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2 QUESTÕES A PENSAR SOBRE O ENSINO DE LITERATURA

2.1 O QUE NOS DIZEM OS DOCUMENTOS OFICIAIS?

2.1.1 Os Parâmetros Curriculares da Educação (PCN)

Em se tratando das políticas públicas de educação, no Brasil, os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (BRASIL, 1998), amparando-se em aportes dos novos estudos em Linguística e Psicolinguística, entre outras ciências

que possibilitaram avanços nas áreas de educação, apresentam a necessidade de se refletir sobre o ensino da Língua Portuguesa e a sua concepção de linguagem, que vigorou durante as décadas de 1960 e 1970. Nesse contexto, o processo não planejado de democratização da educação no Brasil culminou com a chamada crise na educação e com o fracasso escolar. Somando-se a esse fato, o processo de industrialização e de urbanização, as revoluções tecnológicas e a ampliação da utilização da escrita, além da expansão dos meios de comunicação eletrônicos, passaram a exigir do homem uma nova maneira de pensar e de interagir nas suas práticas sociais.

Para reverter esse quadro, caberia à escola conceber a linguagem como ação interindividual orientada que possibilita ao aluno não só apropriar-se da língua para interagir com os outros, mas para ter acesso à informação, expressar e defender pontos de vista, partilhar ou construir visões de mundo, produzir cultura – condições essenciais para uma plena participação social. Essa concepção de linguagem é adotada a partir dos estudos de Bakhtin (1981), o qual afirma que a consciência individual se constrói na interação com o outro, de onde resulta uma compreensão como atividade dialógica em que um texto gera outro texto, numa atitude responsiva, ou seja, numa tomada de posição diante desse texto ou dessa interação.

Dessa forma, o domínio da linguagem, como atividade discursiva e cognitiva, e o domínio da língua, como sistema simbólico, utilizado por uma comunidade linguística, devem ser promovidos pela escola, a partir do grau de letramento das comunidades em que vivem os alunos, considerando os diferentes níveis de conhecimento prévio, capacitando-os para a interpretação de diferentes textos que circulam socialmente e para produzir textos eficazes nas mais variadas situações em que se assumem como cidadãos (BRASIL, 1998).

Nessa perspectiva, os PCN apresentam o ensino da língua a partir da concepção dos gêneros do discurso – baseado em Bakhtin (2003), como formas relativamente estáveis de enunciados disponíveis na cultura ou, na perspectiva de Bronckart (2010), como modelos disponíveis e em uso em uma determinada comunidade verbal, situada numa determinada época de sua história, em que se manifestam os textos. O objeto de ensino deixa de contemplar frases isoladas e descontextualizadas e passa a ser o conhecimento linguístico e discursivo com o qual o sujeito opera ao participar das práticas sociais, mediadas pela linguagem. Cabe, então, à escola organizar situações de aprendizagem que apresentem

situações de interação, nas quais esses conhecimentos sejam construídos; organizar atividades que procurem recriar, na sala de aula, situações enunciativas que ocorrem no dia a dia, nas mais diversificadas práticas sociais de linguagem.

O texto passa a ser a unidade básica do ensino, que se concretiza a partir de uma natureza temática, composicional e estilística, que o caracteriza como pertencente a um determinado gênero. As atividades de ensino, por seu turno, devem priorizar o gênero em sua diversidade, tanto pela sua relevância social quanto pelo fato de que textos pertencentes a diferentes gêneros são organizados de diferentes formas. A sugestão do documento é que a seleção desses textos favoreça “a reflexão crítica, o exercício de formas de pensamento mais elaboradas e abstratas, bem como a fruição estética dos usos artísticos da linguagem, ou seja, as mais vitais para a plena participação numa sociedade letrada” (BRASIL, 1998, p. 24, grifo nosso). Há também uma ênfase nos gêneros que proporcionam, através dessa “fruição estética dos usos artísticos da linguagem”, uma reflexão crítica da sociedade. Nesse sentido, quanto a sua especificidade, como representação, o texto literário não está limitado a critérios de observação fatual, nem a categorias e relações que constituem o modo de ver da realidade, nem pretende explicar ou descrever os diferentes planos dessa realidade.

Ele os ultrapassa e transgride para constituir outra mediação de sentidos entre o sujeito e o mundo, entre a imagem e o objeto, mediação que autoriza a ficção e a reinterpretação do mundo atual e dos mundos possíveis. (BRASIL, 1998, p. 26, grifo nosso).

Nesse prisma, pode-se observar a apresentação do texto literário como mais um dos modos de “apreensão e interpretação do real” que põe o leitor diante de um “inusitado tipo de diálogo, regido por jogos e invenções da linguagem”, instaurando pontos de vista particulares, expressões de subjetividades misturadas a citações do cotidiano, constituindo-se como outra “forma/fonte de produção/apreensão de conhecimento”, reafirmando a sua identidade pessoal e social (BRASIL, 1998, p. 26). Além disso, como obedece à sensibilidade e a preocupações estéticas, o texto literário também apresenta características diferenciadas, do ponto de vista linguístico, o que o torna passível de múltiplas leituras, pela indeterminação e pelo jogo de imagens e figuras, como fonte virtual de sentidos, exigindo do seu leitor um exercício de reconhecimento de singularidades, de sutilezas, na extensão e na

profundidade das construções literárias e não como pretexto para extrair valores morais ou tópicos gramaticais (BRASIL, 1998, p. 27). Há, portanto, uma explicitação acerca das especificidades da linguagem literária como distintivo das demais linguagens consideradas ordinárias, bem como uma ênfase na função social que ela potencializa no momento da recepção, desmitificando o seu uso equivocado pela escola.

Dessa forma, cabe à escola explorar, quanto à linguagem literária, a funcionalidade dos elementos estruturais da obra e sua relação com seu contexto de produção, com o contexto do leitor e com outras obras. Para isso, deverá partir sempre de obras que possam atrair o aluno. Nesse caso, cabe ao professor a função de estabelecer uma conexão entre textos, cuja realidade ficcional esteja mais próxima daquilo que o aluno vivencia em suas práticas sociais; e textos que possam lhe apresentar visões de mundo diferentes, propiciando-lhe uma ascensão a outras culturas. Trata-se, portanto, de “uma educação literária, não com a finalidade de desenvolver uma historiografia, mas de desenvolver propostas que relacionem a recepção e a criação literárias às formas culturais da sociedade” (BRASIL, 1998, p. 64).

Nessa mediação feita entre professor, aluno e obra, o horizonte de expectativas do aluno deve ser rompido ou ampliado por meio de leituras, que o levem ao conhecimento de novas formas de interpretar os problemas que enfrenta nas suas relações com o outro e com o mundo; de outras formas de organização do discurso; e, na interação com outros leitores, posicionar-se criticamente diante do lido, a partir de suas práticas leitoras, reconhecendo, assim, sua linguagem e seu lugar no mundo.

Nessa ótica, os PCN traduzem as concepções linguísticas e de letramentos que se encontravam em voga à época de sua elaboração e que ainda são atuais, no sentido de valorizar a competência leitora dos alunos, em função de suas práticas sociais que transcendem as salas de aula, fortalecendo suas relações interpessoais.

Essas orientações foram, ao longo dos últimos 20 anos, a base para todas as mudanças que ocorreram na educação brasileira. Promoveram-se, nas secretarias regionais de educação, estudos em cursos de formação continuada para professores; as Instituições de Ensino Superior (IES), responsáveis pela formação inicial de professores, incluíram em seus Projetos Político-Pedagógicos (PPP) disciplinas teóricas e práticas, com o objetivo de contribuir para a aplicabilidade

dessas orientações e transposição dos saberes necessários para uma formação cidadã do aluno, respeitando-se as peculiaridades de cada região, da escola e as diferenças sociais e culturais dos alunos da Educação Básica. Pode-se considerar, a propósito, que houve avanços no ensino de Língua Portuguesa na Educação Básica, todavia muito ainda há por melhorar, tanto em relação às práticas de linguagens que favoreçam os letramentos sociais quanto no ensino de literatura que proporcione uma formação crítica e estética a seus leitores.

É com esse olhar que se busca conhecer, a seguir, as prescrições do mais recente documento norteador das políticas educacionais brasileiras para o ensino de Língua Portuguesa, nos anos finais, com ênfase nas orientações para uma educação literária que garanta uma participação do aluno, nas mais diversas práticas sociais.