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2 QUESTÕES A PENSAR SOBRE O ENSINO DE LITERATURA

2.2 FORMAÇÃO INICIAL DO PROFESSOR DE LÍNGUA: IMPLICAÇÕES

Sobre as dificuldades encontradas pelos professores em formação no desenvolvimento de suas práticas de leitura e de escrita e, principalmente, como futuros mediadores dessas práticas, no exercício de sua profissão, Guedes (2006) afirma que essa discussão por parte dos cursos de Letras é muito recente. Para ele a justificativa de que a ênfase na formação teórica, no domínio da teoria, daria ao futuro professor condições de transformar o conhecimento em conteúdo de ensino só negligencia as deficiências de formação desse aluno que, muitas vezes, não exercitou a leitura e a escrita numa mínima quantidade capaz de dar sentido à reflexão sobre a língua e a literatura. Assim, muitas vezes a pretensa formação teórica transforma-se em formação meramente metalinguística, aquela em que o “aluno acaba avaliado pela sua capacidade de memorizar os nomes que as teorias estudadas dão aos conjuntos de fatos muito particulares que examinam o que reforça a prática de reproduzir o discurso do professor” (GUEDES, 2006, p. 28-29).

Nessa perspectiva, o caminho a ser trilhado para uma formação autêntica seria a mediação de práticas de leitura e de escrita durante a formação, a partir das quais o aluno poderia avaliar seu processo de aprendizagem e os letramentos adquiridos. Nessa acepção, haveria a possibilidade de ressignificar essas práticas à luz dos saberes construídos nessa formação, para transformá-las e transpô-las para a realidade da sala de aula. Essa é uma das reflexões que se faz no

desenvolvimento desta pesquisa sobre o papel que as Instituições de Ensino Superior (IES) devem cumprir para contribuir com a qualidade da Educação Básica no Brasil. Em contato com alunos nas disciplinas de estágio curricular no curso de Letras, muitas vezes esta pesquisadora ouviu depoimentos sobre o desconhecimento do quê e do como ensinar, além do desabafo de que os professores universitários preocupavam-se apenas em encaminhá-los para a pesquisa, esquecendo-se de prepará-los para o ensino. Essa preocupação que, como vimos, encontra-se na BNC-Formação deve ser a tônica para uma reformulação dos cursos de formação de professores. Não se pode ser mediador de leitores se não se é leitor. Da mesma forma, não se ensina apenas a partir de teorias e conhecimentos aprendidos. É nas atividades de leitura proporcionadas pelas disciplinas de língua e literatura, através de oficinas e laboratórios de leitura, por exemplo, que os futuros professores podem vivenciar seu processo de compreensão leitora e de escrita responsiva e preparar-se para uma postura de engajamento que lhe será exigida numa situação de ensino, seja nos projetos de intervenção, durante as práticas ou estágios curriculares de formação, seja na sua docência profissional.

Para Perrenoud (2008), a formação inicial tem de preparar o futuro professor para refletir sobre sua prática, para criar modelos e para exercer sua capacidade de observação, análise, metacognição e metacomunicação. Assim, o desafio é ensinar, ao mesmo tempo, atitudes, hábitos, savoir-faire, métodos e posturas reflexivas. Além disso, o professor formador deve criar para os alunos professores um ambiente que favoreça a análise de sua prática, bem como a partilha das contribuições e de reflexão sobre a forma como se pensa, decide, comunica e reage em uma sala de aula. Também é preciso criar ambientes – que podem ser os mesmos – para o futuro professor trabalhar sobre si mesmo, sobre seus medos e suas emoções, a fim de incentivar o seu desenvolvimento como pessoa e o de sua identidade. Em resumo: “aprender fazendo a fazer o que não se sabe fazer – fórmula paradoxal apreciada por Meirieu (1996)” (PERRENOUD, 2008, p. 17-18). Observa-se nessas considerações o que a BNC-Formação apresenta como homologia de processos, que constitui a metodologia da formação de professores, como foi exposto na seção anterior.

Essa é uma proposição com que se concorda e tenta-se enfocar nesta pesquisa: buscar compreender como o aluno do curso de Letras reflete sobre as suas práticas leitoras do texto literário, através de oficinas/eventos de letramento

literário, propiciando-lhe novas experiências e vivências com a leitura literária e parâmetros sobre a sua prática docente e a sua responsabilidade para a formação de novos leitores.

Para Signorini (2005, p. 96-97), nos estudos sobre a formação de professores, é comum a constatação de que a formação profissional é um processo que transcende os cursos de formação propriamente ditos e envolve a

aquisição, a mobilização e a articulação/transformação de saberes e competências heterogêneos, vinculados a práticas socioculturais específicas, não restritas às de letramento, e indissociáveis de contextos institucionais socio-historicamente situados.

Nessa ótica, as práticas de letramento, por exemplo, se constituem tanto nas práticas próprias da formação, num dado tempo e lugar, quanto às relacionadas à escolarização de um nível de ensino – participação como aluno e como professor. Além dessas, há também as práticas não escolares, como as religiosas e as midiáticas, por exemplo, todas igualmente inscritas num dado tempo e espaço.

As práticas de ensino e de aprendizagem da leitura que são construídas desde a família até a universidade poderão ser diversas para alguns grupos sociais e algumas instituições ou até excludentes entre si. Esse dinamismo das relações entre o familiar e o novo no processo de formação assume um caráter muitas vezes disruptivo: “ler um texto não é decodificar palavras e frases, portanto ser alfabetizado nos moldes tradicionais (ou nos moldes dos cursos de magistério) não é, de fato, aprender a ler”. Esse processo em fluxo dá à formação profissional um caráter de heterogeneidade e de dinamismo das relações que são construídas e desconstruídas, ao longo do processo de letramento; de acordo com os aportes e as necessidades que vão surgindo, tanto nos cursos de formação quanto no trabalho, na escola (SIGNORINI, 2005, p. 96-97).

Entende-se, portanto, que as práticas de letramento decorrentes da formação dos professores devem ser analisadas em seu local de trabalho, na relação com a escola, vista como espaço e como esfera socio-histórica, onde os saberes e os significados são construídos pelos participantes na prática social de letramento e, portanto, “são analisados de maneira situada, relacionando lugar físico, tempo histórico, participantes e suas relações e funções no evento e nos temas construídos” (KLEIMAN; DE GRANDE, 2015, p. 18).

Nesse sentido, não se pode deixar de refletir sobre a contribuição dos cursos de formação de professores para que as práticas de leitura literária ocorram de forma significativa na escola, proporcionando um ensino voltado para os letramentos.

É necessário, então, lançar um olhar para avaliar como essas práticas vêm ocorrendo na escola. Aguiar e Bordini (1988) afirmam que, para resolver os problemas de leitura que são diversos numa sociedade desigual, uma solução possível para a escola seria oferecer textos variados que deem conta das diferentes representações sociais e que possam cumprir com uma das necessidades fundamentais do homem que é dar sentido ao mundo e a si mesmo. É na interação com livros informativos ou ficcionais que esses sentidos são construídos. Portanto ainda não é tradição da escola deste século levar em conta o ponto de vista do leitor e muito menos considerar o ensino de literatura na perspectiva de suas outras funções que não sejam a estética e experiência com um universo de fantasias.

Outra questão a se considerar é que as motivações para a leitura literária devem ser vistas em nível cultural mais amplo que o escolar, no sentido de que possam ser relacionadas à cidadania crítica e criativa, à vida social, ao cotidiano do aluno, tornando-se, de fato, um letramento literário. Entretanto, como adverte Paulino (2005, p. 64-65), para se tornar relevante, a competência social da leitura literária depende de prioridades políticas e econômicas capazes de influenciar opiniões e comportamentos coletivos. Para a pesquisadora, nos séculos XIX e XX, a leitura literária foi pensada apenas como prática escolar e não como prática social. Segundo um “Tradicional determinismo”, não detendo disposições para a leitura literária, porque no seu passado não foram ligadas ao letramento, especialmente ao de sentido estético, as camadas consideradas pobres não se sentiriam motivadas socialmente, cabendo apenas às pessoas “letradas” o acesso a esse patrimônio.

É nesse sentido que os documentos norteadores de uma educação que garanta a formação integral do aluno – para que ele possa atuar em todos os níveis da atividade humana, proporcionando-lhe uma plena autonomia em suas relações com o outro e com o mundo – devem desmitificar o ensino de literatura como a representação do patrimônio cultural da humanidade e fazer da leitura literária uma oportunidade de conhecer e vivenciar as diferentes manifestações que uma sociedade tem de apresentar seus reais valores e costumes, que muitas vezes são negligenciados em nome de uma arte que possa traduzir os ideais de quem se

encontra com o poder das decisões políticas e econômicas. Como se destacou na seção anterior, tanto os PCN quanto a BNCC já sinalizaram essa mudança, quando explicitam a necessidade de a escola priorizar a leitura literária no lugar do ensino tradicional de Literatura.

Não se pode perder de vista que o público-alvo dos documentos aqui referenciados são os professores e as unidades de ensino em que estão sediados, com o objetivo de orientar a construção dos Projetos Políticos Pedagógicos das escolas, nas mais diferentes regiões do país. Entretanto é preciso estender o debate sobre o ensino da literatura vs. leitura literária, aos cursos de formação inicial de professores, para garantir o que prescrevem tais documentos.

Na verdade, na educação básica brasileira, o texto literário sempre fez parte do currículo e, portanto, da formação do leitor, mesmo antes de a literatura ser considerada pelas políticas de educação como saber disciplinar distinto. Sua leitura é sugerida nesses currículos com o objetivo de formar leitores na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, quando o leitor está em processo de apropriação do código escrito, sob a responsabilidade do licenciado em Pedagogia, e, nas séries finais do Fundamental e no Ensino Médio, com a mediação do licenciado em Letras, por meio da literatura infantojuvenil e com leituras de obras canônicas, como capital cultural, respectivamente. No entanto muitas dessas práticas são equivocadas, pois a leitura dessas obras se restringe ao objetivo de extrair delas valores pedagogizantes, como comportamentos, crenças e normas que representam o poder constituído da sociedade, ou ainda como exemplo de norma linguística a ser seguida.

A formação inicial dos professores parece não ser satisfatória para sua atuação no Ensino Básico e menos ainda no Ensino Superior, embora se tenha disciplinas como “Metodologia do ensino de Literatura” e “Estágio Supervisionado” nos Cursos de Letras e “Literatura infantil” e “Estágio Supervisionado” nos de Pedagogia. No primeiro caso, muitas vezes a disciplina “Metodologia do Ensino de Literatura” é de caráter optativo, e, nos estágios, na Educação Básica, os professores em formação acabam dando preferência às disciplinas de Língua Portuguesa. Dessa forma, não há um momento de reflexão sobre a importância da leitura literária para a formação leitora de seus futuros alunos e também não parecem ter oportunidade de refletir sobre o seu letramento literário, no decorrer de seu curso.

Além disso, os conteúdos curriculares de muitos cursos de Letras apresentam as disciplinas de Literatura ainda engessadas, na perspectiva da história e dos gêneros literários, e, embora haja a leitura de obras representativas desses gêneros, essa leitura é muitas vezes pautada nesses conhecimentos. Por conseguinte, esses professores adotam em suas salas de aula práticas interpretativas semelhantes, sem que haja uma preocupação com a transposição didática ou uma identidade própria para o ensino de literatura e o objetivo de formar leitores. Certamente, os professores em formação devem ter conhecimento sobre a história da literatura, a teoria literária e a crítica literária como saberes próprios de sua formação. Necessitam mobilizá-los durante sua leitura da obra propriamente dita ou quando mediador das práticas de leitura literária, no sentido de garantir ao seu aluno uma melhor compreensão sobre o lido, pois pode ser-lhe útil “aprender fatos da história literária ou alguns princípios resultantes da análise estrutural”, mas em nenhum caso “o estudo desses meios de acesso pode substituir o sentido da obra que é o seu fim” (TODOROV, 2016, p. 31, grifo do autor).

O resultado dessa formação do professor de Língua Portuguesa que opta por trabalhar com a literatura é que, na sua atuação no Ensino Médio, ou segue suas aulas com o que é determinado pelo livro didático, que geralmente apresenta apenas a história literária, ou oferece aos alunos o que aprendeu em sua formação e dá aulas de análise crítica de textos literários, em prejuízo da leitura literária feita com os alunos. Por sua vez, ao atuar no Ensino Fundamental, o professor, não tendo que dar aulas de Literatura, como é prefigurado no Ensino Médio, poderia dar continuidade ao processo de formação leitora, iniciado pelos pedagogos nas séries iniciais. Entretanto, por falta de propostas metodológicas para a leitura literária nesse segmento, enfatiza a leitura dentro da perspectiva do ensino da Língua Portuguesa, não se reconhecendo como professor de Literatura e

termina por apagar o adjetivo ‘literário’ de suas propostas de letramento [...] ou tende a reduzir o aspecto literário ao exercício da imaginação e da fantasia e a leitura dos textos assume um caráter essencialmente instrumental (COSSON, 2013, p. 19-20).

Muitas vezes são aulas de leitura de textos literários de forma assistemática, em nome de um prazer absoluto de ler, sem um objetivo próprio de ensino, caracterizado pelo desconhecimento de que a leitura literária tenha um papel a

cumprir no âmbito escolar e nas práticas sociais do aluno. Deve-se compreender que o letramento literário é uma prática social e, como tal, de responsabilidade da escola. Assim, a leitura efetiva de textos literários deve ser o centro das práticas literárias na escola. Se o texto literário não ocupa seu lugar nas aulas de leitura, o espaço da literatura como lócus de conhecimento também desaparecerá (COSSON, 2014a).

Considerando-se, portanto, um desencontro entre o discurso dos documentos e a realidade das práticas de leitura, especificamente a leitura do texto literário, vivenciadas na escola e fora dela, questiona-se como os cursos de Letras podem contribuir para a formação do professor de Língua Portuguesa no seu processo pessoal de letramento literário e como futuro mediador de práticas leitoras e de letramento literário de alunos da Educação Básica. Nesse sentido, valorizamos a hipótese de que, se o futuro professor refletir sobre seu próprio processo de letramento, terá mais condições de entender o processo de letramento de seus alunos e de compreender o seu papel na formação de leitores e de leitores de literatura. Para isso, passamos a discutir, no capítulo seguinte, a concepção de letramento(s) e, por sua vez, a de letramento literário que norteará a proposta desta tese.