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A questão fálica e a saída lésbica

No documento A diferença dos sexos: Lacan e o feminismo (páginas 134-138)

2 GÊNERO E LACAN

2.4 Butler e a problemática lacaniana

2.4.3 A questão fálica e a saída lésbica

Pode-se interpretar que a passagem pelo Édipo “normalizaria” e “humanizaria” o sujeito, fazendo com que seu sexo e seu gênero fossem estruturas correspondentes. Os casos de incoerência, incongruência ou disparidade conduzem à ilação clínica de que o sujeito não atravessou adequadamente o Complexo de Édipo, relegando-o ao campo da psicopatologia psicanalítica. O movimento clínico crucial que atestaria essa passagem seria a localização do falo no campo do Outro, operação realizada por meio da metáfora paterna, no interior da qual o significante do Nome-do- Pai faz função fundamental. Butler recusa essa concepção do Complexo de Édipo, neurocêntrica e hetenormativa, cujo desfecho é a formação de uma identificação de gênero e uma escolha de objeto sexual específicos.

No Lacan dos anos 1953-1960, com o advento da castração simbólica, a diferença sexual é implantada a partir da instituição do falo como significante: “Ser o falo” referir-se-ia à posição feminina. No homem prevaleceria a dialética do “ter o falo” (LACAN, 1958/1998, p. 701).

Fica evidente que essa formulação psicanalítica ratifica o tão combatido mandato heterossexista de inteligibilidade do gênero, só que agora trazendo o falocentrismo para a discussão. Butler recusa o postulado da binaridade dos sexos, expresso pela centralidade do falo como organizador único da sexualidade. Seu caráter ontológico, denunciado por expressões como “ser e “ter”, constituiria uma contradição intrínseca à estratégia lacaniana:

Em termos lacanianos, perguntar sobre o “ser” do gênero e/ou do sexo é confundir o próprio objetivo da teoria da linguagem em Lacan. O autor contesta a primazia dada à ontologia na metafísica ocidental e insiste na subordinação da pergunta “o que é?” à pergunta “como se institui e localiza o ‘ser’ por meio das práticas significantes da economia paterna”. (BUTLER, 1990/2003, p. 74)

Além desse suposto “deslize ontologizante” lacaniano, essa concepção da diferença sexual pensada nos termos ‘ser’ e ‘ter’ o falo traz outro problema.

O falo freudiano, como significante, muda de função em Lacan: primeiro como significante da falta — que, além de responder à diferença sexual, representa a falta-a-ser produzida pela linguagem em todos os sujeitos (SOLER, 2005, p. 28); segundo, do ter ou não ter o pênis, caminhamos para ser o falo ou tê-lo. A falta fálica na mulher é convertida na possibilidade de ser o falo, o que falta ao Outro, ocupando o lugar de objeto (no amor, a mulher pode se converter naquilo que ela não tem) (SOLER, 2005, p. 29). Isso quer dizer que a mulher só seria passível de ser definida nos termos de “ser o falo” para o Outro, o que daria peso à crítica falocêntrica machista sofrida pela psicanálise. Ora, a mulher só é na medida em que entra na relação com o homem, nunca em si, deixando em aberto a seguinte questão: e quando ela não está na relação com o homem? De toda forma, a crítica feminista se sustenta: a sexualidade feminina, nesse momento da obra lacaniana, continua a ser abordada com referência ao homem.

O dito de Lacan nos parece dar força a essa interpretação: “Não é à toa que lhes repiso desde sempre que o amor é dar o que não se tem. É esse, inclusive, o princípio do complexo de castração. Para poder ter o falo, para poder fazer uso dele, é preciso, justamente, não o ser” (LACAN, 1962-63/2005, p. 122). Além do mais, permite-se depurar aqui um ideal de complementariedade entre tais posturas fálicas, entre homem e mulher.

Mas retomemos nosso percurso em Butler. Segundo ela, nos desenvolvimentos lacanianos o entendimento de homem e mulher parte do pressuposto

equivocado de que há uma substância intrínseca a eles, mesmo que deslocada para a linguagem, agora sob a roupagem do falo concebido como uma referência universal a partir da qual as posições masculinas e femininas são dedutíveis.

Em Bodies that matter (1993), Butler parte de “O estágio de espelho como formador da função do eu” (1958/1998) e “A significação do falo” (1958/1998) de Lacan, ao discorrer sobre o falo. O estágio do espelho revela o momento em que o corpo imaginariamente despedaçado passa a obter um aparato morfológico especular totalizado — a integridade da imagem corporal é o que condicionaria as futuras relações epistemológicas objetivais do sujeito, assim como suas experiências narcísicas e identitárias. Já em “A significação do falo” Lacan teria introduzido que, nesse âmbito epistêmico, segundo Butler, o ponto de ligação entre a unidade simbólica e a identidade imaginária reside na função do falo, enquanto função de nó — a ideia de totalidade do corpo se sustentaria no “falo como idealização e simbolização da anatomia” (BUTLER, 1993/2010, p. 120) — nessa leitura, a psicanálise teria se pautado na matriz heterossexual, ao conceber as práticas identificatórias partindo da morfologia corporal, adotando a masculina como referência. Além do mais, é como se o simbólico passasse a prevalecer sobre o imaginário, naturalizando e reificando seus efeitos a partir da lei simbólica, como se todos os objetos a se tornassem cognoscíveis, e toda construção imaginária ficasse submetida aos avatares da significação simbólica — e, consequentemente, da posição do falo. Nesse sentido, para que um corpo em partes obtenha controle, inteireza e seja inscrito sexualmente, faz-se necessária a entrada no aparelho simbólico.

A crítica butleriana ao operador desse registro, o falo, configura-se em dois quesitos: por ter função de fundamento, único organizador da diferença sexual e instrumento da norma heterossexual; e por, de certa forma, ainda estar aderido ao pênis — o que contribui para a hierarquia de gêneros e a supremacia masculina (ROGRIGUES, 2012, p. 44).

Para Butler, a articulação freudiana entre falo e pênis é paradoxal: em alguns momentos, parecem se equivaler — por exemplo, quando se pensa na economia da angústia de castração —; mas em outros, o falo parece mais uma fantasia, uma construção imaginária que imputa ao pênis propriedades idealizadas derivadas do órgão. Butler (1993/2010, p. 123) reconhece que, em Lacan, o falo é um significante originário que gera significações, mas, ao mesmo tempo, não é efeito significante de uma cadeia prévia — o que dá a ele um status privilegiado. Além do mais, o falo confere

erogeneidade às partes do corpo. A partir da leitura de que o falo, significante maior, mesmo em Lacan, ainda está conceitualmente aderido ao pênis — quer como extensão imaginária, quer como condição simbólica erotizadora do corpo —, Butler denuncia que se corre o risco de manter a preponderância do genital masculino como “centro erógeno”, risco esse que ela quer afastar. A libido freudiana é masculina, o falo lacaniano também. Para ela, o falo não deve se restringir a nenhuma parte específica do corpo, mas ser um motor de “transferibilidade erógena”. Daí Butler propor a noção de “falo lésbico” como tentativa de sobrepujar o “falo lacaniano” e o princípio de não contradição que o regeria:

Pode-se dize que o falo lésbico intervém como uma consequência inesperada do esquema lacaniano, um significante aparentemente contraditório que, através de uma mimesis crítica, põe como questão o poder ostensivamente originador e controlador do falo lacaniano, ou mais precisamente, sua instalação como o significante privilegiado do poder simbólico. O falo lésbico é o emblema de um movimento que se opõe a relação entre a lógica da não contradição e a legislação da heteronormatividade obrigatória no nível do simbólico e da morfogênese corporal. (BUTLER, 1993/2010, p. 117)

Butler entende que, para Lacan, ‘falo’ é um significante — e, como tal, não é sinônimo de ‘pênis’ —, mas critica o caráter sintomático com que a psicanálise operaria tal separação. Butler volta-se para Gallop, para quem o esforço declarado e infindável da psicanálise de separar falo e pênis — que, por sinal, nunca é definitivo — é um sintoma da própria psicanálise, por insistir em ter o falo e posicioná-lo como central na linguagem: a psicanálise não conseguiria controlar sua significação.

A filósofa questiona até que ponto — ao se dizer ‘falo’, e não mais ‘pênis’ — supera-se totalmente, no plano fantasístico a referência ou a “herança” deixada pelo órgão sexual. O falo não é o pênis, o falo simboliza o pênis, mas somente na medida em que se diferencia dele, negando-o em um movimento infindável.

Se o falo deve negar o pênis para poder simbolizar e significar de maneira privilegiada, logo o falo está vinculado ao pênis, não simplesmente via identidade, mas através de uma negação determinada. Se o falo somente significa na medida em que não seja o pênis, e o pênis é qualificado como essa parte do corpo que o falo não deve ser, logo o falo fundamentalmente depende do pênis para poder sequer simbolizar. De fato, o falo não seria nada sem o pênis. [...] O que devemos nos perguntar, claro, é por que se dá por evidente que o falo requer essa parte particular do corpo para simbolizar e por que não pode operar simbolizando outras partes do corpo. (BUTLER, 1993/2010, p. 132)

O que Butler quer exterminar é a ideia de uma suposta descendência que o falo teria do pênis na simbolização primária do corpo e como motor de significações. Tratando do falo lésbico: “o potencial subversivo do falo ressignificável reside na

insistência, feita por Butler, de que você não precisa ter um pênis para ter ou ser o falo;

e que ter um pênis não significa que você terá ou será um falo” (SALIH, 2013, p. 122). “Ter o falo” pode ser simbolizado em qualquer parte do corpo. Assim, desarticula-se a lógica que estabelece a não contradição entre ser o falo (mulheres) e ter o falo (homens), confundindo tais posições.

O falo lésbico, e todo seu potencial de mutabilidade, ressignificaria o caráter heterossexista do falo tal como Lacan o prescreveria, abalando a convicção naturalizante que atrela falo à morfologia masculina, e que ainda vigoraria na psicanálise.

No documento A diferença dos sexos: Lacan e o feminismo (páginas 134-138)