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Wittig e o fim de homem e mulher

No documento A diferença dos sexos: Lacan e o feminismo (páginas 83-94)

1. LACAN E O FEMINISMO FRANCÊS

1.5 Wittig e o fim de homem e mulher

“Nós devemos tornar brutalmente evidente que a psicanálise que veio depois de Freud, e particularmente Lacan, transformou seus conceitos em mitos — Diferença, Desejo, o Nome- do-Pai etc. Eles inclusive “sobremitificaram” os mitos, uma operação necessária a eles com fins de sistematicamente heterossexualizar a dimensão pessoal que repentinamente emergiu através dos indivíduos dominados dentro do campo histórico, particularmente através das mulheres, que deram início a sua luta quase dois séculos atrás.”

— Monique Wittig (1992, p. 31; trad. nossa)

O nome de Monique Wittig (1935-2003) é fortemente associado ao M.L.F. (Mouvement de Libération des Femmes) e ao que se convencionou chamar de feminismo radical e feminismo lésbico. Seu trabalho se dá tanto na forma da teoria política, como se apresenta na coletânea de textos The straight mind (1992) quanto na da literatura de L’opoponax (1964). Adepta da teoria marxista e crítica ferrenha da psicanálise, ataca tanto sua teoria, a constituição do enquadre clínico, o funcionamento da instituição psicanalítica quanto o impacto de seu discurso na cultura. Butler e, mais recentemente, Preciado são, em muito, devedoras de suas ideias. Wittig considera que a luta das mulheres deve se sustentar em um ponto de vista diferente daquele sustentado incialmente pelo movimento feminista: no caso, retirando a mulher da cena — não se deve falar mais em opressão da mulher ou em direitos da mulher; em mulheres como iguais ou diferentes, por exemplo. Wittig propõe uma mudança de perspectiva, da mulher à lésbica, para que assim o movimento feminista seja teórica e politicamente alçado a outro patamar — “lésbicas não são mulheres”, segundo Wittig (1992, p. 32), já que se encontram fora do regime político heterossexual do sistema patriarcal.

É notória a crítica de que o sistema patriarcal prescreve uma ideologia que determina que a classe das mulheres deva ser subordinada à dos homens. Contudo, Wittig considera que se ater somente à denúncia do patriarcalismo é uma estratégia precária na luta feminista. O que deve ser questionado é a própria edificação das categorias “homem” e “mulher”. A existência de tais categorias, que só existem uma em relação à outra, deve-se ao sistema heterossexual. Para minar a heterossexualidade, entendida por Wittig como um regime político que se apoia na submissão das mulheres,

aquelas categorias devem ser abolidas política, filosófica e simbolicamente, e nessa empreitada a comunidade lésbica deve ser estrategicamente acionada.

Importante salientar que não se trata de criar uma nova categoria, “lésbica”, ou de que esta venha a substituir a de “mulher” — essa vertente de feminismo radical quer erradicar o regime político heterossexual, não simplesmente questioná-lo; e a estratégia seria a destruição das categorias de homem e mulher e outras correlatas, como as categorias de “gênero”, “sexo” e “diferença sexual”, que fazem parte do arcabouço conceitual criado pela “straight mind” que formatou a elaboração dos nossos conceitos, assim como a construção de nossas instituições e da cultura ocidental. A proposta de Wittig é a de que o humano seja abordado para além de toda categoria que envolva o sexual, rejeitando toda a ciência, inclusive a psicanálise, que se fundamenta nele ao tratar do sujeito.

“A ideologia da diferença sexual funciona como um censor na nossa cultura ao mascarar, sob alegação da natureza, as oposições sociais entre homem e mulher” (WITTIG, 1992, p. 2). Recorrer a termos como ‘homem’ e ‘mulher’ (diferença sexual, no sentido biológico) assim como a ‘masculino’ e ‘feminino’ (gênero) torna invisível que as diferenças sociais são produtos de ordem econômica, política e ideológica. A diferença sexual não é um dado bruto; ela só existe enquanto determinação social submetida, segundo Wittig, à mesma dialética presente na luta de classes. O pensamento dominante determina que, em todas as sociedades, há duas categorias de sexo com diferenças constitutivas, ontologicamente expressas em termos biológicos a serem refletidos em âmbito sociológico, legitimando, por exemplo, a divisão do trabalho. O sexo, tomado como o dado natural determinante, tenderia a tornar invisível o papel das relações sociais subjacentes. Neste sentido, “é a opressão que cria o sexo, e não o contrário” (WITTIG, 1992, p. 2) — não é o sexo que cria a opressão nem a causa da opressão é de ordem sexual. “A categoria de sexo não existe a priori, como anterior a toda sociedade” (WITTIG, 1992, p. 5). A categoria ‘sexo’ é um produto da sociedade heterossexual que se baseia no modelo da reprodução das espécies — modelo esse que legitimaria a apropriação da mulher pelo homem e que estaria na base do contrato de casamento, segundo Wittig. Também não se trata, para ela, de fundar uma sociedade que se sustente no matriarcado, já que a mudança, nesse caso, seria somente quanto ao sexo do opressor. Desse contexto, conclui a autora, a mulher não tem como escapar: a mulher não tem como ser pensada fora da categoria totalitária de sexo.

Em certo sentido, se Wittig se aproxima de Beauvoir — não se nasce mulher e nenhum fato a determina, nem biológica, psicológica ou economicamente, sendo o feminino um produto criado pela civilização —, afasta-se dela, ao considerar que não seria o mito construído ao redor da mulher a causa da opressão, mas justamente a criação da categoria ‘sexo’ como um dado a priori. Esse sistema que cria as categorias ‘homem’ e ‘mulher’ acaba por possibilitar a proclamação de ideais — estes que acabam por causar sofrimento às mulheres que não correspondem a “mulheres de verdade”. Wittig propõe dissociar “mulher” enquanto mito, formação imaginária, de “mulheres” enquanto classe — a luta política deve mirar essa última vertente, contra mulheres enquanto classes, produto da relação de espoliação. Leguil (2015, p. 33) aponta que, para Wittig, “não se nasce mulher, é certo, mas deve se fazer de tudo para que jamais se consinta em se tornar mulher” — tornar-se mulher se sustenta numa ideia do que seria uma mulher, alimentaria o mito da mulher: ser a mulher de um homem, ser mãe ou outras qualidades associadas ao feminino — mesmo aquelas que supostamente a deslocariam dos papéis que tradicionalmente lhes foram impostos. Para Wittig não importa: qualquer atributo concedido à mulher resultaria da estratégia de dominação masculina e estaria determinado pelo regime heterossexual. Se Beauvoir queria a liberação das mulheres do encarceramento dos mitos que o homem lhes impunha, Wittig quer impossibilitar toda e qualquer construção de mitos, toda e qualquer tentativa de elaboração de discursos sobre o feminino, ao fazer a própria categoria de mulher desaparecer — afinal de contas, “mulher” só existiria dentro do sistema de submissão ao homem. Então, para se voltar contra ao regime heterossexual, há de se recorrer a um elemento fora dele e de suas determinações conceituais. A lésbica está além da categoria de sexo. A lésbica não é um homem, não é uma mulher, não seria um produto da sociedade nem da natureza, segundo Wittig (1992, p. 13). A comunidade lésbica revelaria que a divisão entre homens e mulheres é política e ideologicamente construída enquanto entidades naturais. Para recusar a heterossexualidade, a lésbica não só rejeita o papel de mulher que a sociedade lhe dita, mas todo o poder político e ideológico prescrito pelo homem.

Wittig recorre ao marxismo ao pregar que o movimento feminista deveria levar cada mulher a ter a consciência de que os problemas que enfrenta são, de fato, problemas das mulheres enquanto classe — seus problemas privados são reflexos da política ditada pelo regime heterossexual que se fundamentaria numa doutrina da diferença sexual com fins de justificar a opressão sofrida. Os indivíduos têm sua

dimensão particular, mas uma transformação social só ocorreria à medida que passassem a se reconhecer enquanto membros de uma classe oprimida.

Além desse objetivo, Wittig, seguindo a tradição do feminismo francês, também é atenta à importância política que a linguagem contempla; e acompanha os trabalhos de Lévi-Strauss e Lacan, desenvolvidos com base no estruturalismo. Para que o sistema ideológico seja analisado, Wittig considera que se deve recorrer da semiologia ao inconsciente. “A linguística engendra a semiologia e a linguística estrutural, a linguística estrutural engendra o estruturalismo, que engendra o Inconsciente Estrutural” (WITTIG, 1992, p. 22). Os diferentes discursos se interpenetram e se reforçam sempre produzindo um elemento a ser oprimido, mascarando a real causa da opressão — nesse processo, cria-se uma intuição de a-historicidade ede invariância da realidade social, como intocada pelos conflitos de classe. O psiquismo padeceria da mesma alienação, o que exigiria que especialistas como psicanalistas surjam com seus arsenais teóricos também invariantes — a fixidez dos conceitos seria fruto de uma estratégia de poder com fins de apagar as condições históricas subjacentes, o que, consequentemente, perpetuaria a situação de opressão tida como um dado natural. Essa é uma das principais críticas de Wittig à psicanálise:

A linguagem simbólica que funciona vantajosamente com poucos elementos, como dígitos (0-9), esses símbolos “inconscientemente produzidos” pelo psiquismo não são numerosos. Portanto, tais símbolos são facilmente impostos, através de terapia e teorização, sobre o inconsciente individual e coletivo. Somos ensinados que o Inconsciente, com extremo bom gosto, estrutura-se a partir de metáforas, por exemplo, o nome-do-pai, o complexo de Édipo, castração, assassinato-ou-morte-do-pai, troca de mulheres etc. Se o Inconsciente é fácil de ser controlado, não o é por qualquer um. [...]. Só especialistas efetuam a decifração do Inconsciente. (WITTIG, 1992, pp. 22-3; trad. nossa).

Na perspectiva wittigiana, o enquadre psicanalítico concederia ao condutor do tratamento, especialista-mestre, o poder de impor conteúdos ao paciente. Todo discurso teórico científico — no nosso caso, o psicanalítico —, inclusive, deslegitimaria outros discursos ao considerá-los irrelevantes, ou mesmo ingênuos. Wittig salienta o quanto o discurso é uma das facetas que sustentam a opressão, e o discurso psicanalítico seria um deles.

A “straight mind” tenderia a elevar os conceitos que produz, não só os do plano da consciência, ao status de leis gerais, a serem válidos para todas as épocas e todas sociedades:

Então se fala em troca de mulheres, diferença entre os sexos, ordem simbólica, Inconsciente, Desejo, Gozo, Cultura, promovendo um significado absoluto a esses conceitos, quando na verdade são apenas categorias fundadas a partir da heterossexualidade, que produz a diferença entre os sexos como um dogma político e filosófico. (WITTIG, 1992, pp. 27-8; trad. nossa)

Ou seja, a straight mind, com sua tendência universalizante, não consegue conceber uma cultura que funcione de outra forma que não a regida pelas relações ditadas pela heterossexualidade; submetidas a processos, teóricos e práticos, para os quais especialistas teriam os instrumentos adequados para estabelecer os limites do dentro e do fora do cenário social. Para Wittig, nesse sistema de pensamento, rejeitar a obrigação do coito e as instituições decorrentes dela como parte fundante da sociedade seria impossível, já que seria o mesmo que rejeitar a possibilidade da constituição do outro e da ordem simbólica. “Então, o lesbianismo, a homossexualidade e as sociedades que formamos não podem ser pensadas ou faladas, embora sempre tenham existido. A “straight mind” continua a afirmar que o incesto, e não a homossexualidade, representa sua principal interdição” (WITTIG, 1992, p. 28).

E tratando do inconsciente:

Se entre todas as produções da ‘straight mind’ eu especialmente questiono os modelos do Inconsciente Estrutural, é porque: no momento histórico em que a dominação de grupos sociais não pode mais aparecer como um necessidade lógica ao dominado, porque eles se revoltam, porque eles questionam as diferenças, Levi-Strauss, Lacan e seus epígonos recorrem a necessidades que escapam ao controle da consciência e, então, à responsabilidade dos indivíduos. (WITTIG, 1992, p. 30; trad. nossa)

Nessa leitura, prescrever processos, agora inconscientes (processos inconscientes sustentam a troca de mulheres, por exemplo), seria uma forma renovada de sustentar a dominação. “Não é de admirar, então, que só haja um Inconsciente, e que ele seja heterossexual. É um Inconsciente que, conscientemente, muito se dedica aos interesses dos mestres” (WITTIG, 1992, p. 31). Haveria uma mudança tática de termos — não se fala mais em dominação das mulheres, mas em diferença sexual, com o mesmo interesse político.

Wittig considera que, assim como as instituições psicanalíticas operam a partir de um discurso tal que faz com que os psicanalistas que estejam fora delas se sintam oprimidos,

na experiência analítica há uma pessoa oprimida, o psicanalisante, cuja necessidade de comunicação é explorada e que (da mesma forma que cabia às bruxas, sob tortura, somente repetir a linguagem que o inquisidor queria ouvir) não tem outra escolha, (se ele/ela não pretende destruir o contrato implícito que lhe permite se comunicar e do qual ele/ela necessita), a não ser aceitar dizer o que se espera que ele/ela diga. Eles dizem que esse processo pode durar uma vida inteira — contrato cruel que constrange o ser humano a revelar sua miséria a um opressor que é diretamente responsável por ela, que o/a explora econômica, política, ideologicamente e cuja interpretação reduz essa miséria a algumas figuras de discurso. (WITTIG, 1992, p. 24; trad. nossa)

Para Wittig, essa necessidade do sujeito de se comunicar não deveria ter como único espaço de expressão o enquadre psicanalítico, que molda o discurso do paciente à escuta do analista que se orienta heterossexualmente. Há inúmeros testemunhos que

enfatizam a significância política da impossibilidade que lésbicas, feministas e homens gays encontram ao tentarem se comunicar em uma sociedade heterossexual, para além do trato com um psicanalista. Quando o estatuto das coisas é compreendido, (não se está doente ou necessita ser curado, mas tem-se um inimigo), o resultado é que a pessoa oprimida quebra o contrato psicanalítico. (WITTIG, 1992, p. 24; trad. nossa)

O contrato psicanalítico, na visão de Wittig, seria uma imposição, e a psicanálise, sustentada no regime heterossexual que alicerça a sociedade, ratificaria o discurso que oprime as lésbicas, as mulheres e os homossexuais. Para que sejam ouvidos, há de se moldar sua linguagem aos termos deles (assim como os psicanalistas devem moldar seu discurso ao que as instituições psicanalíticas esperam deles). “Nossa recusa de uma interpretação totalizante vinda da psicanálise faz com que os teóricos digam que nós negligenciamos a dimensão simbólica. Esses discursos nos impede toda possibilidade de criar nossas próprias categorias” (WITTIG, 1992, p. 25). Wittig também discorre sobre o simbólico e a suposta alegação dos psicanalistas de que se trataria de uma instância transcendental:

[...] eles objetam que há uma ordem simbólica, como se estivessem falando de uma dimensão que não tivesse nada a ver com dominação.

Pobre de nós, a ordem simbólica participa da mesma realidade que a ordem política e econômica. Há um continuum entre suas realidades, um continuum no qual a abstração se impõe à materialidade e pode formatar o corpo assim como a mente daqueles que oprime. (WITTIG, 1992, p. 58; trad. nossa)

O simbólico, nessa perspectiva, precisa ter alguma relação com a realidade — se não fosse assim, não seria possível conceber transformações sociais a partir dele. A radical negativização ou evaziamento desse registro seria uma estratégia de poder com fins de manter a estagnação.

Para Wittig, a “straight mind”, base da psicanálise, necessita operar por conceitos ontologizados, como a diferença sexual, o que é inevitavelmente marcado por relações de poder essencialmente normativas — o outro, o diferente; no caso: as mulheres, mas também os negros e os escravos devem ser encarados como elementos substancializados a serem subjugados pelo homem branco dominante, tomado como ‘não diferente’. Mas, segundo Wittig, “o conceito de diferença não tem nada de ontológico. Ele é somente a forma com que o mestre interpreta uma situação histórica de dominação. A função da diferença é esconder todos os níveis dos conflitos de interesse, incluindo os ideológicos” (WITTIG, 1992, p. 29). Níveis a serem escondidos também com a invenção dos conceitos em psicanálise. Por fim, para Wittig, Lacan só viu o que quis ver: “Para Lacan, por exemplo, o que ele chama de ‘discurso psicanalítico’, ou de ‘experiência analítica’, ambos o ensinam o que ele já sabia [...] Na minha opinião, não há dúvida de que Lacan encontrou no Inconsciente estruturas que ele falou que encontrou, visto que ele previamente as pôs lá” (WITTIG, 1992, p. 23).

Wittig (1992, p. 49) pontua que os primeiros filósofos gregos eram monistas: o ser era Um. Foi com a escola de Pitágoras que se passou a conceber uma divisão no contexto do ser. O que permite a Aristóteles operar com dualidades e criar sua tábua de oposições metafísicas — constrói-se a série limitado-um-direito-homem- luz-bom, por um lado, e ilimitado-vários-esquerdo-mulher-escuro-mau, por outro. Séries heterogêneas que fazem com que seus conceitos, da ordem prática à abstrata, sejam diferenciados, comparados e classificados. Tais termos, enquanto dimensões metafísicas, foram retirados dos seus contextos originais, o que faz com que o sentido de termos técnicos como ‘Um’, por exemplo, seja modificado — agora tudo o que é bom pertence à série do ‘Um’. E, consequentemente, os elementos opostos passam a ser associados entre si — “mulher” é acrescida de sentido ao se ligar a mau e escuro. A dialética opera, segundo Wittig (1992, p. 51), confrontando duas séries de conotação

metafísica, ser e não ser. “Cada filósofo da idade moderna, incluindo os linguistas, os psicanalistas, os antropólogos, nos dirão que sem tais categorias precisas de oposição (de diferença), não se pode raciocinar ou pensar, ou melhor, que fora delas significados não podem ser estabelecidos [...]” (WITTIG, 1992, p. 52). Cria-se um jogo de forças entre os lados, o do Um-universal, mestre-homem, e do Outro, escravo-mulher. Questionar a dialética faz Wittig (1992, p. 53) pensar no tipo de transformação que poderia ocorrer se as categorias que se posicionam do lado do Um, ou do ser, passassem a ocupar o do outro. Mas Wittig sempre considera que a estratégia adequada não é a substituição — as categorias Um-homem e Outro-mulher é que devem ser descartadas (WITTIG, 1992, p. 55).

Estamos então num tipo de feminismo para além do feminismo das diferenças — mulheres devem ser reconhecidas em suas especificidades e diferenças (biológicas, inclusive, para algumas de suas teóricas) com relação aos homens —, e do que prega a desessencialização de homem e mulher — sexo e gênero como entidades sem substância. Segundo Wittig (1992, p. 60), só há um gênero, o feminino; homem não teria gênero porque sua figura é associada ao universal, ao geral, ao sujeito do discurso — incitar se falar em gênero traz à baila o feminino, o que deve ser impedido. ‘Gênero’, segundo Wittig, necessariamente apresenta caráter de substância — seria um “conceito ontológico que reforça na linguagem a divisão entre os sexos” (WITTIG, 1992, p. 76). Daí o feminismo radical de Wittig querer erradicar a categoria de ‘gênero’.

Se, segundo, Wittig (1992, p. 77), gênero não é um conceito que foi historicamente questionado dentro da filosofia, é porque era um conceito considerado autoevidente — como se, por pertencer à natureza das coisas ou à ordem social, não fizesse sentido discorrer sobre ele. Daí Wittig louvar todo esforço feito pelas feministas norte-americanas em insistir na concepção de gênero enquanto categoria sociológica construída artificialmente, sem essência natural. O próximo passo foi fazer justamente com que o gênero prevalecesse sobre o sexo, encarado como índice linguístico que carrega a oposição entre os sexos que leva à submissão das mulheres. Contudo, Wittig considera que a estratégia é falha: “da mesma forma que o sexo, homem e mulher, gênero, como conceito, é um instrumento no discurso político do contrato social enquanto heterossexual” (WITTIG, 1992, p. 77). Deslocar o debate de sexo para gênero não resolve o problema: “gênero é a sanção do sexo na linguagem, funcionando da mesma forma que a declaração do sexo no status civil” (WITTIG, 1992, p. 79). Fortalecer a discussão em torno desse termo tem o efeito reverso de manter a mulher no

registro do particular ou no da minoria dominada, e homem no status de universal: “o gênero é muito prejudicial às mulheres no exercício da linguagem” (WITTIG, 1992, p. 80); deve-se examinar como o gênero aparece na linguagem e como opera nela — daí Wittig ter se dedicado tanto ao estudo do uso dos pronomes como do pronome elles em Les guérillères (WITTIG, 1971).

A linguagem, para Wittig (1992, p. 80), carrega o potencial de fazer com que todos tenham acesso ao estatuto de sujeito e parte da ideia de que “as mulheres são marcadas na linguagem pelo gênero” (WITTIG, 1992, p. 82). Tratar desse assunto a partir do gênero funcionaria justamente como um impeditivo, extirpando a subjetividade do ser humano não homem, privando as mulheres de autoridade discursiva. Só há um ser, um Um, para Wittig (1992, p. 80) — tratar do ser como dividido na linguagem através do gênero seria uma armadilha ontológica, pretendendo introduzir um ser que não existe —, o que faria com que a parte mulher fosse submetida a um grau menor. Daí a proposta de Wittig de que gênero seja uma categoria a ser anulada e retirada da linguagem. A nosso ver, há aqui grande proximidade com o que pensamos ser o sujeito em psicanálise — sexuado, sempre, já que inserido na linguagem, e, como tal, falicizado, mas que não leva o fator gênero na sua constituição. “Destruir as categorias de sexo na política e na filosofia, destruir gênero na linguagem (pelo menos para modificar seu uso) é parte do meu trabalho de escrita, como uma escritora” (WITTIG,

No documento A diferença dos sexos: Lacan e o feminismo (páginas 83-94)