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5 CAMINHOS ANALÍTICOS DO LETRAMENTO LITERÁRIO NA

5.4 AVALIANDO A FORMAÇÃO DO FUTURO FORMADOR DE LEITORES

5.5.4 Marina: páginas da minha vida junto às leituras literárias

Em suas páginas sobre as leituras feitas, Marina utiliza com mais frequência, o discurso interativo teórico misto, atribuindo a responsabilidade do que é dito a um

expositor o qual ora a divide com uma voz coletiva que representa a sociedade na qual se insere, ora se implica, apresentando seu posicionamento crítico sobre o que é lido, como vemos a seguir:

“Eu entendi que as pessoas estão sempre se policiando para não fazer coisas que contrariem a sociedade. Dessa forma, nós nunca somos realmente nós mesmos, sempre há mais coisas escondidas nas entrelinhas. Vivemos de um modo que agrada os outros, mas não a nós mesmos”.

“[...] tudo é censurado! Isto dá a impressão de que tudo que se faz fora das regras é errado. Muitas vezes, uma pessoa tem receio de fazer determinada ação por medo de ser julgada pelos outros. E se esconde por trás de uma máscara, de uma identidade que ela própria criou. Uma identidade que só mostra aquilo que queremos que vejam, porque a nossa verdadeira identidade nunca é revelada realmente. Portanto talvez seja bom seguir as regras que a sociedade nos impõe no dia a dia, por conveniência.... mas talvez também seja bom quebrá-las de vez em quando. Só de vez em quando” (sobre a crônica “Se eu fosse eu” –

Lispector, [2017?], grifo nosso).

Nesses excertos, essa implicação é confirmada quando Marina utiliza um metaverbo com valor psicológico na primeira pessoa, “entendi”, para sugerir a ação reflexiva, desenvolvida por ela na produção de sentidos sobre a crônica, mas, também, na apreciação sobre a visão de mundo da cronista/narradora para uma tomada de consciência sobre a(s) identidade(s) assumida(s) por ela/leitora em suas próprias relações sociais. A partir da fabulação, Marina inicia seu processo reflexivo, atribuindo as ações a um agente indeterminado, representado por sintagmas nominais: “as/uma pessoa/s” ou pronomes anafóricos “se” e “ela”, e, na sequência, atribui a responsabilidade a uma voz social também indeterminada (“nós nunca somos realmente nós mesmos”). Ela finalmente se implica quando usa o verbo no infinitivo (“seguir” e “quebrar”) e as modalizações apreciativas (“censurado”, “errado”, “verdadeira”, “talvez seja bom”). Nesse processo de implicação, há uma gradação (em negrito) que vai da negação (“não sermos nós mesmos”) para as afirmações (“queremos que vejam”, “nossa verdadeira identidade nunca é revelada”) e, finalmente, para a dúvida (“seguir as regras” ou “quebrá-las”). A conclusão a que chega Marina é a mesma da sociedade, “só de vez em quando”, posicionando-se de forma dúbia: seguindo as regras impostas de forma agentiva ou, mesmo que de vez em quando, dando-se ao direito de ter atorialidade. Talvez uma ironia?

Sobre o terceiro texto lido no laboratório, Marina apresenta um discurso teórico com voz de autor empírico e, sem se implicar, atribui a responsabilidade enunciativa a várias vozes: a voz de personagem, da autora como criadora da obra e da bala como uma personificação, a quem é imputada a qualidade de protagonista das ações descritas pela autora. Além delas, há vozes sociais representadas pelo sintagma nominal “a sociedade” a quem é requerida a solução apresentada por Marina:

“Este texto retrata de forma indireta e até poética a realidade de cidades que vivem à mercê da violência. A autora faz uma espécie de jogo de palavras durante o texto, usando as palavras ‘achadas e perdidas’, que leva o título, transformando-a em vários sentidos”.

“[...] a autora quis descrever sua visão sobre a violência urbana, de uma forma crítica [...] na qual, infelizmente a bala é a grande protagonista, [...] que aumenta o número de vítimas inocentes todos os dias, e que obriga a comunidade a conviver com o medo. Mas que poderia ser esquecida se a sociedade pudesse dar um basta nessa situação” (sobre a crônica

“Achadas e perdidas” – Colasanti, 1996b).

Nesses trechos, Marina comenta o modo como a autora trabalha a linguagem, destacando o jogo de palavras utilizado na tessitura da crônica, reconhecendo a singularidade poética da escrita. Reconhece a presença da poesia na narrativa (prosa poética) através do modo de dizer da narradora/cronista, que estabelece no jogo das palavras um convite ao leitor para tornar-se um coautor que busca, nesse jogo, a produção dos muitos sentidos que lhe proporcionará, a partir da construção de uma realidade ficcional possível, uma reflexão sobre a sua própria visão da realidade concreta (TODOROV, 2016), como vemos no último excerto.

Nessa ambiência, a partir das vozes postas na cena enunciativa, ela faz uma apreciação crítica em concordância com a visão de mundo apresentada pela autora, empregando a modalização apreciativa (“infelizmente”, “inocente” e “esquecida”). E, através da modalização deôntica em “pudesse dar um basta”, assume um posicionamento responsivo, sugerindo uma possível solução para os problemas sociais denunciados na obra e vivenciados por ela em sua realidade.

Esse diálogo entre a visão de mundo tematizada na obra lida e a sua visão de mundo foi um aspecto bastante abordado por Marina em seu memorial:

“Este texto fala sobre um homem [...] que teve um mal súbito. Muitos curiosos aparecem ‘tentando socorrer’, mas na verdade não estavam de fato tentando socorrê-lo, pois só queriam saciar a curiosidade e levar os seus pertences. Isso acontece muito na vida real, todos os dias. Hoje em dia as pessoas valem o que têm e não o que são”.

“A inveja consome cada vez mais a sociedade, querem sempre ter algo melhor do que o do colega. Aquele velho ditado ‘a grama do vizinho é melhor que a minha’”.

“Não é diferente do que acontece na vida real, pois quando acontece algum acidente na rua, pessoas surgem [...] pela curiosidade e não a fim de ajudar. [...] Imediatamente pegam seus celulares para fotografar ou filmar a tragédia, sem sensibilidade alguma. [...] Isto para mim é de uma frieza, um desrespeito horrível [...] parece que falta amor no coração”

(sobre o conto “Uma vela para Dario” – Trevisan, 1980, grifo nosso). Em sua apreciação crítica, Marina usa o discurso interativo teórico misto, assumindo a responsabilidade enunciativa de sua escrita, como autor empírico, implicando-se (“para mim”), após fazer uma exposição sobre seu entendimento da leitura. A partir de uma síntese sobre o conto, utiliza-se da modalização apreciativa (“na verdade”, “só”, “cada vez mais”, “sempre”, “velho”, “diferente”, “alguma”, “frieza” e “horrível”) para estabelecer um confronto entre a visão de sociedade apresentada na ficção e a sua própria realidade, posicionando-se criticamente sobre valores sociais importantes que o mundo moderno deixou de cultivar, tais como a solidariedade e a compaixão. Portanto, reconhece na literatura a sua função social, quando, em sua resposta à crônica lida, revela as máscaras sociais que negam os direitos do homem, como afirma Candido (2007). Para marcar essa responsividade, estabelece relações interdiscursivas intertextuais, como os aforismos “as pessoas valem o que têm e não o que são” e “a grama do vizinho é melhor que a minha”, e conclui com uma modalização lógica: “não é diferente do que acontece na vida real”.

Em seu memorial, portanto, Marina apresenta-se como leitora crítica, que age responsivamente diante do lido, construindo sentidos os quais são relacionados sempre com suas práticas sociais. Nessa relação dialógica com a obra literária, reconhece as marcas que singularizam sua linguagem como uma forma de atraí-la enquanto leitora, para desnudar o mundo em que está inserida e compreender o agir humano nas interações sociais. Dessa forma, explora em sua interação com a obra a sua dimensão estética e social, agindo, portanto, com índices de atorialidade.

A partir dos dados selecionados, procuramos acompanhar a visão dos alunos sobre suas experiências leitoras, sobre seu percurso no processo de letramento literário, até o momento da sua participação nas disciplinas objeto de pesquisa e da sua reflexão sobre sua formação como profissionais comprometidos com o letramento literário. Nosso propósito era proporcionar-lhes a possibilidade de fazerem essas reflexões sobre seu processo de letramento literário e, nesse caminho reflexivo, verificar se eles (re)significaram suas concepções e se fizeram uma projeção sobre suas ações como futuros mediadores de leitores literários.

Cabem aqui algumas questões que não, necessariamente, pretendem ser respondidas nesta pesquisa, mas que não podemos deixar de apresentá-las para que possam ecoar em nossos cursos que devem formar professores e também, entre outros objetivos, formar leitores (e, no nosso caso, leitores de textos literários).

Dos quatro alunos do curso aqui analisados, apenas uma aluna se implica em suas produções, sugerindo que seguirá a profissão de professora, vendo nela uma profissão gratificante. Os demais ingressaram no curso com outros interesses. Apesar disso, os quatro atenderam prontamente à proposta de participar desta pesquisa e cumpriram com os critérios de escolha aqui estabelecidos, quais sejam: apresentar, nas produções solicitadas, uma reflexão sobre seu letramento literário, sobre seu processo de compreensão leitora, sobre sua atuação nas oficinas de leitura literária e sobre sua futura atuação como professor. Sobre os demais alunos que também participaram desta pesquisa, resta-nos questionar: onde estão os que ingressaram no curso com essa finalidade? Por que não se dispuseram a fazer essas reflexões para lhes ajudar a confirmar ou não a opção de ser professor? Mas também podemos questionar daqueles que aceitaram contribuir com a pesquisa se, ao fazerem as reflexões solicitadas, não se sentiram incomodados sobre a possibilidade de se descobrirem leitores formadores de leitores.