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5 CAMINHOS ANALÍTICOS DO LETRAMENTO LITERÁRIO NA

5.4 AVALIANDO A FORMAÇÃO DO FUTURO FORMADOR DE LEITORES

5.5.3 Clarice: memorial de leitura

Clarice, a partir de sua compreensão sobre a crônica lida, reflete sobre suas experiências de vida e seus sentimentos, sobre as relações sociais em que se insere e sobre o que a literatura (personificada pela autora) lhe proporciona sobre o conhecimento do homem e do mundo:

“Trata-se do conformismo em seu grau absoluto e, de certa forma, até mesmo do amor próprio. Mas o que nos faz (ou pelo menos me fez) refletir não foi o porquê de sermos assim, mas o porquê de agirmos assim. [...] Bem, como leitora, acabo levando tudo para o pessoal e acho que isso é justamente a intenção da autora, mas esperando mudanças, é claro. De qualquer forma, me pergunto sobre o porquê de me esconder ou nos escondermos, e penso que talvez seja o medo do julgamento do próximo – sobre como seremos vistos”.

“É algo triste [...] nos camuflamos. Vestimos rótulos, simplesmente porque é mais fácil [...] É mais fácil sermos juízes da vida do outro e criticarmos sua vida e suas lutas ao invés de temos empatia. [...] é triste, mas somos assim.

“Porém, tenho/temos medo do que podemos perder pelo caminho se agirmos como ‘nós mesmos’, mas, sabe, se ao mostrarmos quem somos de verdade, nos libertaremos [...] se eu fosse eu, só aceitaria pessoas de verdade e de caráter na minha vida (sobre a crônica “Se eu fosse eu” –

Lispector, [2017?]).

Predomina em seu texto o discurso interativo, com uma responsabilidade sobre o que diz, implicando-se nele. Utiliza-se de uma interlocução com um “tu” genérico (“sabe”) para caracterizar um diálogo consigo mesmo, a exemplo da expressão coloquial “é claro”, e um “nós” para referir-se ao gênero humano. Utiliza também a modalização apreciativa (“absoluto”, “triste”, “fácil”) para comentar sobre a condição de o ser humano se assumir como é, seu medo de sofrer com o julgamento do outro. Ao longo da sua escrita, ela utiliza a modalização psicológica (“refletir”, “pergunto”, “penso”), caracterizando seu processo de construção dos sentidos que a crônica proporciona. E, sempre se implicando, relaciona a leitura e a sua compreensão leitora com a sua vida pessoal e com a das outras pessoas que fazem parte de sua história, com as quais interage cotidianamente. Posiciona-se responsivamente em relação à “intenção da autora”, que lhe pede mudanças, num

processo dialógico, o que também pressupõe índices de atorialidade por se mostrar como os outros, de forma camuflada, entretanto com a possibilidade de se libertar e buscar nas suas futuras relações sociais pessoas que possam ser mais autênticas, quebrando o que ela qualifica de “conformismo em seu grau absoluto”.

Do mesmo modo, ao falar sobre a crônica Eu sei, mas não devia, Clarice apresenta um discurso interativo teórico misto, dividindo sua responsabilidade enunciativa com a autora da crônica (voz de personagem) e, com uma voz coletiva – social, pois cria uma empatia com um “nós”, sugerindo que, inclusive ela, todos optam pelo comodismo, em vez de tentar mudar sua maneira de viver –, posiciona- se ativamente:

“Trata-se de uma crônica onde a autora evidencia situações que ocorrem no cotidiano dos seres humanos que aos poucos estão sendo deixadas de lado (pela maioria das pessoas) fazendo com que o comodismo prevaleça e os mesmos permaneçam presos em suas incansáveis e, às vezes, triste rotina”.

“Talvez se vivêssemos no campo nossas vidas fossem diferentes, mas aqui na cidade, onde nos limitamos a viver apenas desse modo, um tanto robotizado, achamos natural que as coisas aconteçam assim...”.

“E, parando para refletir, nós podemos até não achar certo [...] mas acabamos agindo ao contrário. Nos calamos, abaixamos a cabeça e deixamos aquilo passar, como se fosse normal, e assim, por medo, vergonha ou sei lá o quê, acabamos nos tornando cúmplices de atitudes que sempre repudiamos. Mas, o que de fato me chamou à atenção foi o último trecho [...], que diz: ‘a gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma’. Talvez por ser uma mensagem forte ou porque me fez querer repensar e mudar algumas atitudes, enfim, o fato é que estamos sentados, vendo a vida passar, achando que tudo está bem quando, na verdade, nada está bem [...] e, quando ‘acordarmos’ (se acordarmos), pode ser tarde demais, e então realmente seria melhor não saber” (sobre a crônica “Eu sei,

mas não devia” – Colasanti, 1996a).

Clarice faz uma comparação com o que diz a cronista sobre o cotidiano nas cidades e como seria em outro contexto (campo). Inicia essa comparação apresentando uma síntese do que trata a crônica; segue com o processo de construção de sentidos sobre o texto; e, numa relação dialógica intertextual, cita o

trecho que mais lhe traz reflexão, posicionando-se responsivamente sobre o lido, em concordância com o que a narradora enfatiza sobre o tema abordado. Para tal, emprega a modalização psicológica (“e parando para refletir”) e a modalização apreciativa (“triste”, “sei lá o quê”, “forte” e “melhor”). Com o uso da modalização pragmática (“Me fez querer repensar e mudar”), ela demonstra o impacto que a leitura traz para suas futuras práticas sociais, revelando a sua intenção de mudar de atitude, ao interagir socialmente. Essa tentativa de mudança fica, porém, na intenção, pois primeiro apresenta uma gradação de ações: “nos calamos”, “abaixamos a cabeça”, “deixamos [...] passar”, para chegar à conclusão de que se torna cúmplice de atitudes as quais repudia. Depois, ao querer mudar, percebe que precisa “acordar para a vida”, mas reconhece que pode “ser tarde” e, ironicamente, concorda com a cronista: “realmente seria melhor não saber”.

A intertextualidade é um recurso textual frequente a que Clarice lança mão para relatar sua compreensão leitora. Outro exemplo é a conclusão que dá à sua interpretação do conto de Poe (2008): “o texto nos lembra aquela passagem que diz que ‘todo ato gera uma consequência’ e nos faz refletir sobre nossas decisões e desejos superficiais”. Ao utilizar o aforismo, ela sintetiza a sua compreensão sobre o conto e finaliza com uma proposição, em empatia com vozes sociais, representativas de práticas sociais comuns na realidade em que está inserida.

Portanto, em seu processo de compreensão leitora, Clarice apresenta como traço recorrente o confronto entre a visão de mundo do autor/narrador com a sua visão de mundo, de forma autoral, pois num processo de interdiscursividade (BAKHTIN, 2003), além da sua voz e a do autor/narrador, mescla vozes outras, incluindo a do seu interlocutor/leitor do memorial. Talvez por fazer do seu processo de compreensão leitora um exercício frequente de reflexão, esse exercício lhe possibilita coconstruir uma realidade possível – ficcional – a partir da qual Clarice reflete sobre a sua própria visão da realidade concreta. É por esse aspecto que Todorov (2016) afirma que a literatura deve ser vista como um conjunto de discursos vivos.