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1. LACAN E O FEMINISMO FRANCÊS

1.1 Irigaray e a batalha pela diferença

1.1.1 Contra Freud

Em sua crítica a Freud, desenvolvida principalmente em Speculum: de l’autre femme e “Ce sexe qui n’en est pas un”, Irigaray se foca nos textos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905), “A organização genital infantil” (1923), “A dissolução do complexo de Édipo” (1924), “Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos” (1925), “Sexualidade feminina” (1931) e “Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise – conferência XXXIII, feminilidade” (1932-33). Nessa empreitada, Irigaray (1977/1985, p. 49) se mune dos trabalhos de Melanie Klein, Ernest Jones, Helene Deutsch, Jeanne Lampl-de Groot, autores que valorizaram a fase pré-edípica, período ainda não governado pelo falicismo na evolução sexual. Também foi marcada por Karen Horney, que se dedicou principalmente ao papel dos fatores socioculturais em jogo para a determinação do que se entende por sexualidade feminina e sua sustentação nos parâmetros masculinos.

A mulher, ao longo da história ocidental, foi vinculada à figura da mãe, sempre referida à natureza, ao corpo e à reprodução; enquanto o homem, à cultura e à subjetividade. A metafísica de Platão teria marcado a concepção ocidental de diferença sexual, o que acabou desembocando na equação mãe-mulher, ou seja, num achatamento do imaginário feminino. A economia masculina prevalecente seria associada ao logos filosófico, reduzindo tudo à economia do mesmo ou ao pensamento simétrico. Tudo passa a ser medido a partir do homem, único sujeito representado filosoficamente. A mulher é um não homem. Nesse sentido, se o discurso filosófico apresenta um estilo lógico, coerente — portanto, masculino —, a mulher seria associada aos atributos contrários, como irracionalidade e inconsciência. Para Irigaray, o processo de construção do homem enquanto sujeito exige a exclusão da mulher dessa condição. Não só a subjetividade masculina, mas toda sociedade seria fundada tendo como ponto de partida esse primeiro sacrifício a que as mulheres são submetidas. À mulher só é possível acessar o lugar de sujeito se ela “importar” elementos próprios aos homens. Se os homens são o sujeito e a mulher, o outro, é como se a diferença sexual não existisse. No final das contas, só haveria um sexo — daí a insistência de Irigaray em que o movimento feminista foque a diferença sexual, o que lhe rendeu embates internos: segundo Whitford (in BRENNAN, 1997, p. 147), Irigaray é criticada por suspostamente ter se sustentado num ‘essencialismo biológico’, dada sua insistência no corpo da

mulher, e num ‘essencialismo psiquíco’ — já que sua teoria levaria a crer que ela perseguia um simbólico feminino.

Thomas Laqueur (2001) mostra que, da Antiguidade clássica até o século XVIII, prevaleceu o modelo do isomorfismo sexual, a ideia de que o corpo-homem e o corpo-mulher não eram opostos anatomofisiologicamente. Nesse período, a fronteira entre o masculino e o feminino é de grau, e não de espécie. O corpo da mulher era uma versão do corpo do homem, o que fazia com que a vagina fosse vista como um pênis invertido. Freud parece herdeiro desse modelo isomórfico, mas em outra entrada. Os corpos são distintos anatomicamente, sim; mas é só a partir de um determinado momento, e sob certas condições, que tal distinção é efetivada. Psiquicamente, até o fim do percurso edípico não há diferença sexual. Além do mais, a libido é única, masculina.

Para Irigaray, a psicanálise seria herdeira do discurso filosófico que, desde os tempos antigos, articula-se epistemológica, ontológica e metafisicamente a partir da perspectiva masculina. Tal discurso é regido por processos como analogia, comparação, simetria e dicotomia opositivas: “A diferença sexual é uma derivação da problemática da mesmitude” (IRIGARAY, 1974/1985, p. 26).

É o que vemos em Freud quando tenta explicar a sexualidade feminina sob tais expressões: inveja do pênis, superego fraco, continente negro, menor senso de justiça, menos interesses sociais e menor capacidade sublimatória. É como se a mulher fosse fruto de um desenvolvimento insuficiente ou deformado quando comparada ao que se dá com o homem. Tentando abordá-la através de processos que fossem comuns a ambos, como o complexo de Édipo e a confrontação com a castração, só pôde equalizá- la a um mistério.

Na leitura de irigarayana de Freud, a anatomia é o destino: Freud teria se pautado em um determinismo biológico a partir do qual a mulher é inferiorizada e seu sexo não tem valor. A distinção anatômica entre os sexos explicaria a diferença na economia psíquica, sendo só o sexo do homem capaz de representação. Freud opera dicotomicamente e, a partir desse pensamento simétrico, a feminilidade será como um reflexo negativamente equacionado à masculinidade. Para que o homem domine essa economia e o processo de especularização seja bem sucedido, é necessário que o seu “outro” seja produzido, seu binário negativo, a ser diferenciado dele e hierarquicamente a ele submetido:

[a especularização] é uma intervenção necessária, exigida por esses efeitos de negação que resultam de/ou postas em movimento através da censura do feminino, através do qual o feminino será admitido e obrigado a assumir tais posições: ser/tornar-se; ter/não ter sexo (órgão); fálico/não-fálico; pênis/clitóris ou mesmo pênis/vagina; mais/menos; claramente representável/continente negro; logos/silêncio ou tagarelice; desejo pela mãe/desejo de ser mãe. (IRIGARAY, 1974/1985, p. 22; trad. nossa)

O grosso dos paradigmas e dos valores sociais é masculino. É pelo fato de a mulher ser entendida como ontologicamente irrepresentável na época de Freud, para Irigaray, que se passou a dizer, como Beauvoir, que não se nasce mulher, mas torna-se uma — cabendo-lhe, portanto, um caminho mais longo para percorrer para ser mulher, do que ao homem, para ser homem.

Ser mulher anda em paralelo com acessar um prazer tido como tipicamente feminino. Mas o que ela seria antes disso? “Nada” (IRIGARAY, 1974/1985, p. 25), só um menino menor cuja libido deve ser reprimida em direção ao tornar-se mulher.

A menina é um pequeno menino com certos atributos morfológicos a menos. Ela vive de maneira masculina: excita-se ativamente com o clitóris, uma “espécie” de pênis — equação que, por sinal, nunca é bem superada, o que a levaria sempre a buscar substitutos, a ficar na dependência de alguém que supostamente a aliviaria da dor de não o possuir, — e ativamente toma a mãe como objeto de amor. Ao postular que o que caracterizaria a mulher seria a inveja do pênis, Freud, segundo Irigaray (1974/1985, p. 63) não estaria pautado em uma heterogeneidade, mas sim num tipo de negatividade: não é que ela teria outro órgão ou outro sexo, mas sim um não sexo ou não órgão. Definir a sexualidade feminina dessa maneira seria uma forma de dominação, uma estratégia com fins de manter o poder nas mãos dos homens e aniquilar eventuais ameaças, caso a mulher — a partir do que lhe é próprio — acessasse alguma espécie de representação.

Irigaray (1974/1985, pp. 29-30) aponta que não há uma discussão em Freud a respeito de um suposto estágio da vulva, da vagina ou de um estágio uterino dentro da discussão da sexualidade feminina, o que seria tributário de uma suposta especificidade da mulher; ou da peculiaridade do prazer associado à vagina ou ao toque dos seios e dos lábios. Por que a masturbação da menina só é relativa ao clitóris? Freud, na leitura de Irigaray, não diz nada a respeito de outros componentes do órgão genital feminino e de outras partes sensivelmente erogeneizadas — ele amputaria certas regiões da genitália feminina que supostamente teriam menor potencial erótico. Fica difícil entender por

que, em Freud, a passagem do clitóris para a vagina como principal zona erógena é importante, e Irigaray sugere que o motivo talvez seja a vagina ser um componente da genitália feminina indispensável para o prazer masculino no ato sexual. A inveja do pênis e o valor atribuído a ele também são interpretados por Irigaray de forma invertida e dialética: a inveja do pênis pela menina seria um afeto primordial; é ele que atribuiria valor ao órgão masculino, como se o menino dissesse: “se ela inveja isto que eu tenho, então meu pênis tem valor”. Nesse sentido, o valor que o pênis carrega provém do outro. A castração, válida universalmente, é a de um órgão do menino, não é uma castração “dela”, a perda de algo do corpo dela.

Consequentemente, para Irigaray, a mulher será o emblema da pulsão de morte percebida com horror, aquele que o olho da consciência recusa constatar a falta ou falha: a castração. Irigaray chama atenção para o fato de o complexo de castração freudiano passar necessariamente pelo olhar: a criança vê a ausência de pênis da mulher, o que sem dúvida provoca uma mudança computada imaginariamente. ‘Nada a ver’, frente ao que ninguém, nenhuma mulher pode ajudar a menina a encontrar símbolos que valorizem sua genitália.

Na leitura crítica que Irigaray faz de Freud, a inveja do pênis parece ser o representante do desejo feminino de acionar a ordem simbólica; só dessa forma ela entraria no discurso — significado esse amplamente ancorado no padrão fálico. Ela só alcança o campo simbólico ao preço de abrir mão de sua feminilidade.

A castração imputa à mulher somente uma possibilidade, a mascarada, recurso esse que Irigaray afirma proporcionar algum prazer tipicamente feminino (IRIGARAY, 1974/1985, p. 114). Para ela, a construção da máscara se edificaria a partir dos valores que os homens reconheceriam como importantes para uma mulher. Trata-se de um processo fálico e que, no seu desenrolar, exige que a mulher descarte o que, de fato, lhe seria “seu” para corresponder aos padrões masculinos que ditariam como ela deve se dar a ver.

Irigaray considera que a castração feminina não pode ser pensada como o mesmo processo pelo qual o menino passa. Talvez deva ser encarada como a impossibilidade de representar ou simbolizar a relação inicial com a mãe (período pré- edípico). Talvez sua “mal resolvida” castração, e a concomitante dificuldade de entrar como sujeito nos sistemas simbólicos, tenha a ver com a impossibilidade de metaforizar aquele desejo original fruto da relação mãe-filha. Ao se submeter às metáforas fálicas como um menino, só lhe resta imitá-lo e fazer equivaler seu desejo pela mãe com o

desejo por uma mulher, e não a um desejar como mulher (a primeira saída pressupõe que as imagens de mãe e de mulher se condensam no mesmo ser; a segunda, não). A não significação da mulher nessa relação mãe-filha promove a depreciação da mãe — e de todas as mulheres, já que castradas — aos olhos da menina (IRIGARAY, 1974/1985, pp. 83-4).

Outro ponto muito criticado por Irigaray é a dicotomia ativo/masculino e passivo/feminino em voga no entendimento freudiano da diferença sexual. Em Freud, na fase pré-edípica, a menina é como um menino pequeno. No estágio sádico-anal, não há diferenciação entre homem e mulher — só há masculinidade — nem entre atividade e passividade. Seu clitóris é fálico e ativo. Ela tem de abandonar o investimento nesse órgão sexual (e seu objeto de amor inicial, a mãe) para desembocar na feminilidade normal, marcada pela erotização da vagina. Caso contrário, seu destino será a neurose ou a masculinização. Irigaray aponta que é só nesse momento posterior que, talvez por imposição de valores culturais, a menina tenha de abrir mão de seu caráter ativo em prol da feminilidade passiva que é esperada dela.

Segundo Irigaray, a construção daqueles binários tem a ver com um saber de época em que a “ciência do sexual” servia de parâmetro, cujos efeitos eram sentidos inclusive nas esferas sociais e econômicas. Atividade era associada ao movimento do esperma na fecundação; ao passo que a passividade, à “espera” do óvulo. Dessa “espera” pelo esperma se deduz a espera pelo homem no ato sexual. O homem é provedor, produtor, e seu espaço — o público — leva-o a sair do seu ambiente original; a mulher é o receptáculo; seu espaço é o privado. Irigaray (1974/1985, p. 19) critica tanto a construção dos binarismos falogocêntricos quanto a suposição de que a natureza determinaria os significados atribuídos a cada um de seus polos.

E mais, Irigaray segue com sua crítica. A mulher seria sempre passiva? Não, só em um ponto ela não é: ela “escolhe” ativamente a posição masoquista, tal como se leria em Freud. Para Irigaray, ela não teria escolha: como deve suprimir sua agressividade por uma imposição social, já que deve ser afetuosa, delicada e dócil, a mulher converte sua libido em impulsos masoquistas, erotizando tal tendência destrutiva (IRIGARAY, 1974/1985, pp. 19-20).

Neurótica, masculinizada ou feminina masoquista. Irigaray parece considerar que, para Freud, toda e qualquer mulher é patologizável, por ser mulher. Patologizar a mulher seria uma forma de adaptá-la à sociedade masculina (IRIGARAY, /1977/1985,

p. 73). Nem a maternidade — que, em Freud, seria o traço privilegiado e definitivo do feminino — escaparia desse raciocínio.

Na leitura de Irigaray, a feminilidade, marcada pela inveja do pênis, tenderia justamente a desaparecer com a maternidade. Fazer-se de mãe, tomar o filho como substituto do pênis ausente, é um recurso fálico — portanto, não pode ser feminino (IRIGARAY, 1974/1985, pp. 77-8). Fazer-se de mãe não se confunde com a representação da mulher; pelo contrário, é dar ao feminino uma veste encobridora regida pela economia masculina. Só através de repetições, reiterações de representações fálicas, inscritas no e pelo masculino, que ela entra no universo discursivo do Mesmo. Como não é passível de se inscrever na linguagem, ela nada tem a dizer propriamente sobre seu prazer e seu sofrimento. Na sequência, só resta aos seus sintomas, hieróglifos indecifráveis, a inscrição no corpo: a mulher é associada diretamente a corpo — nesse caso, a somatizações enigmáticas e ao teatro —, sempre como objeto de investigação do homem.

Todo esse cenário social, econômico e representacional ao qual a mulher é relegada é necessariamente indutor de sofrimento. Irigaray parece sugerir que muitas das patologias da mulher são provocadas pelo fato de que, para ter inteligibilidade, ela tenha de reprimir sua feminilidade e falar a “língua dos homens”.

Neste sentido, e essa nos parece ser a principal crítica que Irigaray endereça a Freud, ela sustenta que os desenvolvimentos freudianos referentes à diferença sexual não deveriam ser encarados como universais, mas sim resultado do caldo histórico e cultural em que estava embebido, uma cultura “hommo-sexual” (IRIGARAY, 1974/1985, p. 103) regida por uma economia patriarcalista de base vitoriana: “o problema é que ele [Freud] falha por não investigar os fatores históricos que regem os dados com os quais ele estava lidando” (IRIGARAY, 1977/1985, p. 70). Freud não teria se dado conta de que havia a tendência, em sua época, de tomar a anatomia como critério de verdade científica irrefutável e universal; ele não teria reconhecido se tratar somente de um discurso dentre outros a prevalecer em determinado tempo histórico. Freud não questiona os fatores culturais que exigiriam que a mulher reprimisse sua libido no seu caminho rumo à feminilidade.

Para falar dela, Freud recorre aos elementos dele; e, nessa comparação hierarquizante, a mulher sempre é inferiorizada. Para Irigaray, a subjetividade feminina não pode ser pensada a partir desse modelo de “um” sexo. Seria graças a esse tipo de movimento histórico-discursivo que as mulheres são vistas pejorativamente. Para que

mudanças ocorram e a mulher passe a ter existência social, há de se desvincular a mulher da noção de mãe. O corpo e a natureza, elementos associados a ela, devem deixar de ser encarados como entidades pouco nobres a serem controladas, e o homem deve ser “encorporado”. Confundidos para mitigar hierarquias, homens e mulheres devem ser reconhecidos em suas vertentes de natureza e cultura.

No documento A diferença dos sexos: Lacan e o feminismo (páginas 34-40)