claro, mas persiste a estrutura que sempre envolve o ponto de falta do sujeito [...]” (SOLER, 2005, p. 32). Na mascarada feminina, trata-se de se fazer desejar, moldar-se às condições de desejo do homem — o que deseja, o que tem e quer dar as provas de sua potência —, numa parada viril. A visão de Soler permite pensar que semblante-homem e semblante-mulher estariam em relação na qual a complementariedade seria possível. Contudo, a tese da autora não leva em conta a verdade e o real em jogo do lado ‘mulher’ que implementam a dissimetria nesse nível.

Para o homem, nessa relação, a mulher é precisamente a hora da verdade. No tocante ao gozo sexual, a mulher está em condição de pontuar a equivalência entre gozo e semblante. É justamente nisso que jaz a distância a que o homem se encontra dela. Se falei em hora da verdade, é por ser a ela que toda a formação do homem é feita para responder, mantendo, contra tudo e contra todos, o status de seu semblante. É certamente mais fácil para o homem enfrentar qualquer inimigo no plano da rivalidade do que enfrentar uma mulher como suporte dessa verdade, suporte do que existe de semblante na relação do homem com a mulher. (LACAN, 1971/2009, p. 33)

Pode-se dizer, então, que a mulher denuncia para o homem que o gozo dele vincula-se ao semblante; denuncia que o semblante, cuja edificação é fálica, está em jogo nas relações que estabelece — esse é o seu terreno familiar. Tal cenário se desestabilizaria com a entrada da mulher, representante do teste de verdade para ele — a verdade só pode ser semidita, tem uma parcela de real, cuja infiltração, no caso, é encarnada pela mulher. Ela desequilibra os alicerces fálicos nos quais o homem se escora. Daí ser mais fácil para ele, segundo Lacan (1971/2009, p. 33), enfrentar um rival

homem — e, nesse contexto, dar provas de sua masculinidade via semblante — do que encarar uma mulher e o desnudamento do espaço que o semblante é incapaz de recobrir. Adiante, Lacan (1971/2009, p. 34) continua: “Ninguém, senão a mulher — porque é nisso que ela é o Outro — sabe melhor o que é disjuntivo no gozo e no semblante [...]”. ‘Homem’ é atrelado a semblante, campo fálico. ‘Mulher’ é pensada em sua relação com a verdade, o que já nos parece ser um prenúncio do gozo feminino. Semblante e verdade estabelecem uma relação ao serem traduzidos para o universo da diferença sexual. Ou melhor, já anunciam uma não relação.

Se, nos anos 50, Lacan concebia a diferença sexual em termos de ser o falo (mulher) e ter o falo (homem), e no início desse Seminário XVIII fala em parecer- homem e parecer-mulher — formulações que permitem conceber a pressuposição de uma relação entre os sexos —, agora, quando entramos com a noção de semblante afetada pela verdade, Lacan dá um passo que nos parece ser decisivo e sem recuos, ao enunciar que a relação sexual não existe, já nesse mesmo Seminário XVIII — o que será, nos próximos, tratado com grande rigor conceitual.

O discurso é semblante e não importa do quê. O que ocorreria no caso onde isso não fosse semblante? Aqui entramos no campo da repetição e do gozo (LACAN, 1971/2009, p. 19). Um discurso que não é semblante é um discurso impossível, seu efeito é um mais-de-gozar e funciona como real (LACAN, 1971/2009, p. 21). Nesse mesmo ano, Lacan afirma:

Trata-se da indução de algo que é completamente real, ainda que não possamos falar disso como significantes, quero dizer, que não têm outra existência a não ser como significantes. De que estou falando? Ora, de nada além do que é chamado, na linguagem corrente, de homens e mulheres. Não sabemos nada de real sobre esses homens e mulheres como tais. [...] Homens e mulheres, isso é real. (LACAN, 1971/2011, p. 57)

Homem e mulher, cada um está no discurso a título de semblante. Mas há algo além do discurso, cujo registro é real e o campo, do gozo. “O falo é, muito propriamente, o gozo sexual como coordenado com um semblante, como solidário a um semblante” (LACAN, 1971/2009, pp. 32-3). A referência comum ao gozo sexual vem de alguma forma recobrir o mais-de-gozar singular de cada um dos parceiros. A mulher pode ser o falo para o homem, assim como o homem também pode sê-lo para ela: cada um podendo encarnar para o outro, por certo tempo, o gozo sexual, sob a suposição de

um gozo comum — suposição, porque a disparidade entre gozo fálico e gozo Outro decreta a não relação sexual.

E como pode ser concebida essa não relação? Uma relação só existe na medida em que ela pode ser escrita, um discurso não basta para estabelecê-la. A relação sexual humana não pode ser escrita porque sua fundamentação se dá no campo do gozo. Em Freud, tudo o que é da linguagem mantém relação com o sexo, porém a relação sexual não pode se inscrever nela.

A pretensa sexualização das funções que podemos chamar de subjetivas, e que seria realizada pela doutrina freudiana, sob a condição de situá-las na ordem da linguagem, consiste essencialmente em que o que deveria resultar da linguagem, ou seja, a possibilidade de a relação sexual se inscrever nela de algum modo, mostra de forma precisa, e na realidade, seu fracasso. Ela não é inscritível. (LACAN, 1971/2009, pp. 122-3)

Cabe ressaltar que Lacan diz ‘inscritível’, e não ‘enunciada’. Ou seja, não há a escrita dessa função na linguagem, ela não relaciona logicamente estes dois polos ‘homem’ e ‘mulher’, tal como veremos a partir dos desdobramentos dos próximos seminários de Lacan.

Por fim, retomemos: ‘homem’ e ‘mulher’ são fatos de discurso, e só há discurso de semblante. O semblante só se enuncia a partir da verdade; mas, no contexto da verdade, a relação sexual fracassa. Estamos no universo do gozo, fálico e Outro; fora da linguagem e, como tal, da escrita.

Mas a escrita em si, não a linguagem, a escrita provê de ossos todos os gozos que, por meio do discurso, mostram abrir-se ao ser falante. [...] a relação sexual falta no campo da verdade, posto que o discurso que a instaura provém apenas do semblante, por só abrir caminho para os gozos que parodiam — essa é a palavra adequada — aquele que é efetivo, mas que lhe permanece alheio. Assim é o Outro do gozo, para sempre proibido, inter-dito, aquele cuja habitação a linguagem só permite ao lhe fornecer — por que eu não haveria de empregar esta imagem? — escafandros. (LACAN, 1971/2009, p. 139)

Ao gozo Outro, que ex-siste, só cabe parodiar o gozo fálico. A escrita lógica prevê recursos para além da linguagem na tentativa de escrever a não relação sexual promulgada pela incomensurabilidade das experiências de gozo. Mais adiante tais passagens serão esmiuçadas.

Se Stoller foi importante para Lacan no desenvolvimento de sua teoria do semblante, também o foi para Butler, para seu estabelecimento de gênero enquanto performance.

A filósofa questiona o caráter substantivo e pré-discursivo que Stoller atribui ao gênero quando pensado em termos de “núcleo”. Para ela, tomar o gênero como uma substância permanente é uma ficção. Além do mais, algo sempre escapa à tentativa de delimitação do conjunto de traços adjetivos que o comporiam:

Se a noção de uma substância é uma construção fictícia, produzida pela ordenação compulsória de atributos em sequência de gênero coerentes, então o gênero como substância, a viabilidade de homem e mulher como substantivos, se vê questionado pelo jogo dissonante de atributos que não se conforma aos modelos sequenciais ou causais de inteligibilidade. (BUTLER, 1990/2003, p. 47)

A substância de gênero está na base da formulação do conceito stolleriano de “núcleo de identidade de gênero”. E Butler continua:

Desse modo, a aparência de uma substância permanente ou de um eu com traços de gênero, ao qual o psiquiatra Robert Stoller se refere como o “núcleo do gênero”, é produzida pela regulação dos atributos segundo linhas de coerência culturalmente estabelecidas. E resulta que a denúncia dessa produção fictícia é condicionada pela interação desregulada de atributos que resistem à sua assimilação numa estrutura pronta de substantivos primários e adjetivos subordinados. (BUTLER, 1990/2003, p. 47-8)

O que foge à coerência de gênero, o que é excluído — ou os “adjetivos dissonantes”, nas palavras de Butler (1990/2003, p. 48) — poderia, em tese, ser reassimilado, chegando até a provocar alterações nas categorias substantivas de gênero. Mas não é disso que se trata. O que importa para Butler é mostrar que a coerência é contingencial, forjada a partir da regulação dos atributos adjetivos — tomar gênero como uma entidade ontológica é uma manobra artificial e de poder, que serve estrategicamente para ocultar o verdadeiro caráter do gênero. Nesse caso, para Butler, nem substância nem acúmulo de “atributos flutuantes” (BUTLER, 1990/2003, p. 48): o gênero é performativo.

Outra crítica que a filósofa endereça a interpretações do gênero como a de Stoller é a de que elas operam na binaridade homem/mulher, masculino/feminino. Partem da concepção de que o binarismo é um dado natural e pré-discursivo, o que fecha as portas para manifestações de gênero imprevisíveis e inovadoras. E mais,

tendem a patologizar o que não se enquadra nos moldes de tal binaridade e da harmonia entre sexo e gênero.

Pensamos que combater o pressuposto stolleriano de que haveria um núcleo de identidade sexual ajuda Lacan e Butler a defender a concepção de que tal substância é uma ilusão.

“Autorizando-se por eles mesmos como seres sexuados, segundo uma expressão do seminário Les non-dupes errent, os sujeitos são coagidos a isso pela falha do inconsciente que fala. Maldição! Ela dá infelicidade [mal-heur], porque o inconsciente diz mal do Sexo [...]” (SOLER, 2005, p. 139). Se o sujeito é levado a se autorizar como homem ou mulher, a lacuna antagônica do inconsciente perturba.

Mas no espaço de representação, estaríamos no jogo dos semblantes, na teoria lacaniana, e no da performance, de Butler. Em certa medida, o semblante seria parente próximo da performance de gênero. Antes de avançarmos às ideias butlerianas, tratemos do trabalho de Gayle Rubin, de 1975 — decisivo para os gender studies — e da maneira com que o lacanismo foi recepcionado em solo norte-americano.

No documento A diferença dos sexos: Lacan e o feminismo (páginas 110-116)