• Nenhum resultado encontrado

Não há relação sexual: gozo e lógica

No documento A diferença dos sexos: Lacan e o feminismo (páginas 194-200)

2 GÊNERO E LACAN

3.4 Não há relação sexual: gozo e lógica

“Eu não gostaria de terminar dando-lhes a ideia de que sei o que é o homem. Certamente há pessoas que precisam que eu lhes jogue esse verde. Posso jogá-lo para elas, afinal, porque isso não conota nenhuma espécie de promessa de progresso... ou pior. Posso dizer-lhes que, muito provavelmente, é uma relação completamente anômala e bizarra com seu próprio gozo que especifica essa espécie animal.”

— Jacques Lacan (1971/2011, p. 67)

O gozo aponta para “outra satisfação” (LACAN, 1972-73/2010, p. 123): na medida em que somos seres falantes, nossas necessidades são deturpadas, contaminadas por essa outra satisfação que só pode ser atendida no nível do inconsciente. O gozo não decorre da descarga da tensão acumulada, guiada pelo princípio do prazer, mas de uma

experiência de intensificação de certas tensões. “Onde é que isto habita, o gozo? Do que ele precisa? De um corpo. Para gozar, é preciso um corpo” (LACAN, 1971/2011, p. 28). O gozo requer um corpo, mas “a realidade é abordada com os aparelhos de gozo [...]: aparelho, não há outro senão a linguagem” (LACAN, 1972-73/2010, p. 127). Gozar leva em conta o corpo e suas diferentes zonas erógenas, assim como a maquinaria simbólica, o que permite que o gozo também esteja no coração da repetição do sintoma e convoque fantasias. No Seminário XX, Lacan afirma que só há gozo no corpo a corpo e só se goza tendo o corpo do outro como meio — goza-se em ser gozado, inclusive (LACAN, 1972- 73/2010, p. 136).

Fica saliente a transição na obra lacaniana: “O significante é a causa do gozo”. De um lado, simbólico e linguística, de outro, real e lógica, mas sem abrir mão do que foi dito antes: “Sem o significante, como até mesmo abordar essa parte do corpo? Como, sem o significante, centrar esse algo que, do gozo, é a causa material?” (LACAN, 1972-73/2010, p. 80). E mais, o significante é o que frustra a disseminação avassaladora do gozo.

Contra a ideia de ser prevista pela tradição filosófica, e um suposto gozo ligado ao Ser supremo, Deus —, Lacan introduz o ser da significância. O ser da psicanálise é o ser falante que, como tal, é marcado por uma “pura perda” (LACAN, 1972-73/2010, p. 177), com a participação do objeto a.

“O gozo não conhece o Outro senão através desse resto, a” (LACAN, 1962- 63/2005, p. 192). O a resiste a qualquer tentativa de assimilação ao significante, daí ser o índice do que, nessa esfera, se apresenta como perdido. Por mais que o sujeito se empenhe em fazer que esse gozo entre no lugar do Outro, que busque freneticamente o gozo, o sujeito se precipita enquanto desejante. Daí a angústia se situar entre o desejo e o gozo.

Lacan, para se contrapor a uma filosofia do ser, da essência no sentido de ousia, volta-se a uma topologia que contemple a ruptura. Na medida em que o ser em questão é atravessado pelo Outro, ele é um ser sexuado e está embebido em gozo — e, como tal, fraturado. O ser sexuado só pode ser tratado por “desvios em impasse, por essas demonstrações de impossibilidade lógica” (LACAN, 1972-73/2010, p. 24).

A experiência de gozo, ao contrário de outros eventos corporais apreensíveis pela ciência, não é comensurável. Estamos distantes da finalidade genital da pulsão freudiana: “[...] nada indica especialmente que seja para o parceiro do sexo oposto que se deve dirigir o gozo, caso este seja considerado, mesmo por um instante, como o guia

da função de reprodução” (LACAN, 1971/2011, p. 33). Lacan vai, mais uma vez, afirmar que o sexual em psicanálise não se confunde com sexualidade ou práticas sexuais entre seres de sexos opostos com fins de reprodução; trazendo, agora, a noção de gozo e seu famoso aforismo para a discussão:

Vemo-nos diante do esfacelamento da ideia, digamos, de sexualidade. A sexualidade está, sem nenhuma dúvida, no centro de tudo que se passa no inconsciente. Mas está no centro por ser uma falta. Isso quer dizer que, no lugar de seja o que for que pudesse escrever-se da relação sexual como tal, surgem em substituição os impasses gerados pela função do gozo sexual. (LACAN, 1971/2011, pp. 33-4)

O falo “designa um certo significado, o significado de um certo significante completamente evanescente, pois, no que tange a definir o que se dá com o homem ou a mulher, a psicanálise nos mostra que isso é impossível” (LACAN, 1971/2011, p. 33). Trata-se então da indução de algo real, que ratifica que homem e mulher seja inarticuláveis, destinando-os à não relação:

De que estou falando? Ora, de nada além daquilo que é chamado, na linguagem corrente, de homens e mulheres. Não sabemos nada de real sobre esses homens e mulheres como tais. Não se trata de cães e cadelas. Trata-se daquilo que são realmente só aqueles que pertencem a cada um dos sexos a partir do ser falante. Aí não há sombra de psicologia. Homens e mulheres, isso é real. Porém, não somos capazes de articular na alíngua a mínima coisa que tenha a menor relação com o real. A psicanálise só faz repisar isso. É o que enuncio quando digo que não há relação sexual para os seres que falam. (LACAN, 1971/2011, p. 57)

Homens e mulheres podem ser distintos quanto à experiência de gozo. No campo do gozo, a relação sexual, no que compete ao ser falante, não se escreve — e os impasses gerados só podem ser tratados a partir dos recursos da lógica.

Lacan (1972-73/2010, p. 91) aponta que é preciso ler, “do que se lê para além do que vocês incitaram o sujeito dizer”. O discurso analítico, isso se escreve. Para ler e escrever, precisamos de letras, que comporão fórmulas escritas a partir de produções lógico-matemáticas.

A linguagem não se reduz ao universo discursivo que levou ao discurso filosófico: ela apresenta muito mais recursos do que a ontologia que opera a partir do verbo copulativo ‘ser’. Como se esquivar desse discurso, se não há realidade pré- discursiva, como afirma Lacan? (1972-73/2010, p. 98). Através de outro discurso, o

analítico, cujo fundamento é a não relação sexual. O discurso analítico rompe com o caráter substancial que impregna a função do ser, produzindo falhas, descontinuidades e rupturas: do ser à letra, de l’être a lettre. Pretende-se ir em direção a um efeito que só pode ser acessado através da escrita, ideal da matemática, de acordo com Lacan (1972- 73/2010, p. 114) — afinal de contas, como não há metalinguagem, um elemento anômalo na tentativa de abordar a linguagem é requerido.

Três letras: a, Φ e S(Ⱥ). “[...] o lugar Outro é simbolizado pela letra A” (LACAN, 1972-73/2010, p. 94) Contudo, este A é barrado, o que denota que no lugar de A, há uma falha ou buraco. O objeto a vem a funcionar em relação a essa perda. O mesmo se dá com o falo, que a partir de sua designação com letra Φ, abre-se uma nova dimensão, para além de sua vertente significante, tomado agora como função dentro da lógica. O significante foi introduzido pela linguística; a letra-escrita é tratada por Lacan a partir da lógica matemática. Mas como a relação sexual não existe, ela não pode ser escrita: “[...] não há relação sexual, eu volto a dizer isso [...], ela só se sustenta pelo escrito, e pelo escrito por isso: porque a relação sexual não pode se escrever” (LACAN, 1972-73/2010, p. 101).

Constata-se que “o que deveria resultar da linguagem, ou seja, a possibilidade da relação sexual se inscrever nela de algum modo, mostra de forma precisa, e na realidade, seu fracasso. Ela não inscritível” (LACAN, 1971/2009, p. 123). Inscrever aqui denota escrever-se também, mas com a sutileza de “fazer parte, entrar, registrar-se”, como se a relação sexual não se filiasse à linguagem por não ter se escrito como participante dela, e não simplesmente que ela não é prevista na linguagem. A inscrição, se tivesse ocorrido, teria se dado pela escrita. “Se digo inscritível é porque o exigível para que haja função é que, pela linguagem, possa produzir-se algo que seja expressamente a escrita, como tal, da função [...], F(x)” (LACAN, 1971/2009, p. 122). A relação sexual não pode ser escrita — lógica falha aqui. Se o essencial de toda relação é a operação de implicação (a → b), tal como Lacan considera no Seminário XVIII, a relação sexual não pode ser escrita na forma de ♂ → ♀, ou melhor, a escrita desta relação não contempla a relação entre o que é homem e o que é mulher, já que inexistente.

E mais: “tudo o que está escrito está condicionado de tal modo que parte do fato de que será para sempre impossível escrever como tal a relação sexual e que a escrita como tal é possível, ou seja, que há um certo efeito de discurso e que se chama a escrita” (LACAN, 1972-73/2010, p. 101). Dois pontos cruciais podem ser destacados

aqui: a relação sexual não se escrever é atemporal, ahistórico — “o real de que não há relação sexual se depositou ao longo das eras”, cita Bárbara Cassin (2013, p. 33) uma passagem de O aturdito. A não relação diz respeito a pontos de sem saída entre simbólico e o real desde sempre, o que muda é a forma com que se lida com tal impossibilidade. Tentativas foram feitas na forma do amor cortês na história ocidental ou tal como Van Gulik prescreve em A vida sexual da antiga China, quando se apostava que um gozo da polaridade sexual seria possível, segundo Lacan (1971-72/2012, p. 69).

Talvez tenha havido algum lugar, talvez até ainda existam lugares em que se passe entre o homem e a mulher essa conjunção harmoniosa que os faria ficarem no sétimo céu. Mas, coisa muito curiosa, trata-se sempre de lugares em que é realmente, seriamente preciso dizer a senha para entrar. Nunca se ouve falar deles, a não ser de fora. (LACAN, 1971-72/2012, p. 69)

Em suma, cada cultura tenderia a lidar de uma forma específica com a não relação sexual.

Segundo ponto: a escrita é um pressuposto que sustenta o discurso. ‘Homens’ e ‘mulheres’ são significantes e um procura o outro a título de significante e do que se situa a partir do discurso; mas, quanto à mulher, “há sempre alguma coisa nela que escapa do discurso” (LACAN, 1972-73/2010, p. 99). Outro impasse.

Não há metalinguagem. “Nesse próprio fracasso, entretanto, pode-se denunciar o que se passa com a articulação que tem, precisamente, a mais estreita relação com o funcionamento da linguagem, ou seja, a seguinte articulação: a relação sexual não pode ser escrita” (LACAN, 1971/2009, p. 126). O que nos faz considerar que o discurso, se estranho à relação sexual, por outro lado, faz discurso em torno de sua impossibilidade.

Além de não haver metalinguagem, para que a própria linguagem entre em funcionamento, a relação sexual deve não ser escrita. Mais interessante ainda é a afirmação: “a linguagem [...] tem seu campo reservado na hiância da relação sexual, tal como o falo a deixa aberta” (LACAN, 1971/2009, p. 63).

Tomemos como exemplo a sequência proposicional “Todo homem é bom; alguns animais são homens; logo, alguns animais são bons” (LACAN, 1971/2009, p. 127). Tal dedução não faz sentido, se nos atemos ao enunciado, já que animais não são homens. Contudo, e é isso o que interessa Lacan, tal equivalência só pode ser declarada se for passível de ser escrita, enquanto letra — o conteúdo não é elevado em conta, mas

a relação. Importante frisar isso porque, na função F(x), o x é uma variável, podendo ser qualquer coisa — homem, mulher, animal, abajur. A proposição deve ser examinada como verdadeira ou falsa na medida em que respeita, ou não, a função à qual está submetida, por critérios lógicos, e não na medida em que faz sentido. E é nessa perspectiva que Lacan vai tratar da relação sexual e o papel do falo nela. Lacan toma o x como o falo — no caso, terceiro termo, e não meio-termo — a se infiltrar entre o homem e a mulher. Não à toa, um texto célebre de Lacan sobre o tema se chama “A significação do falo” (1966/1998). Significação, Bedeutung, deriva da lógica de Frege. Esse termo também pode significar denotação, o que é preciso para que uma fala denote alguma coisa. Significação do falo: é uma significação que o falo tem (genitivo subjetivo), ou o falo é submetido à significação (genitivo objetivo)? Segundo Lacan, “o falo denota o poder de significação” (LACAN, 1971-72/2012, p. 54): é o que permite que um significante possa ser atrelado a um significado; é aquilo pelo qual a linguagem significa.

Rabinovich, em trabalho dedicado justamente ao estudo desse texto de Lacan, relaciona a diferença significante à diferença sexual: “aqui a diferença intervém como metonímia da diferença sexual [...]. A diferença significante substitui, assim, a diferença sexual, a especificidade perdida do biológico, perda que é consequência da captura do corpo do ser falante pelo significante” (RABINOVICH, 1995, p. 23).

No ser humano, a cópula sexual biológica, instintiva, falha. O que supriria tal falta seria a cópula lógica: “O falo suprirá o que o significante faz a sexualidade humana perder de natural, suprirá enquanto marca e, ao mesmo tempo, como cópula, como o que faz laço lógico entre os sexos” (RABINOVICH, 1995, p. 41). O falo seria como que a marca tipográfica dessa cópula lógica.

Significação — “e só existe uma, a significação do falo” (LACAN, 1971- 72/2009, p. 159). Lacan aponta a importância de se diferenciar Sinn e Bedeutung; e, para tanto, “sem uma referência lógica, que obviamente não pode bastar, à lógica clássica, aristotélica, é impossível encontrar o ponto correto nas questões que proponho” (LACAN, 1971-72/2009, p. 159). Exemplo: Vênus = estrela da manhã. Em certa medida, podem ser substituídas, tendo o mesmo sentido; em outra, não, pois são nomes diferentes. Se o nome é aquilo a que se chama a falar, por mais que se chame o falo, “ele continuará a não dizer nada” (LACAN, 1971-72/2009, p. 160). No nosso caso, o argumento da função assume a significação de homem ou de mulher.

“O que ele introduz não são dois termos que se definem pelo masculino e pelo feminino, mas a escolha que há entre termos de natureza e função muito diferentes, que se chamam ser e ter” (LACAN, 1971/2009, p. 63). Importa o falo como função — nesse caso, diferentes funções. Ser estaria do lado da relação sexual, função matemática (todo x é y, implica atribuição). Ter estaria do lado da lei sexual, campo do desejo e da proibição, diferencia Lacan; e não que “ser o falo” seja sinônimo de mulher ou feminilidade ou “ter o falo” de homem ou masculino — trata-se tanto de atribuição lógica (relação sexual) quanto do campo do desejo. Ou seja, a antiga fórmula ‘ser o falo = mulher’ e ‘ter o falo = homem’ passa a ser vista em outra perspectiva, também — o que pode ser abarcado pela ordem do desejo e pelo domínio do gozo, linguística e lógica, com o falo em ambos os terrenos. O falo, inclusive, é fator que regula o gozo: ordena, aproxima e afasta o sujeito dessa experiência. Há uma passagem, então; e essa lei sexual, que pretende articular a relação de cada sexo com o gozo, será escrita agora a partir das proposições universais e particulares afirmativas e negativas.

Tal como já apontamos, a diferença sexual pode ser abordada a partir da heterogeneidade do desejo e do mapa fantasístico em ‘homem’ e ‘mulher’. Agora, tomando a lógica como referência, a dissimetria entre os sexos se dá a partir da lógica interna a cada um.

Já no Seminário XVIII, Lacan começa a discorrer sobre os fundamentos da lógica aristotélica que sustentam sua teoria da sexuação. Parte-se das categorias proposicionais: universal afirmativa, particular negativa, universal negativa e particular afirmativa.

Posteriormente, acrescenta elementos da lógica matemática regida pela quantificação: derivada da lógica dos predicados, depreende-se a quantificação universal (para todo,) e a quantificação existencial (existe, ∃, algun(s)), atrelada ao particular32. A importância de se pensar os quantificadores lógicos ‘todos’ e ‘algum’ se desnuda em Lacan no enunciado “O homem é uma função fálica na qualidade de todo homem” (LACAN, 1971/2009, p. 132). As articulações matemáticas, a partir da lógica, passam a ser relacionadas ao valor de verdade. As proposições são avaliadas como verdadeiras ou falsas. Neste contexto, costuma-se ponderar se somente a proposição

32

Não pretendemos, aqui, fazer um acompanhamento passo a passo dos progressos, revisões e correções que Lacan fez da lógica para a composição da sua teoria da sexuação ao longo dos Seminários XVIII e XIX, mas discorrer sobre seus alicerces já prismados pela nossa interpretação e interesse de pesquisa. Para o “passo-a-passo” da lógica que rege a sexuação, indicamos o vigoroso trabalho de Guy Le Gaufey (2007).

No documento A diferença dos sexos: Lacan e o feminismo (páginas 194-200)