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Revendo o simbólico

No documento A diferença dos sexos: Lacan e o feminismo (páginas 141-148)

2 GÊNERO E LACAN

2.4 Butler e a problemática lacaniana

2.4.5 Revendo o simbólico

Vimo que Butler contesta a noção de ‘diferença sexual’ fundada a partir da ordem simbólica, pois isso alimentaria a tese de que o que promove inteligibilidade é o enquadramento nas normas da heterossexualidade compulsória. Trata-se de uma teórica que acredita na estratégia de que a incitação a sucessivas repetições performativas teriam um fim subversivo: o panorama de ressignificações da norma pode trazer à tona algo imprevisível e reconfigurar o cenário social. Contudo, para ela, o simbólico lacaniano é estruturado com tal rigidez que a possibilidade de renovação dos gêneros seria inconcebível.

Shepherdson (2000) apresenta outro ponto de vista. Para ele, seria justamente o simbólico o que permite que a sexualidade humana não seja governada por instintos ou guiada pela reprodução sexual — se a sexualidade é plástica, é porque somos marcados pelo simbólico; caso contrário, estaríamos no mundo animal, regidos por períodos de cio. É o simbólico que permite ao sujeito entrar na história: “deve-se distinguir entre formas históricas particulares que uma dada cultura pode instituir para

sexualidade (sua história), e a inevitabilidade da inscrição simbólica que é constitutiva do animal humano” (SHEPHERDSON, 2000, p. 34).

Assim, na psicanálise, a diferença sexual não é uma convenção, o que não quer dizer que ela não tenha uma história — seu entendimento varia historicamente. O que o autor parece querer distinguir é a ‘diversidade’, as diferentes manifestações da sexualidade historicamente observadas, contingentes, do que ele denomina como inevitável, o imperativo da inscrição da diferença sexual que caracteriza o humano. A lei da diferença sexual, assim como a morte, é um imperativo, “não é uma invenção humana e não deve ser colocada no mesmo nível dos papéis sociais que concernem às discussões contemporâneas de gênero” (SHEPHERDSON, 2000, p. 89) — o que faz Shepherdson se questionar se a diferença sexual seria uma diferença ontológica (SHEPHERDSON, 2000, p. 66).

Ragland-Sullivan parece estar de acordo:

A diferença é constituída na e pela ordem simbólica, apesar de hoje em dia ser equivocadamente interpretada por reducionismos biológicos e sociológicos que são, então, encarados dentro da ordem imaginária de julgamentos totalitários, nas quais platitudes opositivas moralizantes (como melhor que / pior que) assumem a direção. (RAGLAND- SULLIVAN, 2004, p. 86; trad. nossa)

Não se deve confundir, alerta Shepherdson (2000), o registro simbólico em Lacan com o que se entende por ‘construção social de gênero’; e ‘diferença sexual’, em psicanálise, com ‘diferença biológica’, baseada na anatomia — qualquer tentativa de enquadrar tais noções em psicanálise sob a díade cultura/natureza desconsidera o que a psicanálise tem de mais específico. A novidade psicanalítica não pode ser contemplada se nos restringirmos ao debate concernente à oposição entre essencialismo biológico e construções históricas que sustenta a disputa política em torno da prevalência de um ou de outro: “esta é precisamente a contribuição teórica da psicanálise: quando se trata de sexualidade, o feminismo não pode recorrer a argumentos triviais sobre cultura e determinação política, mais do que se verter à biologia” (SHEPHERDSON (2000), pp. 18-9). Temos sempre de levar em conta o status do corpo pulsional freudiano e dos três registros lacanianos (simbólico, imaginário e real) — o que o autor considera não ter sido devidamente contemplado pelos estudos de gênero que se verteram a Lacan, e nem mesmo a Irigaray. A diferença sexual deve então ser pensada sempre a partir daquelas três ordens, inabarcáveis pela díade sexo biológico/ gênero cultural.

Creditar essencialismos às ideias de Irigaray, por exemplo, segundo Shepherdson (2000), seria um erro. O “retorno ao corpo da mãe”, proposto por ela, não seria uma incitação à retomada ao corpo biológico; e, por outro lado, sua insistência na representação da mulher não quer dizer que, para ela, tudo se reduz à linguagem — ou que a diferença sexual é só um fato de discurso (SHEPHERDSON, 2000, p. 19). Esse mau entendimento do pensamento de Irigaray é o que teria permitido a leitura de que ela teria concebido a possiblidade da edificação de um “simbólico feminino”. Para Shepherdson, nem essencialismo biológico nem essencialismo simbólico: a obra irigarayana não pode ser lida através da lente que opõe duas entidades. Além do mais, Shepherdson (2000, p. 22) também considera que a proposta da feminista de gerar outras imagens associadas à mulher não teria como finalidade alterar o registro simbólico — essa empreitada só faria sentido se se equalizassem simbólico e contexto sócio-histórico, o que não se dá em Lacan e nem na teoria de Irigaray. Ela teria pensado que, para inscrever a mulher na história, numa outra vertente que não a do humanismo do século XIX, é necessário se conceber outra forma de tempo, o que permitira outra forma de tratar a diferença sexual. Nesse sentido, Irigaray não teria tido com meta se voltar contra o simbólico em si, mas contra o patriarcado enquanto sistema sócio- histórico que impede que as mulheres sejam articuladas no discurso ou na escrita.

Ainda sobre o simbólico, Shepherdson (2000, p. 60) também considera ter sido um erro de leitura ter associado o semiótico ao feminino, e o simbólico ao masculino na obra de Kristeva, como se essas ordens pudessem ser “genereficadas” [gendered].

O semiótico não é automaticamente um domínio do maternal ou da identidade feminina, mas um domínio no qual a diferença sexual ainda não está estabelecida, e consequentemente não pode ser vertida em gênero sem retornar a uma diferença sexual dada a priori (baseada no senso comum e na anatomia) que desviam as principais questões que as categorias de Kristeva intentam endereçar. (SHEPHERDSON, 2000, p. 61; trad. nossa)

Entender ‘simbólico’ como ‘masculino’ ou como ‘lugar do pai’ e ‘semiótico’ como ‘feminino’ ou ‘lugar da mãe’ seria um equívoco, uma tentativa precária de sociologizar alicerces teóricos do edifício kristeviano — além de impedir o reconhecimento de que a autora pretendia dar peso ao período pré-edípico, no qual a divisão homem-mulher ou masculino-feminino ainda não foi estabelecida.

Mitchell & Rose (1985, pp. 45-6) aponta que talvez um preconceito fundamental que tenha afastado as feministas de um olhar mais profundo sobre o

simbólico em Lacan tenha sido o prisma que impôs uma restrição de leitura desse registro, limitando-o às relações de parentesco descritas por Lévi-Strauss. Talvez uma concepção de simbólico ou linguagem como mediação, troca, ou relação tenha se mantido prevalecente, em detrimento duma visão posterior, fortalecida pela concepção de cisão — cujos efeitos são sentidos, sobretudo, na sexualidade.

Em outros termos, Zizek (in BARNARD; FINK, 2002, p. 72) argumenta que Butler “hipostasiaria” o Outro como algo a priori transcendental e a-histórico. Contudo, quando Lacan afirma que o Outro não existe, o que ele quer dizer, para Zizek, é que justamente não há estrutura formal isenta de contingências históricas — por sinal, tudo o que há são contingências e configurações inconsistentes — ou que o Real é inerente ao Simbólico. Se, para Butler, segundo Zizek (in BARNARD; FINK, 2002), a norma nunca pode ser totalmente efetivada pela imposição de contingências históricas, para Lacan ela também nunca o é, o que equivaleria a dizer que o Outro é inconsistente por conta de um núcleo intrínseco a ele, resistente à simbolização.

Além do mais, Barnard (in BARNARD; FINK, 2002) também enfatiza que o funcionamento do simbólico não ocorre sem a interação com os outros registros. As novidades trazidas por Lacan no Seminário XX com relação à sexualidade feminina, o Outro gozo e o saber testemunham seu interesse sobre o tipo de relação que o simbólico e o real travam, relação essa que afeta drasticamente a regência do simbólico: se sexualidade e saber tendiam a ser pensados em termos de simbólico e imaginário, tais termos passam agora a ser explicitados a partir das relações entre simbólico e real. Ou seja, a ordem simbólica, para além de seu efeito estrutural, comporta também uma fenda, da qual o sexo participa — agora com o real e todo o seu caráter irrefreável em cena.

Zizek censura Butler por desconsiderar o registro do real, tanto no contexto estratégico de incitação a mudanças sociais quanto no papel que desempenha na diferença sexual.

Segundo Zizek, em The ticklish subject (1999), a filósofa teria superestimado o potencial subversivo das reconfigurações performativas que atingiriam o funcionamento do Outro. A estratégia de contínuas incitações performativas só promoveria mudanças parciais, não desmantelariam a estrutura. Pelo contrário, elas alimentariam o funcionamento hegemônico do simbólico, fortalecendo a resistência. A reconfiguração do campo simbólico só seria proporcionada pelo ato ético, real, “pela intervenção do real de um ato” (ZIZEK, 1999, p. 262). Enquanto o ato da fala se

sustenta em normas simbólicas pré-estabelecidas, o ato ético implica “correr o risco de uma suspensão momentânea do grande Outro, da rede sócio-simbólica que garante a identidade do sujeito; um ato autêntico ocorre quando o sujeito arrisca um gesto que deixa de ser coberto pelo grande Outro” (ZIZEK, 1999, p. 264)27. O ato ético é imprevisível, não irrompe calculadamente nem é passível de planejamento. Assim, para que os gêneros ininteligíveis acedam a uma existência legítima e identidades sejam desconstruídas, não basta operar via simbólico, como quer Butler, mas a partir do real sempre em jogo — só assim, na perspectiva de Zizek, transformações tomariam curso.

Esse embate do simbólico em Butler e seu aparente desvio do registro do real incidem também sobre a concepção de diferença sexual. Ainda segundo Zizek (1999, p. 273), Butler não teria levado em conta que, para Lacan, em seus seminários tardios, a diferença sexual nunca pode ser propriamente simbolizada ou traduzida numa norma simbólica que fixa a identidade do sujeito. A diferença sexual, ao longo da obra lacaniana, deixa de ser uma duplicação da diferença significante e passa a ser referida a uma experiência não identitária de gozo.

Zupancic (2012) enriquece esse debate a respeito do simbólico em Lacan, apontando os efeitos exercidos nele pelo real. A filósofa eslovena valoriza a solução butleriana que revela o caráter performativo do gênero. Contudo, aponta que tal performatividade seria uma ontologia da discursividade. É claro que Lacan sempre deu importância ao universo da linguagem, mas há algo a mais. Zupancic afirma que, na medida em que o Um do significante cria seu espaço e começa a povoá-lo (o que, grosso modo, corresponde ao espaço da performatividade), alguma coisa é adicionada a ele. Esse algo a mais é inseparável daquele gesto significante fundador, mas, ao contrário dos mecanismos discursivos de nomeação e criação das essências dos fenômenos, esse algo não tem por gênese as construções simbólicas nem é um efeito destas. Zupancic localiza aqui o real, uma entidade colateral ao registro simbólico e que só é discernível enquanto efeito disruptivo desse campo. Não à toa, ao mesmo tempo em que Lacan fala do Outro como o tesouro dos significantes, também o faz como o Outro do gozo.

O real mancha a pureza do simbólico e é marca do sexo:

27 Esse debate é aprofundado por Butler e Zizek em “Contingency, hegemony, universality: contemporary dialogues on the left” (2000). Para Zizek, o sujeito só pode ser compreendido nas relações topológicas estabelecidas entre os registros do real, simbólico e imaginário, aos quais é atribuída estrutura ontológica e cujo caráter é a-histórico; Butler recusa tal a-historicidade das estruturas em jogo no sujeito. Para ela, não existe estrutura anterior ao social e o sujeito só é constituído nas relações de forças retóricas resultantes da reificação de códigos sociais.

A sexualidade (como o Real) não é algo que existe “além” do simbólico; ela “existe” somente como o encurvamento do espaço simbólico que surge por conta de algo adicional produzido com o gesto significante. Isso, e nada mais, é como a sexualidade é o Real. (ZUPANCIC, 2012, p. 5; trad. nossa)

Porém, Zupancic esclarece que o sexo — que, por sinal, não deve ser nunca confundido com as diferentes manifestações da sexualidade — não é o real num sentido ontológico. Pelo contrário, a psicanálise apresenta a conceitualização de um espaço topológico singularmente curvado, cujo nome é ‘real’. Esse algo produzido “curva” o simbólico, o que faz com que esse registro nunca seja neutro, ou meramente estruturado por uma lógica binária que funciona a partir de puras diferenciações como significante/significado ou sincronia/diacronia, mas conflitual, assimétrico, ‘não todo’. O real infecta no simbólico outra dinâmica, alterando sua dimensão.

Tais ideias se desdobram em Copjec (1994), que questiona se a diferença sexual é uma diferença especial ou só mais uma diferença dentre outras, como as diferenças de raça ou classe social. Para ela, enquanto essas últimas constam do sistema simbólico, a diferença sexual — um tipo particular de diferença — não; e nessa vertente, assim como Zizek e Zupancic, empenha-se a se contrapor a Butler.

A partir da comparação que traça entre as antinomias da razão e as fórmulas da sexuação de Lacan, Copjec (1994) aponta que a diferença sexual, longe da anatomia e dos papéis de gênero, resulta das demandas lógicas do discurso. Tais demandas lógicas levam a um impasse que é o fato de que é impossível se dizer tudo. A linguagem falha e existem dois modos de falhar: o modo masculino e o modo feminino. A não estabilidade do sexo não se deve ao fato de que os termos da diferença sexual sejam instáveis ou pelo fato de as significações estarem sempre em processo. Quando Copjec fala em ‘falha da linguagem’, não está se referindo à insuficiência de um objeto pré- discursivo, mas à contradição que a linguagem carrega em si própria: o sexo coincide com essa falha, essa contradição inevitável. O sexo é “a incompletude estrutural da linguagem, e não que o sexo seja em si mesmo incompleto” (COPJEC, 1994, p. 206). Copjec quer dessubstancializar o sexo, tratá-lo como entidade vazia, enquanto Butler ainda o consagraria ao campo da linguagem:

Vinculando o sexo ao significante, ao processo de significação, Butler faz da nossa sexualidade algo que se comunica a outros. Enquanto o fato de que a comunicação, sendo um processo — e, desta forma, contínuo —, impede uma completa revelação do conhecimento num

determinado momento; um conhecimento adicional, ainda assim, está colocado dentro do campo das possibilidades. Quando, pelo contrário, sexo é desvinculado do significante, ele se torna aquilo que não se comunica, aquilo que marca o sujeito como não podendo ser conhecido. Dizer que o sujeito é sexuado é dizer que não é mais possível ter qualquer conhecimento acerca dele ou dela. Sexo não tem outra função senão limitar a razão, remover o sujeito do campo da experiência possível ou do conhecimento puro. (COPJEC, 1994, p. 207; trad. nossa)

Como o sexo não pertence à ordem significante, ele não pode ser desconstruído. Copjec chega a este extremo em sua crítica a Butler: “Sexo é o que não pode ser falado pelo discurso; não é nenhum dos inúmeros significados que tentam dar conta dessa impossibilidade. Eliminado esse impasse radical do discurso, Problemas de gênero, apesar de toda sua fala sobre sexo, elimina o próprio sexo” (COPJEC, 1994, p. 211). Butler teria se restringido a circunscrever o sexo como um produto do simbólico, passível de ressignificações histórico-culturais, enquanto, para Copjec, ele está além do simbólico. Nesse sentido, Butler teria sido deixada para trás por um Lacan que saltou das identificações edípicas para as fórmulas da sexuação.

Por sinal, também podemos reconhecer o simbólico como um registro marcado pela incompletude bem antes dos anos 70, haja vista o trânsito de Lacan do significante da falta à falta de significante, operado na passagem do Seminário 8 ao 9 (FARIA, 2015), crucial para o entendimento do gozo feminino e do aforismo lacaniano A mulher não existe — a partir da relação nada evidente entre simbólico e real, no caso, que contempla o significante da falta de significante no Outro: S (Ⱥ ). Noções correlatas dessa falta no simbólico são “a coisa” e o objeto a, excluídos no interior, ex-timo, dentro e fora ao mesmo tempo, resto patológico que exige uma topologia e uma temporalidade própria para se formalizar. Tais noções serão focadas por nós no próximo capítulo.

E também, já como forma de anunciar uma das nossas futuras discussões, é comum no meio feminista o argumento de que, mesmo na sexuação de Lacan — correspondente a um momento mais avançado de sua teoria —, a diferença sexual ainda estaria referida a uma binariedade: ao “lado homem” ou ao “lado mulher” das fórmulas da sexuação, ou a gozo masculino e gozo feminino. Nesse ponto, a crítica de Butler — de que a diferença sexual, em psicanálise, se mantém refém da marca da binariedade — ainda se sustentaria. Contra essa leitura butleriana da psicanálise, Copjec assevera: “de onde vem essa concepção de que a psicanálise opera nessa binaridade? Provém da ideia

de que as categorias de homem e mulher são complementares, que estabelecem relações de reciprocidade e de que um depende do outro” (COPJEC, 1994, p. 202). Lacan aponta justamente para o outro lado quando diz que “A relação sexual não existe”.

Por ora, vejamos como Preciado questiona o entendimento butleriano de gênero e prevê saídas para seus impasses, assim como para o controverso falo psicanalítico.

No documento A diferença dos sexos: Lacan e o feminismo (páginas 141-148)