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Rubin e o sistema sexo/gênero

No documento A diferença dos sexos: Lacan e o feminismo (páginas 116-123)

2 GÊNERO E LACAN

2.3 Rubin e o sistema sexo/gênero

O movimento da escrita feminina dos anos 70, contemporâneo às reivindicações das mulheres quanto ao direito de decidir sobre o seu corpo na esfera política, propunha inscrever o corpo da mulher no discurso e fundar a escrita de suas especificidades. Freud é, mais uma vez, questionado. A crítica ao falo é reincendiada sob os termos falocratismo e falogocentrismo, com a vestimenta do lacanismo e das ideias de Derrida. Inspirada em Jones, retorna a discussão a respeito de uma libido feminina, ou mesmo um inconsciente feminino. Feminismo e psicanálise estiveram intricados nos primórdios da psicanálise e não seria diferente daqui para frente. Cruzando o Atlântico, o feminismo teve papel decisivo para a implantação e a propagação da teoria psicanalítica em solo norte-americano.

A batalha entre a psicanálise e os movimentos gay e das mulheres se tornou legendário. Em parte, esse confronto entre revolucionários sexuais e clínica “estabelecida” tem sido motor da evolução da psicanálise nos Estados Unidos, onde esta tradição clínica fetichizou a anatomia. (ROUDINESCO, 1994, p. 184)

Se, em campo francófono, um “lacanismo linguageiro” foi privilegiado, naquele país foi a retomada de Lévi-Strauss da antropologia estrutural empregada por Lacan que foi evidenciada. O trabalho de Gayle Rubin de 1975 foi fundamental nesse processo. Segundo a antropóloga, a circulação do falo não seria mais do que uma versão refinada da troca de mulheres, levando sempre ao mesmo ponto: opressão e hierarquização dos gêneros e das práticas sexuais não heterossexuais.

De onde vem a origem da opressão e da subordinação social da mulher? A resposta, complexa, está na base do feminismo e o modo como é estabelecida acaba determinando os meios pelos quais tal cenário poderia mudar em direção a uma sociedade sem hierarquia de gênero. Nosso foco aqui não é tentar dar conta desse problema na totalidade em que foi tratado pelos estudos de gêneros norte-americanos, talvez onde esse tema foi e continua sendo mais extensivamente abordado no mundo — a quantidade de trabalhos, publicações, congressos, departamentos de universidades específicos é enorme —, mas analisar como o campo lacaniano foi recebido por elas. Na coleta dos textos fundamentais sobre o assunto, esse de Rubin, leitora de Lacan, é essencial para qualquer estudo sobre o feminismo que se queira em debate com a psicanálise.

É nesse trabalho, inclusive, que Rubin funda o sistema sexo/gênero, tão caro a Butler e à teoria queer.

Fome é fome, mas o que conta como comida é culturalmente determinado e adquirido [...]. Sexo é sexo, mas o que conta como sexo é, da mesma forma, culturalmente determinado e adquirido. Cada sociedade tem seu sistema sexo/gênero — um conjunto de arranjos pelo qual a matéria biológica do sexo humano e a procriação são moldadas pelo (como) humano, pela intervenção social e satisfeitas de modo tal como dita a convenção, sem importar o quão bizarra essa convecção possa ser. (RUBIN, 1975, p. 165; trad. nossa)

Embrião do quarteto butleriano, sexo-gênero-desejo-práticas sexuais, “sexo, tal como concebemos — identidade de gênero, desejo sexual e fantasia, concepções sobre o infantil — é um produto social” (RUBIN, 1975, p. 166). Essa é a chave de leitura de Rubin: os sistemas de parentesco são passíveis de serem analisados à luz desse sistema de sexo/gênero.

Rubin apresenta diversos relatos antropológicos como forma de demonstrar como diferentes culturas, em diferentes momentos históricos, entendem o sexo e como sua interpretação determina os lugares sociais do homem e da mulher. E que só sob

certas condições históricas uma mulher é e faz o que caberia a uma mulher, ou seja, é o cenário social que oferece os critérios pelos quais se avaliará se um ser corresponde adequadamente a uma mulher (ou a um homem).

O sistema sexo/gênero não serve somente para se pensar tais questões na contemporaneidade, já que, por exemplo, o sexismo já estava presente em sociedades pré-capitalistas, haja vista a prática do cinto de castidade na Europa feudal. Rubin também se esforça em demonstrar que as forças econômicas não são a única engrenagem desse sistema sexual. Ele não deve ser tratado como sinônimo de “patriarcado”, já que este se refere a uma forma específica de dominação masculina — existem sistemas estratificados a partir do gênero que foram organizados de outra forma, tal como se detecta em sociedades da Nova Guiné, nas quais o poder do homem não deriva do seu papel de pai, mas de certos rituais de iniciação ou cultos nos quais tal poder é incorporado. Então sexo/gênero não é sinônimo de patriarcado, não deve ser reduzido à economia e pode ser um instrumento de análise de como as relações de parentesco de várias culturas, em diferentes momentos históricos se deram.

E por que recorrer à psicanálise? Por esta poder dar conta do que a antropologia não se propõe a tratar, ou seja, como o parentesco se reproduz, como as convenções de sexo e gênero são internalizados pelos sujeitos; e, sobretudo, por se dedicar ao resíduo, ao que sobra da não adequação do sujeito às regulações da sexualidade ditadas pela sociedade (RUBIN, 1975, p. 183).

Sobre os psicanalistas, “o trabalho deles nos habilita a isolar sexo e gênero dos modos de produção, opor-se a uma tendência a explicar a opressão sexual como reflexo somente das forças econômicas” (RUBIN, 1975, p. 203). Fatores históricos, políticos, tecnológicos, econômicos devem ser levados em conta, mas também as novidades trazidas pela psicanálise. Ao contrário de Marx, que trataria do trabalhador e do capitalista como seres assexuados, tanto Freud quanto Lévi-Strauss têm o mérito de reconhecer e incorporar em suas teses as diferenças pelas quais homens e mulheres atravessam. Contudo, para Rubin, Freud e Lévi-Strauss padeceriam de ingenuidade: eles não calcularam as implicações que seus aportes teóricos poderiam ter para o feminismo, não levaram em conta o sexismo endêmico que descreviam, desconsiderando a história. Para ela, é só através da análise do elemento histórico e moral, incluindo nesse escopo a diferença sexual, que se pode delinear como a opressão sexual se estruturou — o que a psicanálise não teria considerado.

Mesmo Estruturas elementares de parentesco tendo valor por “desbiologizar” a determinação dos papéis sociais e ligá-los ao terreno do sexual, ainda assim daria força ao mecanismo segregador do gênero:

é uma obra no qual o parentesco é explicitamente concebido como uma imposição da organização cultural sobre as evidências da procriação biológica. É permeado pela consciência da importância da sexualidade na sociedade humana. É uma descrição da sociedade que não toma o sujeito humano como abstrato, sem gênero. Pelo contrário, o sujeito humano no trabalho de Lévi-Strauss é sempre homem ou mulher, e os destinos sociais divergentes dos dois sexos podem, portanto ser traçados. Como Lévi-Strauss vê que a essência do sistema de parentesco se baseia na troca de mulheres entre os homens, ele constrói uma teoria implícita da opressão ligada ao sexo. (RUBIN, 1975, p. 171; trad. nossa)

A troca de mulheres, realizada por homens, é o que promove a conexão entre diferentes comunidades, o que pressupõe uma determinada relação de parentesco na qual o incesto é tido como tabu. Importante enxergar que, nesse sistema descrito por Strauss, a opressão à mulher — fruto de um arranjo social não determinado biologicamente — não seria restrita ao mundo primitivo, estendendo-se ao mundo civilizado, no qual a mulher ainda clama por direitos. Outro problema levantado por Rubin (1975, p. 176) é que “Lévi-Strauss argumenta que o tabu do incesto e os resultados de sua implicação constituem a origem da cultura, como se a anulação da mulher fosse um pré-requisito para a fundação da cultura”. Ela defende que nem a troca de mulheres descreve ou sustenta tudo o que pode se dar num sistema de parentesco, nem toda ordem cultural nasceria dessa prática social. Além do mais, cada sociedade determina o mecanismo pelo qual as convenções referentes à sexualidade são configuradas.

Rubin, a respeito do ensaio La famille, também de Lévi-Strauss, aponta que a divisão de trabalho entre homem e mulher é vista como tabu ao preconizar duas categorias exclusivistas, que “exacerba as diferenças biológicas entre os sexos e desse modo cria o gênero” (RUBIN, 1975, p. 178). Nesse sentido, o arranjo sexual privilegiado é o casamento heterossexual, um homem e uma mulher, tido como a unidade econômica viável. Na nossa cultura, a lógica estrutural que subjaz o parentesco toma como ponto de partida a heterossexualidade obrigatória, a partir da qual o casamento entre homem e mulher é a relação de parentesco válida, a homossexualidade deve ser banida e a sexualidade feminina, desconsiderada. O gênero acaba sendo

imposto a partir da divisão sexual e o sistema de parentesco transforma o macho e a fêmea em homem e mulher.

Para que este quadro se imponha, há de se potencializar a diferença entre os sexos. Rubin não nega que elas existam, “mas (homens e mulheres) não são tão diferentes como dia e noite, terra e céu, yin and yang, morte e vida” (RUBIN, 1975, p. 179). Na natureza, o homem é menos diferente da mulher do que o é com relação a uma árvore ou a um peixe, o que faz pensar que não é tanto a natureza que impõe essa ideia de que homem e mulher sejam elementos radicalmente opostos. “Longe de ser a expressão de diferenças naturais, a identidade exclusiva de gênero é a supressão das similaridades naturais” (RUBIN, 1975, p. 180), Nesse sentido, o entendimento de ‘homem’ parte da repressão dos traços que apontem para o feminino, e o mesmo para o de ‘mulher’, com relação ao masculino. Gênero acaba sendo a identificação com um só sexo e toda união não heterossexual é tabu.

A supressão do componente homossexual da sexualidade humana é fruto do mesmo sistema que impõe as regras que oprimem a mulher, segundo Rubin (1975, p. 180). A psicanálise, nos seus desenvolvimentos teóricos referentes ao Édipo e à constituição da identidade sexual — tal como concebe as figuras parentais, seus papéis e relações —, seria herdeira de todo esse arcabouço levistraussiano, contribuindo cegamente para a opressão e hierarquização impostas pelo patriarcado ao feminino, assim como exilando as práticas não heterossexuais.

Rubin destaca que nos EUA, pelo menos num primeiro momento, a clínica psicanalítica foi encarada como provedora duma técnica que prometia fazer com que o indivíduo avançasse as fases desenvolvimentistas sexuais em direção ao que lhe estava anatomicamente determinado, ou seja, em direção à heterossexualidade — ela ofereceria uma terapêutica aos sujeitos que não corresponderiam ao ideal genital, para reparar o erro: “a psicanálise se tornou mais do que uma teoria dos mecanismos de reprodução dos arranjos sexuais, ela é um desses mecanismos” (RUBIN, 1975, p. 184).

Por outro lado, Rubin reconhece que a teoria psicanalítica apresenta pontos positivos e úteis ao feminismo, principalmente ao descrever os mecanismos pelos quais os sexos são divididos e diferenciados a partir da bissexualidade original. Nesse sentido, “a psicanálise é uma teoria feminista manqué” (RUBIN, 1975, p. 185). Rubin também vê com simpatia os desenvolvimentos teóricos referentes ao estágio pré-edípico, cujas características (bissexualidade, pulsão parcial) podem reformular ideias referentes à heterossexualidade primordial e à identidade de gênero. Apesar das implicações de

temas — como inveja do pênis, libido masculina, inferioridade da mulher na comparação ao homem — que tanto enfureceram as feministas, Rubin considera que o fato de o postulado freudiano do percurso da mulher em direção à feminilidade não ser biologicamente determinado deve ser visto com entusiasmo.

Contudo, ela não é tão benevolente com o lacanismo. “Lacan sugere que a psicanálise é o estudo dos traços deixados no psiquismo dos indivíduos como resultado da conscrição ao sistema de parentesco” (RUBIN, 1975, p. 188) — por aí já vemos a lente pela qual Rubin lê Lacan.

No esquema de Lacan, a crise edípica ocorre quando a criança aprende as regras sexuais decretadas nos termos da família e de seus parentes. A crise começa quando a criança compreende o sistema e o seu lugar nele; a crise é dissipada quando a criança aceita aquele lugar e acede a ele. (RUBIN, p. 189; trad. nossa)

Nesse contexto, esse sistema inibe a expressão de toda diversidade e de todas as possibilidades abertas na fase pré-edípica da criança: algumas são encorajadas, outras devem ser reprimidas de acordo com as regras culturais — edípicas, no caso — em jogo.

Rubin reconhece que, em Lacan, falo não é sinônimo de pênis e que a castração tem sua vertente simbólica. Mesmo assim,

[...] o falo carrega o significado do domínio do homem sobre a mulher, e pode ser inferido que a “inveja do pênis” é o reconhecimento disso. Além disso, na medida em que os homens têm direitos sobre as mulheres que elas próprias não têm sobre si mesmas, o falo também traz em si o significado da diferença entre “trocador” e “troca(da)”, quem é fornecido e quem fornece. (RUBIN, 1975, p. 191; trad. nossa)

O falo seria, na ótica de Rubin, um objeto simbólico a ser trocado entre as famílias: “em certo sentido, o complexo de Édipo é um expressão da circulação do falo nas trocas dentro das famílias, uma inversão da circulação de mulheres nas trocas entre famílias” (RUBIN, 1975, pp. 191-2). O falo, além de entrar em jogo na diferença dos sexos, incorpora o status masculino de ter direitos sobre as mulheres: se as mulheres são elementos que passam de um homem a outro, também nas trocas simbólicas nas quais o falo está presente, elas não têm participação senão a partir do que o homem lhes permite, problematizando a tese lacaniana de “ter ou não ter” o falo.

[...] é somente através dele que ela pode entrar no sistema de troca simbólica na qual o falo circula. Mas o pai não dá a ela o falo da mesma forma que ele o dá ao menino. O falo é afirmado no menino, que depois tem de concedê-lo. A menina nunca consegue o falo. Ele passa através dela, e nessa passagem [o falo] é transformado em um filho. Quando ela ‘reconhece sua castração’, ela acessa o lugar de uma mulher na rede de troca fálica. Ela pode ‘ter’ o falo — no ato sexual, ou na forma de um filho —, mas só como um dom vindo do pai. Ela nunca o tem para poder concedê-lo. (RUBIN, 1975, p. 195; trad. nossa)

Ou seja, trocam-se os elementos e mantêm-se os princípios concebidos por Lévi-Strauss para se pensar o sistema sexo/gênero tal como se manifesta hoje em dia? É como se estivéssemos acompanhando o renovar da “expressão da transmissão da dominação masculina” (RUBIN, 1975, p. 192). Se a organização do sexo e do gênero tem implicações para além do campo da sexualidade, chegando ao extremo de organizar a própria sociedade, segundo Rubin, “o feminismo deve clamar por uma revolução no parentesco” (RUBIN, 1975, p. 199) para alcançar seus objetivos.

Contudo, Lacan apresenta esta passagem a respeito do patriarcado, anunciando que, para ele, o Édipo deve ser tratado pela lógica e pela noção de número, percurso esse que será trilhado por nós mais adiante:

O mito do Édipo faz espalhafato porque, supostamente, instaura a primazia do pai, que seria uma espécie de reflexo patriarcal. Eu gostaria de fazê-los perceber por que, pelo menos para mim, ele de modo algum parece ser um reflexo patriarcal, longe disso. Ele nos evidencia por onde a castração poderia ser tomada por uma abordagem lógica, e de um modo como eu designaria numeral. (LACAN, 1971-72/2012, p. 162)

Voltando a Rubin. Ela já havia preconizado que a estratégia feminista não deve ser a de eliminar os homens; não se trata de inverter os papéis para que as mulheres assumam o poder, já que tal estratégia alimentaria o sistema que cria sexismo e hierarquia de gênero, tal como as feministas francesas também pensavam.

Eu pessoalmente acho que o movimento feminista deve sonhar com mais do que eliminar a opressão das mulheres. Deve sonhar com a eliminação das sexualidades obrigatórias e dos papéis sexuais. O sonho que considero mais instigante é o de uma sociedade andrógena e sem gênero (mas não sem sexo), na qual o sexo anatômico seja irrelevante para quem se é, o que se faz ou com quem se faz amor. (RUBIN, 1975, p. 204; trad. nossa)

O sexo deve ser desvinculado da anatomia, o que não quer dizer que a salvação seria nos atermos ao “gênero”. Para Rubin, esse termo traria em si, assim como considera Wittig, a marca da opressão. A estratégia seria, mais uma vez, eliminá-lo? Eliminá-lo como substância não é sinônimo de eliminá-lo como categoria. Butler vê uma alternativa intermediária e trata de gênero como entidade performativa sem essência, ou como elemento que só adquire aparência de essência enquanto performatizado.

Tratemos então de Butler. Crucial apontar que não pretendemos dar conta de toda a teoria de Butler sobre gênero, sobre a constituição de sujeito, ou da sua intricada formulação do sujeito melancólico. O que nos interessa é sua apropriação dos conceitos da psicanálise lacaniana e o modo afiado com que os interpretou. Butler tem o mérito de oferecer uma leitura aguçada sobre pontos problemáticos da psicanálise, como o estatuto do registro simbólico e da diferença sexual, as posições de ser e ter o falo, que não à toa suscitou uma quantidade enorme de trabalhos em resposta às críticas que endereçou à psicanálise. Por isso, todo o espaço dedicado a ela e a seus comentadores. O debate que incita é extremamente útil, pois obriga os psicanalistas a enfim tratarem de fundamentos obtusos da psicanálise que costumam passar incólumes, em boa parte, nas suas instituições de transmissão.

No documento A diferença dos sexos: Lacan e o feminismo (páginas 116-123)