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4 PERSPECTIVAS DE ANÁLISE DO LETRAMENTO LITERÁRIO NA

4.1 ISD: ABORDAGEM INTERACIONISTA SOCIODISCURSIVA PARA A

O ISD traz em seu projeto influências de base linguística, mas também das ciências humanas e sociais, principalmente da área da Sociologia e da Psicologia. Importantes influências vêm dos escritos de Bakhtin/Volochínov (1981) que forneceram as bases da abordagem do estatuto da unidade-texto e das modalidades de interação entre as atividades de linguagens e outros tipos de atividades humanas e dos trabalhos do próprio Bakhtin (2003, 2016), quanto à análise do estatuto dos gêneros textuais e dos mecanismos interativos que os organizam.

Com base nos estudos de Piaget e de Vygotsky, Bronckart (2006) afirma que só se compreende o ser humano compreendendo sua construção ou seu futuro.

Nessa conjuntura, a ciência do humano deve tratar dos problemas concretos do humano, a exemplo de trabalho, educação, patologia individual e social. É nesse aspecto que o ISD afirma que essa ciência deve analisar e transformar as situações da atividade humana.

Para estudar os efeitos das práticas de linguagem sobre o desenvolvimento humano, os teóricos do ISD forjaram uma concepção da organização dessas práticas sob a forma de textos/ou discursos. Para isso, elaboraram um modelo das condições de produção dos textos e um modelo da arquitetura textual, que consideram texto como unidade comunicativa:

Todas as produções de linguagem situadas, que são construídas, de um lado, mobilizando os recursos (lexicais e sintáticos) de uma língua natural dada, de outro, levando em conta modelos de organização textual disponíveis no quadro dessa mesma língua [...] podem ser definidos como manifestações empíricas/linguísticas das atividades de linguagem dos membros de um grupo [...] se um texto mobiliza unidades linguísticas [...] não constitui em si mesmo uma unidade linguística; suas condições de abertura e fechamento [...] não são da competência do plano linguístico, mas são inteiramente determinadas pela ação que a gerou [...] razão pela qual nós qualificamos o texto como unidade comunicativa (BRONCKART, 2006, p. 13).

Bronckart afirma que, para a produção de um texto, fazem-se necessárias escolhas sobre a seleção e combinação dos mecanismos e modalidades linguísticas. Entende que os gêneros são os produtos de configuração dessas escolhas que são condicionadas ao uso, às atividades que praticam e ao meio comunicativo dado, de forma a ser eficaz à interação social desejada. Os gêneros mudam com a história das formações discursivas e com o tempo, respondendo sempre a questões de ordem referencial, comunicacional e cultural. Logo, não se pode confirmar uma relação direta entre as espécies de agir linguageiro e os gêneros, consequentemente uma classificação estável e definitiva.

O ISD, no que se refere ao estudo dos textos e dos gêneros, não faz diferença específica entre o texto literário e o não literário. Sendo assim, a concepção de arquitetura textual proposta por Bronckart (1999, 2006) pode contemplar qualquer texto.

O teórico afirma ainda que, para se definir uma atividade de linguagem, busca-se a produção do enunciado/texto, a qual determina a base de orientação

para essa ação de linguagem que se materializa na produção do texto. Este, por sua vez, incide sobre o contexto e é traduzido nas escolhas de unidades semânticas e sintáticas da língua, as quais passam a constituir marcas da construção dessa base de orientação pelo enunciador. Um subconjunto opera na constituição de estratégias linguísticas e discursivas responsáveis para a marcação das fases do plano do texto, para a coesão e para a modalização dos enunciados. Dessa forma, de acordo com as suas decisões, o enunciador retira do intertexto o gênero que atenda a sua situação de ação específica. Para isso, exige-se dele a sua capacidade linguística discursiva. Portanto, pela proposta do ISD, os textos passam a ser analisados em suas marcas pelas operações psicolinguísticas das representações nas atividades linguísticas que carregam características do mundo objetivo, social e subjetivo (BRONCKART, 2006).

Para essa análise, Bronckart (1999, p. 93) propõe uma arquitetura textual que opera em três camadas distintas, mas que se entrecruzam como num folhado: a infraestrutura textual, os mecanismos de textualização e os mecanismos enunciativos. Na análise da infraestrutura textual, é necessário entender a situação da ação de linguagem, na qual o produtor do texto se encontra. Por isso é decisivo analisar o contexto de produção, visto como “conjunto dos parâmetros que podem exercer uma influência sobre a forma como um texto é produzido” (BRONCKART, 2006, p. 93). Interessa, pois, considerar: o contexto físico, ou seja, o lugar e o momento de produção, o produtor e o interlocutor; o contexto social, que corresponde ao lugar social em que é produzido o texto, tal como a escola, a família, a mídia, a igreja etc.; a posição social do produtor, ou seja, o papel social que desempenha na interação – se aluno ou professor, por exemplo –; a posição social do interlocutor; e o objetivo da interação. Bronckart (2006) sustenta que, na infraestrutura, há um encaixamento que considera a situação de produção, o gênero de texto, o tipo discursivo e o tipo de sequência ou de planificação.

Numa reanálise sobre as operações que os tipos de discurso subentendem, Bronckart (2006) assinala que o ISD faz intervir duas decisões binárias: na primeira, as coordenadas que organizam o conteúdo temático verbalizado podem estar à distância das coordenadas da situação de produção do agente – Ordem do Narrar – ou não – Ordem do Expor (relação de disjunção ou de conjunção); na segunda, as instâncias de agentividade verbalizadas podem ser postas em relação com o agente produtor e sua ação de linguagem (implicação) ou não (autonomia). Do cruzamento

decorrente dessas decisões produziram-se quatro “atitudes de locução” denominadas “mundos discursivos: Narrar implicado ou Narrar autônomo e Expor implicado ou Expor autônomo” (BRONCKART, 2006, p. 14-15). A partir das análises distribucionais de unidades e de processos da língua francesa, identificaram-se, portanto, quatro tipos de discurso: o discurso interativo, o discurso teórico, o relato interativo e a narração (BRONCKART, 2006). É importante salientar que tais tipos de discurso podem aparecer mesclados nos casos em que é possível distinguir no(s) segmento(s) analisado(s) características discursivas de dois tipos. Pode-se, por exemplo, detectar num mesmo enunciado, unidades linguísticas características de implicação e do chamado discurso interativo (pronomes de primeira e de segunda pessoa, relação mais estreita com o momento de produção), seguidas por outras unidades que marcam a autonomia entre os conteúdos enunciados e a situação de produção (tais como pronomes de terceira pessoa, uso do presente genérico, marcando uma disjunção temporal). Encontra-se aí o que se pode chamar de discurso interativo teórico misto (BRONCKART, 1999, p. 254). Esses tipos de discurso já foram, inúmeras vezes, validados para outras línguas e em diversos estudos sobre o português (Cf. GUIMARÃES; MACHADO; COUTINHO, 2007).

Considerando-se que o texto é uma unidade comunicativa, é imprescindível a coerência entre a situação da ação – que é verificada pelo contexto de produção e a escolha do gênero utilizado – e o funcionamento dos mecanismos de textualização de um lado; e, de outro, dos mecanismos enunciativos. Os primeiros mecanismos referem-se à progressão do conteúdo temático e atravessam o texto. Os segundos demonstram os posicionamentos enunciativos e as modalizações que podem ser aplicadas a algumas partes do conteúdo temático.

Para a manutenção da coerência pragmática de um texto, o agente-produtor utiliza-se dos mecanismos enunciativos (vozes e modalização) para esclarecer a significação da ação de linguagem do que enuncia o posicionamento daquele de quem emana essa significação, ao mesmo tempo em que expressa as modalizações.

Entre essas marcas de modalização estão os modalizadores categorizados em modalizações lógicas, deônticas, apreciativas e pragmáticas. As primeiras referem-se a julgamentos sobre valor de verdade das proposições enunciadas. As modalizações deônticas expressam um posicionamento mais argumentativo, assumido pelo enunciador, sobre obrigações de ordem social. As modalizações

apreciativas traduzem julgamentos referentes ao mundo subjetivo, que avaliam os fatos como bons ou maus. E a modalização pragmática revela responsabilidades e intencionalidades assumidas pelo enunciador (BRONCKART, 1999, p. 132). Além dessas, acrescenta-se a esta pesquisa a modalização psicológica que “explicita os recursos cognitivos do agente” tais como pensar, acreditar, considerar (BRONCKART; MACHADO, 2004, p. 150). As modalizações, portanto, explicitam os comentários ou avaliações feitas a respeito de alguns elementos do conteúdo temático e são relativamente independentes da linearidade do texto e dos tipos de discurso; também podem referir-se a qualquer nível da arquitetura textual, estabelecendo uma coerência interativa, pois orientam o leitor na interpretação do conteúdo temático. Elas se realizam por meio de modalidades, ou seja, unidades ou conjunto de unidades linguísticas de diferentes níveis, tais como: tempos verbais, verbos auxiliares ou (metaverbos) de modo, advérbios ou locuções adverbiais, orações impessoais ou, ainda, por complexos modais, isto é, quando unidades que marcam a modalização combinam-se entre si (BRONCKART, 1999).

Vozes são entidades que assumem a responsabilidade do que é dito, visto ou pensado no texto ou às quais é atribuída essa responsabilidade. De acordo com o tipo de discurso, considera-se voz neutra, ou voz do narrador, ou do expositor, a instância de enunciação que assume diretamente a responsabilidade do que é enunciado. Mas essa instância pode também tornar visível uma ou várias outras, que são consideradas vozes secundárias em relação a esse narrador ou expositor.

Essas vozes secundárias são denominadas vozes de personagens quando procedem de seres humanos ou de entidades humanizadas, implicadas na qualidade de agentes em ações constitutivas do conteúdo temático de um segmento do texto, como, por exemplo, interlocutores implicados num discurso interativo dialogado ou como “criador de conhecimentos”, postos em cena num discurso teórico. Também denominadas vozes sociais quando procedem de personagens, grupos ou instituições sociais as quais não intervêm como agentes, mas que são mencionadas como instâncias externas que avaliam aspectos do conteúdo temático de um segmento do texto. Além dessas, há a voz do autor, ou seja, aquela que procede da pessoa que originou a produção textual e intervém, comentando ou avaliando algum aspecto do que é dito. Essas vozes podem ser expressas de forma direta – e explícita –, a exemplo do discurso interativo dialogado, em que há turnos de fala. Já as indiretas podem estar presentes em qualquer tipo de discurso ou

explicitadas por expressões como “segundo X”, “alguns pensam que” ou simplesmente por serem inferidas, a partir de um segmento que apresente um efeito de significação global (BRONCKART, 1999, 2006).

Adotou-se também para a análise desta pesquisa o conceito de atorialidade, característica de quem é ator, melhor dizendo, quando as formas textuais colocam o actante (qualquer pessoa implicada no agir) como sendo fonte de um processo e quando a ele são atribuídas capacidades, motivos e intenções. O contrário, ou seja, a agentividade é característica de agente – o actante que não possui essas propriedades e apenas executa uma determinada ação (BRONCKART; MACHADO, 2004).

Nesta pesquisa, serão utilizados para análise dos textos produzidos pelos alunos do curso de Letras os seguintes níveis da arquitetura textual proposta pelo ISD: na infraestrutura textual, os tipos de discurso que constituem os textos produzidos e, nos mecanismos enunciativos, a gestão das vozes e a expressão das modalizações; além das marcas de atorialidade presentes nessas atividades de linguagem, para compreender a avaliação que eles fazem de seu processo de letramento, enquanto professores em formação.