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Para o sexo psicanalítico

No documento A diferença dos sexos: Lacan e o feminismo (páginas 164-175)

2 GÊNERO E LACAN

3.1 Para o sexo psicanalítico

“O mau encontro central está no nível do sexual.” — Jacques Lacan (1964/1998, p. 65)

Poderíamos falar em uma teoria unificada a respeito do sexo em psicanálise, como questiona Dunker (2016)? Tanto em Freud quanto em seus continuadores parece que o sexo é tratado sob vários aspectos: pulsão, vida amorosa, construção do erotismo, prática sexual, chegando até a apresentar indícios de gênero sexual — quando se recorre a termos como ‘masculinidade’ e ‘feminilidade’, entendidos como identificações sexuais decorrentes do percurso edípico. Em psicanálise,

não há conceito ou tema que não possa ser remetido direta ou indiretamente à sexualidade. Mas com esse movimento, o que se verifica é uma expansão da conotação de sexualidade [...], essa teoria geral da sexualidade parece estar por toda parte e ao mesmo tempo em nenhuma, de modo claramente isolável. (DUNKER, 2016, p. 180)

Ou seja, o estatuto do sexo em psicanálise é algo completamente flutuante. Tanto tomado como chave de leitura para a pulsão freudiana quanto para a sexuação lacaniana, sexo se distancia largamente, a nosso ver, de modelos normativos que

pregam que deva haver adequação entre sexo e gênero e que a heterossexualidade genital e o amor “complementar” devem ser o alvo almejado no itinerário libidinal. Pelo contrário, sexo, ao ser desvirtuado pela linguagem, confunde-se com desejo e gozo — elementos que implementam a contingência e a intransigência no universo das normas.

Foucault nos servirá como um contraponto aqui, para apresentar um dos alicerces da teoria queer, a ser comentado posteriormente por Copjec na sua tentativa de localizar o sexo em psicanálise.

[...] o projeto de uma ciência do sujeito começou a gravitar em torno da questão do sexo. A causalidade no sujeito, o inconsciente do sujeito, a verdade do sujeito no outro que sabe, o saber, nele, daquilo que ele próprio ignora, tudo isso foi possível desenrolar-se no discurso do sexo. Contudo, não devido a alguma propriedade natural inerente ao próprio sexo, mas em função de táticas de poder que são imanentes a tal discurso. (FOUCAULT, 1976/1988, p. 80)

Para Foucault, a verdade dos corpos está intrinsecamente vinculada às práticas de poder de determinado contexto sócio-histórico. Tais práticas funcionam como dispositivos reguladores; e se, ao longo do tempo, são reconfigurados, novas verdades são produzidas — dessa forma, o entendimento da sexualidade (e da diferença sexual) depende da discursividade em jogo. Na contemporaneidade, a questão do que marca o humano passa inescapavelmente a se vincular com a temática do sexo, nos vários sentidos que este tem: o sexo biológico atribuído (assigned) no nascimento, o papel social e as funções desenvolvidas (gênero) e a atividade sexual. Sexo não deve ser entendido como “sexo-natureza” — concepção essa que, por sinal, também é resultado de um discurso sobre o sexo —, mas como “sexo-história” ou “sexo-discurso”, anexado a uma racionalidade que nos imputa uma lógica dos desejos e dos prazeres do corpo.

Até o final do século XVIII, segundo Foucault, três códigos regiam as práticas sexuais: o direito canônico, a pastoral cristã e a lei civil — a partir deles, demarcavam-se o lícito e o ilícito. A referência, o foco de atenção era a relação matrimonial, marcada de prescrições, recomendações e cuidados. Romper as leis do casamento e ir atrás de prazeres que violariam as regras eram condenáveis. Com o século XIX, a sexualidade passa a ser pública; vai do ambiente privado à publicidade dos poderes médicos, jurídicos, sociais, através dos dispositivos de sexualidade. O casal detém a verdade da sexualidade, a monogamia heterossexual é a regra e o que foge a isso é tido como anormal — é daí que nasce o conceito de anomalia e anormalidade, a

partir dos quais se funda o conceito de norma: “heterossexualidade” nasceu a partir da definição das anomalias.

Apesar de ainda persistir a manobra política de limitar o sexo à função reprodutiva e à legitimidade matrimonial (dispositivo de aliança), a partir do fim século XVIII quatro grandes conjuntos estratégicos despontam como dispositivos específicos de saber-poder a respeito do sexo. São eles: histerização do corpo da mullher; pedagogização do sexo da criança; socialização das condutas de procriação; e psiquiatrização do prazer perverso. Tais subgrupos compõem o que Foucault denomina dispositivo da sexualidade e comportam técnicas disciplinares e procedimentos reguladores. Cabe ressaltar aqui que a sexualidade não é entendida como um dado da natureza, mas como uma produção, uma “grande rede da superfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e de poder” (FOUCAULT, 1976/1988, p. 117).

Na sociedade ocidental do século XVII, grosso modo, podemos dizer que era pela repressão que o poder atuava no campo do sexual. Temos aqui a famosa hipótese repressiva da sexualidade, da qual, segundo muitas teóricas do gênero, a psicanálise seria herdeira. Nos três últimos séculos, numa sociedade como a nossa — marcada pela disciplina e ortopedia dos corpos —, a estratégia de poder regente é outra, mais sutil e sofisticada do que a que se detém na mera repressão. O que muda na sociedade disciplinar é a forma jurídico-discursiva do poder. Essa forma é baseada na lei, que proíbe. A psicanálise, ao prescrever uma lei regida pelo simbólico, ratificaria tal submissão à lei, agora na forma de uma lei do desejo? Essas duas fases — o sistema monárquico centralizado do poder, onde prevalece a lei que proíbe; e o desejo a ela correspondente, hipótese supostamente psicanalítica, na visão de teóricas como Butler — podem ser tomadas como correspondentes? Schepherdson já ofereceu a interpretação de que a lei do sexo não se confunde com regulamentações normativas.

Mas retornemos. É importante ressaltar que essas novas práticas de poder, que não podem ser tomadas como sinônimos de ‘repressão’, em Foucault são entendidas como jogo de forças relacionais, micropoderes; agem por normas e têm caráter produtivo. Ao contrário da negatividade que marcava as atuações do poder até o século XVII — na qual se evidenciava a rejeição, não manifestação, censura e esquiva dos assuntos referentes ao corpo —, posteriormente a proposta é tomar a direção oposta,

agir positivamente. Ainda mais, restringir a análise do poder somente a sua vertente de repressão tem, no fundo, a intenção de estrategicamente ocultar sua principal face de atuação. Muito mais do que um mecanismo negativo de exclusão, trata-se de um mecanismo positivo de produção de saberes — saberes multiplicadores de discursos, indutores de prazeres e geradores de poder — a ser disseminado nos corpos, postos cada vez mais a se pronunciar. Pouco a pouco, os mecanismos de poder foram se desatrelando das representações do direito e da lei para se articularem também ao funcionamento da técnica e a ideais de normalização e controle — da lei à norma.

Interessante notar que, com a nova pastoral29, o dispositivo da sexualidade prevaleceu, mas não substituiu definitivamente o dispositivo da aliança. De certa forma, unem-se um ao outro; e a família burguesa é o terreno privilegiado onde se constata tal conjugação. A família burguesa leva a dimensão jurídica para dentro do dispositivo da sexualidade, ao mesmo tempo em que provoca uma economia de prazer a ser intensificada e levada para o interior do regime da aliança. E a psicanálise é considerada o plano que une esses dois dispositivos, que acha as leis da sexualidade no centro da aliança familiar. O dispositivo da sexualidade recentra a família, o que produz novos personagens, como o marido impotente ou sádico, a esposa frígida e o jovem homossexual que se volta contra o casamento. Na sequência, médicos, pedagogos, “especialistas” são convocados para dar conta desse novo sofrimento sexual resultante das infelizes interferências entre os campos da sexualidade e da aliança.

Tomada como alvo de investigação médico-científica, a sexualidade é racionalizada. O sexo é observado, especificado, classificado, dissecado. Sob imperativos morais e pelas normas médicas guiadas pelo ideal da fisiologia da reprodução animal, aberrações sexuais e perversões sexuais são produzidas e as menores extravagâncias e oscilações da sexualidade são problematizadas. Investiga-se por onde passa o prazer físico dos sujeitos. Entra aqui em jogo a psiquiatria, que se pronunciaria a respeito dessas doenças mentais que se manifestavam no âmbito da sexualidade e que iam contra o imperativo da reprodução sexual. Estabelecem-se diagnósticos e propõem-se terapêuticas. Os infindáveis exames médicos e questionários incitam o mecanismo prazer-poder e sua manifestação heterogênea nos corpos, ao invés de soterrar as sexualidades errantes.

29 Foucault defende a interessante tese de que o Estado moderno representa uma espécie de poder pastoral secularizado, mundanizado. Assim como o poder pastoral havia sido a matriz da produção da verdade dos próprios indivíduos, o Estado moderno poderia ser considerado a matriz moderna dos processos de individualização, como uma nova forma de poder pastoral.

Ao lado da psiquiatria, também se convocava a justiça penal — afinal de contas, perversões eram também lidas como crimes ou ultrajes. Contudo, a intenção real não era simplesmente condenar ou tolerar os “desvios”, mas administrar o sexual, inseri-lo num sistema de utilidades. Trata-se, então, não de excluir certas práticas sexuais, mas de observá-las insistentemente, especificá-las, distribuí-las e administrá-las através do Estado.

Ao contrário do momento anterior no qual falar de sexo era algo secreto, a partir do século XVIII fala-se cada vez mais de sexo. Tudo deve ser dito. A ciência do sexo escancara-o de forma crua com a intenção de mostrar o que estava escondido sob o véu do poder repressivo que atuava sobre as condutas irregulares e os prazeres excessivos.

No século XIX, o sexo foi constituído como o objeto privilegiado detentor da verdade do sujeito — na verdade do sexo se esconde a verdade do sujeito. A incitação a falar sobre o sexo se deu nos moldes do mecanismo da confissão. Confessa- se ou se é obrigado a confessar os crimes, pensamentos, desejos e prazeres individuais aos médicos, educadores e juízes em busca da verdade escondida, intencionalmente ou não, pelo sujeito.

Contudo, para acessar tal verdade, não bastava simplesmente pôr o sujeito a falar; ela não vem pronta e acabada na fala do confessante. O funcionamento do sexual é obscuro e cheio de desvios, daí a necessidade de quem escuta também interpretar — tal interpretador não se reduz ao papel de juiz ou do dono do perdão, mas é aquele que decifra, completa o que é lhe é enviado (aquele que tem uma chave, um saber, uma hermenêutica do sexo). Em termos clínicos, o processo da confissão, além de funcionar como instrumento de elaboração diagnóstica, promove efeitos terapêuticos — a verdade cura quando dita a tempo. Não parecem ser poucos os paralelos que Foucault induz o leitor a fazer com a psicanálise e a figura do psicanalista.

A proposta é que, para que o sexo deixe de ser reprimido, deve-se falar cada vez mais dele. Contudo, falar cada vez mais contra os poderes libertaria o sexo? Pelo contrário. A incitação a se falar cada vez mais do sexo, essa coerção a falar, é a própria repressão — funcionando como estratégia de ocultamento da vertente da sexualidade que opera como dispositivo. Na Idade Moderna, prevalecia um discurso unitário sobre o sexo, organizado sobre o tema da carne e a prática da confissão. No decorrer dos séculos, tal discurso foi multiplicado e fragmentado em discursividades distintas: biologia, medicina, psiquiatria, psicologia, moral, crítica política — ou seja, cresceram

os aparelhos inventados para se falar sobre sexo e fazê-lo falar. Paradoxo próprio aos jogos de poder na sua vertente mais astuta: a produção discursiva e seus efeitos de poder que pretendem formular a verdade do sexo, essa vontade de saber, servem no fundo para ocular algo mais importante. Não se trata então de negar que, ainda na Idade Contemporânea, o sexo seja passível de interdições e mascaramentos, mas sim investigar o que leva tal concepção a vigorar como elemento fundamental e constituinte da sexualidade. Reduzir o sexo a tal hipótese repressiva constitui uma tática discursiva, uma técnica de poder.

Ainda mais, além de o dispositivo da sexualidade sustentar a ideia de que a verdade do sujeito está vinculada ao seu sexo, decorre desse próprio dispositivo o princípio da representação que se tem hoje de sexo. Agrupam-se sob tal termo, como uma unidade artificial, elementos anatômicos, funções biológicas, condutas, sensações e prazeres — sendo a biologia e a fisiologia os campos de saber que passaram a ditar os princípios de normalidade da sexualidade humana. A ideia de sexo opera uma reversão essencial: escamoteia as relações de poder intrínsecas a ela, constituídas a partir do dispositivo da sexualidade, tornando-as visíveis somente em sua relação com a lei e a interdição.

Trazendo Copjec (2012) para a discussão, podemos vislumbrar outro meio de visibilidade ao sexo, fora do contexto da sexualidade enquanto dispositivo. Para ela (COPJEC, 2012, p. 38), sexo não é um fator a ser libertado — porque ele não é passível de ser reprimido30, como prevê a hipótese repressiva de Foucault. Reprimidos só podem ser representações, não afetos e gozo — que, por sua vez, só podem ser deslocados. Nesse ponto, Copjec se distancia de Foucault, sem desconsiderar a estratégia de tratar do sexo biopoliticamente.

Na vertente foucaltiana, o sexo foi encarado como detentor de leis próprias, algo sob o qual elementos disjuntos e incomensuráveis — como os anatômicos, as funções biológicas, as condutas, as sensações e os prazeres — poderiam ser reunidos artificialmente como tentativa de ser controlado. Mas Copjec considera que sexo, em psicanálise, deve ser entendido de outra forma.

Além do mais, a invenção do sexo segundo Foucault teria favorecido a tese de que a construção do sujeito pode se dar de forma completamente individualizada. O múltiplo no lugar do sujeito dividido da psicanálise. A respeito do Seminário XX,

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Copjec (2012, p. 40) considera que “em retrospectiva, todo esse seminário pode ser lido como um golpe preemptivo contra a má intepretação de Foucault a respeito da problemática do sexo em Freud”. Nesse momento de Lacan, sexo é tratado dentro do aforismo “não há relação sexual”; o que, por sua vez, se provocou interesse em alguns, foi posto de lado por certas teorias feministas. Acompanhamos esse mesmo efeito hoje quando nos voltamos aos estudos de gênero que se verteram à psicanálise. Mas, antes, adotemos o conselho de Copjec de retorno ao básico.

Numa certa leitura, pode-se dizer que em Freud há a consideração de que a evolução libidinal tem como meta final a genitalidade. A pulsão sexual seria totalizada ao redor do órgão sexual com fins de reprodução na conclusão do percurso edípico. A posição masculina e a feminina seriam complementares, nesse sentido. Esse Freud se fiaria ao caráter compulsório da heterossexualidade; no entanto, outra leitura é possível.

A teoria pulsional freudiana já mostrava, tal como interpretada por Lacan, que, “em relação à finalidade biológica da sexualidade, isto é, a reprodução, as pulsões, tais como elas se apresentam no processo da realidade psíquica, são pulsões parciais” (LACAN, 1964/1998, p. 166). Ou seja, o que comanda a sexualidade humana são as pulsões, que, como tais, desvirtuam a meta reprodutiva — heterossexual, portanto — a ser perseguida por uma suposta pulsão genital totalizada e integrada. Pelo contrario: “A pulsão é precisamente essa montagem pela qual a sexualidade participa da vida psíquica, de uma maneira que se deve conformar com a estrutura de hiância que é a do inconsciente” (LACAN, 1964/1998, p. 167).

A sexualidade do ser falante é instaurada no roteiro da falta. Ainda mais radicalmente, Lacan aponta que duas faltas se recobrem: uma, fruto do advento do sujeito em relação ao Outro, sua submissão ao significante; e outra, “a falta real, anterior, a situar no advento do vivo — quer dizer, na reprodução sexuada. A falta real é o que o vivo perde, de sua parte de vivo, ao se reproduzir pela via sexuada” (LACAN, 1964/1998, p. 195). Guiar-se pela reprodução implica essa perda real. Nesse sentido, a realização sexual ser equiparada à reprodução sexual é um logro, porque sexo em psicanálise é outra coisa. Entendemos que a teoria pulsional freudiana, nessa leitura empreendida por Lacan, apresenta argumentos que relativizam a consideração de que todo o arcabouço teórico da psicanálise se pauta em prescrições heteronormativas.

Se abandonarmos esse ideal da realização genital, apercebendo-nos do que ele tem de estruturalmente enganador, felizmente enganador, não haverá razão alguma para que a angústia ligada à castração não nos

pareça estar numa correlação muito mais flexível com seu objeto simbólico e, portanto, numa abertura inteiramente diferente com os objetos de outro nível. Isso, aliás, é implicado desde sempre pelas premissas da teoria freudiana, que coloca o desejo, quanto à sua estruturação, numa relação totalmente distinta de uma relação pura e simplesmente natural com o chamado parceiro natural. (LACAN, 1962-63/ 2005, p. 288)

Como seres de linguagem, estamos no campo do desejo, o que desnaturaliza qualquer determinação biológica que impulsionaria o sujeito na busca de um parceiro heterossexual com fins de reprodução. A sexualidade, desde os “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905) de Freud, tem sua essência polimorfa. O alvo da pulsão não é um objeto da realidade, sua satisfação “não é ave que vocês abatem, é ter acertado o tiro e, assim, atingido o alvo de vocês” (LACAN, 1964/1998, p. 170) — o alvo é um retorno em circuito, que acaba contornando o objeto, sempre faltante. A pulsão oral, por exemplo, não visa ao alimento, mas ao objeto a que envolve a boca. O objeto a é, nesse contexto, o objeto da pulsão, eternamente parcial, a se manifestar como oral, anal, escópico e vocal. O objeto a é o objeto em torno do qual circula a pulsão, sem que o desejo seja extinto. “Esse objeto suporta o que, na pulsão, é definido e especificado pelo que a entrada em jogo do significante na vida do homem lhe permite fazer surgir do sentido do sexo” (LACAN, 1964/1998, p. 243).

Copjec tem a interessante tese de que o sexo se localiza nas lacunas da linguagem. Segundo ela, Freud pretendia pensar sexo e causa juntos, pressupondo um sujeito sob determinação (COPJEC, 2012, p. 32). Sexo como causa não pode ser localizado em fenômenos positivos, unívocos ou múltiplos, ou em objetos específicos, já que a pulsão não é instinto e não se confunde com a necessidade de ir em busca de elementos particulares. O domínio do sexo seria, então, o de fenômenos negativos como lapsos — interrupções que apontam para a descontinuidade, impondo a desordem ou desvirtuamento da cadeia causal mantida em tempo cronológico.

Isso pode ser verificado, para Copjec (2012, pp. 35-6), na experiência de Emma, paciente de Freud: num primeiro momento, quando tinha 8 anos, o vendedor de uma loja, rindo, abordou-a sexualmente tocando os genitais da menina. Tal cena, contudo, não se configurou para ela como invasão ou abuso sexual naquele momento; somente anos depois, ao entrar sozinha numa loja de roupas, Emma dali saiu correndo assustada ao ver dois vendedores rindo, pensando que riam de seu vestido. Esse segundo incidente atualiza a cena anterior, trazendo seu caráter sexual para frente, como

se fosse a primeira vez. A origem do sexual se dá, então, em duas fases: na primeira, o sexo está ausente da experiência; na segunda, por sua vez, está ausente da ação que o provocaria. O sexo tem dimensão de enigma, como uma função de suspensão do sentido, não localizável.

Além disso, o sexo, como revela esse exemplo recuperado por Copjec, tem uma relação muito específica com o tempo. Nesse sentido, sexo não tem essência e é submetido à historia do sujeito. Sexo e tempo teriam a mesma estrutura, além de estarem originalmente relacionados. Tanto na lógica temporal que rege o funcionamento psíquico quanto na lógica sexual presente na história de Emma, na qual dois momentos são divididos por uma ruptura, a repetição falha duplamente: “o segundo repete o primeiro, mas não exatamente — essa não coincidência [...], é a falta de sincronia que a repetição repete” (COPJEC, 2012, p. 37). Anacronismo de Emma, o passado é infectado pelo presente deslocado — introduzindo, hoje, uma sexualidade muito cedo para ser experenciada na ocasião —, assim como o presente parece ser contaminado pelo passado também fora de lugar — daí a experiência atrasada do sexo como um resto da cena originária. “Muito cedo/muito tarde: esses são os tempos da sexualidade, assim como os tempos do tempo em si” (COPJEC, 2012, p. 37). Isso faz com que Emma se lembre do que ainda não aconteceu como se já tivesse acontecido — é nessa experiência temporal que se dá o brotar do sexo. Para Copjec (2012, p. 38), os estudos de gênero não levariam em conta essa problemática da repetição, que incide sobre as noções de

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